Cordeiro; 500 palavras para um blog
Cordeiro
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã era branca como neve. E para onde quer que ela fosse, o cordeirinho ia com ela. Além do cordeirinho, ela tinha um pai e uma mãe. O pai era uma espécie de fantasma grisalho, que chegava a casa sempre a horas de a Mary estar a dormir na sua caminha de ferro forjado. A mãe, uma criatura assustadiça e despropositadamente agressiva, que fugia da Mary como se ela tivesse a peste negra, pois não fosse a maldita criança estragar-lhe o penteado, sujar-lhe o vestido haute-couture, ou pior, faze-la parecer uma domestica ou serviçal perante as suas amigas, ao tratar de uma fedelha maltrapilha e a cheirar a “campo”. O papá era mais complacente, deixava a Mary aproximar-se dele. Mas Mary não gostava de se aproximar muito, o cheiro a vinho misturado com tabaco e perfume de mulheres que ela não conhecia assustavam-na e deixavam-na inquieta. Mas mesmo quando se aproximava, reparava que os olhos do papá vogavam longe dali, p’ra outro lugar, onde a Mary era apenas uma intrusa numa terra estranha de alienação e deriva. “Papá?”, chamava Mary, entre lábios estreitados pelo medo e desconfiança. Invariavelmente recebia um rouco gemido seguido de um suspiro “minha querida filha,...” e um voltear de cabeça em tom fúnebre. O papá também tinha ele um papá lá em casa, o avô de Mary. Como o avô gostava de Mary, adorava-a. Aliás, ele tratava a pequena infanta de cabelo escuro de fartos caracóis e olhos enormes e azuis como o mar invernoso com um afecto algo estranho e inusitado para uma criança daquela idade. Na verdade, ele tratava Mary como uma mulher, no sentido em que nenhuma criança devia jamais conhecer. As intermináveis horas passadas na cave ao colo do avô, a ser acariciada por aquelas mãos rugosas e ásperas, a sentir os lábios suados e a língua verminosa a percorrer-lhe o corpo alabastrino de anjo barroco abandonado numa vala imunda e atascada e lixo e cadáveres de crianças que nunca o chegaram a ser, o ruído do cinto a roçar no chão, tudo isso fazia parte do enorme e carinhoso amor do avozinho de Mary.
E o cordeirinho estava sempre por perto, abúlico e tão indiferente ao sofrimento da sua preceptora quanto um animal verdadeiramente torpe e estúpido como os cordeiros podem ser.
Mary cresceu, e o cordeirinho continuou perto dela. Para onde quer que fosse, o cordeirinho seguia. E uma noite depois de encharcada mais uma almofada em lágrimas e gemidos silenciosos de horror e dor, Mary desceu à vergonhosa cave. Olhou-a uma última vez antes de decidir. E decidiu. Pegou na antiga foice do avozinho, cheia de ferrugem e restos mortais de ervas daninhas decepadas e avançou. E o cordeirinho avançou com ela. E nessa noite visitou o papá adormecido e dormente, a mamã frígida e ausente e o avozinho, que dormia profundamente com um sorriso de satisfação nos lábios finos e suados.
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã estava manchada de vermelho vivo.
