Podes entrar; 500 palavras para um blog
Podes entrar.
Deito-me de costas, com as mão atrás da cabeça, e vejo as estrelas a aproximarem-se lentamente, arrastando o seu brilho intemporal numa cauda de luz branca fria e imortal. As flores que deixas-te na jarra soltam um último suspiro antes de murcharem de vez. As pétalas caem uma a uma, secas e abandonadas, tristes e negligenciadas, rasgadas pela abrasão áspera do contacto com os estilhaços do meu coração. O som sibilante das folhas a encarquilharem lembram-me dos teus beijos, azuis cobalto, que me arrastavam ansiosamente para os teus lençóis pantanosos, de onde eu nunca queria sair, onde eu me afundava no teu corpo inquieto, inquietante de tanto ardor e tortura. E tu sorrias quando eu te contava estórias desconexas sobre o amor, e de como este nos obrigava a equilibrar sobre a lâmina afiada de uma navalha já usada em silenciosos suicídios.
E agora, tu questionas-me porque te peço para sair. E pedes-me para ficar, só mais desta vez, só mais uma vez, só mais uma noite de miséria e prometes-me que mudas tudo, deitas fora a tua língua de mel e cianeto, as tuas garras felinas de gato desconfiado e traiçoeiro, que queimas as milhentas páginas de argúcia e lógica disforme que me obrigaram a deitar-me no teu leito tanta vez, quando me pedias para eu morrer para ti, sacrificar-me a ti, mulher-altar onde por ti derramaria para sempre a minha vontade própria e para sempre me prometia a ti, para que de mim fizesses dor e vontade, amor e verdade, ódio e complacência, histeria e demência, solidão e vertigem final rumo ao nada, só nós dois, sem ninguém a controlar a velocidade a que descíamos vertiginosamente nessa espiral negra que nos afundava a cada contorção dos nossos corpos inquietos e moribundos de pesar, de martírio e piedade, de palavras que não acabam, de ouvidos que não ouvem, de olhos que não vêem, de agonia que não finda. Até ao dia em que acaba.
E no dia em que acaba, descubro que afinal estou vivo. No dia prometido ao meu derradeiro sacrifício, descubro que afinal eu sou. Sou mais do que os restos humanos com que te banqueteavas na tua gula por atenção e dependência, sou maior do que o fantoche que fazias dançar ao som da tua esquizóide valsa lenta e interminável, sou mais forte do que as tuas palavras reptilíneas e de auto-engano que escorriam da tua boca, sou mais brilhante do que a lâmpada fosca e suja que iluminava o nosso quarto, e sou capaz de me manter de pé quando tu ainda me chamas e imploras que rasteje de volta para o teu ninho de desespero terminal.
Hoje, sinto-me como o profeta a quem foi anunciado a ressurreição do espírito, doce anjo Gabriel, que me beijaste a face e me mostras o mundo como eu já não o sabia ver, que pegaste em mim e me ofereces flores novas e belas, de tanta cor que quase fiquei cego.
Posso entrar no teu mundo?
4 de Fevereiro de 2005,
Der Uberlende
Deito-me de costas, com as mão atrás da cabeça, e vejo as estrelas a aproximarem-se lentamente, arrastando o seu brilho intemporal numa cauda de luz branca fria e imortal. As flores que deixas-te na jarra soltam um último suspiro antes de murcharem de vez. As pétalas caem uma a uma, secas e abandonadas, tristes e negligenciadas, rasgadas pela abrasão áspera do contacto com os estilhaços do meu coração. O som sibilante das folhas a encarquilharem lembram-me dos teus beijos, azuis cobalto, que me arrastavam ansiosamente para os teus lençóis pantanosos, de onde eu nunca queria sair, onde eu me afundava no teu corpo inquieto, inquietante de tanto ardor e tortura. E tu sorrias quando eu te contava estórias desconexas sobre o amor, e de como este nos obrigava a equilibrar sobre a lâmina afiada de uma navalha já usada em silenciosos suicídios.
E agora, tu questionas-me porque te peço para sair. E pedes-me para ficar, só mais desta vez, só mais uma vez, só mais uma noite de miséria e prometes-me que mudas tudo, deitas fora a tua língua de mel e cianeto, as tuas garras felinas de gato desconfiado e traiçoeiro, que queimas as milhentas páginas de argúcia e lógica disforme que me obrigaram a deitar-me no teu leito tanta vez, quando me pedias para eu morrer para ti, sacrificar-me a ti, mulher-altar onde por ti derramaria para sempre a minha vontade própria e para sempre me prometia a ti, para que de mim fizesses dor e vontade, amor e verdade, ódio e complacência, histeria e demência, solidão e vertigem final rumo ao nada, só nós dois, sem ninguém a controlar a velocidade a que descíamos vertiginosamente nessa espiral negra que nos afundava a cada contorção dos nossos corpos inquietos e moribundos de pesar, de martírio e piedade, de palavras que não acabam, de ouvidos que não ouvem, de olhos que não vêem, de agonia que não finda. Até ao dia em que acaba.
E no dia em que acaba, descubro que afinal estou vivo. No dia prometido ao meu derradeiro sacrifício, descubro que afinal eu sou. Sou mais do que os restos humanos com que te banqueteavas na tua gula por atenção e dependência, sou maior do que o fantoche que fazias dançar ao som da tua esquizóide valsa lenta e interminável, sou mais forte do que as tuas palavras reptilíneas e de auto-engano que escorriam da tua boca, sou mais brilhante do que a lâmpada fosca e suja que iluminava o nosso quarto, e sou capaz de me manter de pé quando tu ainda me chamas e imploras que rasteje de volta para o teu ninho de desespero terminal.
Hoje, sinto-me como o profeta a quem foi anunciado a ressurreição do espírito, doce anjo Gabriel, que me beijaste a face e me mostras o mundo como eu já não o sabia ver, que pegaste em mim e me ofereces flores novas e belas, de tanta cor que quase fiquei cego.
Posso entrar no teu mundo?
4 de Fevereiro de 2005,
Der Uberlende
3 Comments:
Quanta fluidez, força e beleza vertidas nessas teclas, qual piano a derramar as lágrimas que o compositor chora por dentro. Surpreendes-me com a coragem do teu sentir e comoveste a folha onde as palavras foram impressas. Um abraço de quem sabes.
By Anonymous, at 4:02 AM
Olá! estou de volta! os exames acabaram finalmente! já estou a escrever o meu segundo texto de 500 palavras. quando acabar publico. dás-me cá uma inspiração e vontade de escrever! abraço
By Eduarda Sousa, at 1:33 PM
Já te disse, mas convém frisar que pela primeira vez neste blog não a)matas ninguém, b)acabas com uma nota de desespero! Gosto mais assim destas coisas que acabam bem... Vá lá, benzinho. Defeitos de quem viu muitas vezes a Música no Coração, que queres? Onde vais buscar este manancial de emoções negras?...
By smallworld, at 3:50 PM
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