11 de Fevereiro de 2005,
Der Uberlende
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã era branca como neve. E para onde quer que ela fosse, o cordeirinho ia com ela. Além do cordeirinho, ela tinha um pai e uma mãe. O pai era uma espécie de fantasma grisalho, que chegava a casa sempre a horas de a Mary estar a dormir na sua caminha de ferro forjado. A mãe, uma criatura assustadiça e despropositadamente agressiva, que fugia da Mary como se ela tivesse a peste negra, pois não fosse a maldita criança estragar-lhe o penteado, sujar-lhe o vestido haute-couture, ou pior, faze-la parecer uma domestica ou serviçal perante as suas amigas, ao tratar de uma fedelha maltrapilha e a cheirar a “campo”. O papá era mais complacente, deixava a Mary aproximar-se dele. Mas Mary não gostava de se aproximar muito, o cheiro a vinho misturado com tabaco e perfume de mulheres que ela não conhecia assustavam-na e deixavam-na inquieta. Mas mesmo quando se aproximava, reparava que os olhos do papá vogavam longe dali, p’ra outro lugar, onde a Mary era apenas uma intrusa numa terra estranha de alienação e deriva. “Papá?”, chamava Mary, entre lábios estreitados pelo medo e desconfiança. Invariavelmente recebia um rouco gemido seguido de um suspiro “minha querida filha,...” e um voltear de cabeça em tom fúnebre. O papá também tinha ele um papá lá em casa, o avô de Mary. Como o avô gostava de Mary, adorava-a. Aliás, ele tratava a pequena infanta de cabelo escuro de fartos caracóis e olhos enormes e azuis como o mar invernoso com um afecto algo estranho e inusitado para uma criança daquela idade. Na verdade, ele tratava Mary como uma mulher, no sentido em que nenhuma criança devia jamais conhecer. As intermináveis horas passadas na cave ao colo do avô, a ser acariciada por aquelas mãos rugosas e ásperas, a sentir os lábios suados e a língua verminosa a percorrer-lhe o corpo alabastrino de anjo barroco abandonado numa vala imunda e atascada e lixo e cadáveres de crianças que nunca o chegaram a ser, o ruído do cinto a roçar no chão, tudo isso fazia parte do enorme e carinhoso amor do avozinho de Mary.
E o cordeirinho estava sempre por perto, abúlico e tão indiferente ao sofrimento da sua preceptora quanto um animal verdadeiramente torpe e estúpido como os cordeiros podem ser.
Mary cresceu, e o cordeirinho continuou perto dela. Para onde quer que fosse, o cordeirinho seguia. E uma noite depois de encharcada mais uma almofada em lágrimas e gemidos silenciosos de horror e dor, Mary desceu à vergonhosa cave. Olhou-a uma última vez antes de decidir. E decidiu. Pegou na antiga foice do avozinho, cheia de ferrugem e restos mortais de ervas daninhas decepadas e avançou. E o cordeirinho avançou com ela. E nessa noite visitou o papá adormecido e dormente, a mamã frígida e ausente e o avozinho, que dormia profundamente com um sorriso de satisfação nos lábios finos e suados.
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã estava manchada de vermelho vivo.
11 de Fevereiro de 2005,
Der Uberlende
6 Comments:
Imagino essa menina, mais tarde, a deixar Nick Cave sozinho na cama a cantar em pranto:
...so hold me and hold me, don't tell me your name
This morning will be wiser than this evening is
Then leave me to my enemied dreams
And be quiet as you are leaving, Miss
(e ele nunca mais a verá... e ela, será que ela se encontra?)
Der Igel
By Anonymous, at 1:29 AM
o que mais me choca em toda a história é ser o avô de Mary a fazer-lhe isso! se ainda fosse um estranho ou desconhecido! agora avô!!! e quantas Mary´s a sofrer em silêncio não existirão mesmo aqui ao nosso lado e nós sem sequer darmos conta!
By Eduarda Sousa, at 1:34 PM
Lizzie Borden took an ax,
Gave her mother forty whacks,
And when she saw what she had done,
She gave her father forty-one.
By Anonymous, at 7:29 PM
teriam aquelas criaturas um rebat de consciência?
sentiriam eles falta da Mary, sem ser pelo libido do avô, o descarnio da mãe e o poder de o mostar à filha, a ausencia do pai sempre que respondia "minha querida filha...",mas que sabia que algúem procurava por ele...
a Mary teria realmente acabado? o cordeiro seria o único a sentir-lhe a falta, pelo cuidado da alimentação e da agua?
fiquei com um nó na garganta...uma revolta por saber que Mary's e cordeiros não faltam por aí...
uma optima simbiose da Mary com o Cordeiro!
By Ana João, at 9:01 PM
Agnus Dei qui tollis pecatta mundi, miserere nobis... A Mary deu-lhes a paz de que precisavam. E a ela, quem lhe dará paz?
By smallworld, at 11:33 PM
Gostei do teu blog.
Bom Domingo.
By Red Boys ESTAÇÃO, at 2:15 PM
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