Luz e Sombra

Monday, February 14, 2005

Terceiro poste a contar da rampa - 500 palavras para um blog

Todos os dias o mesmo trajecto. Às 7h27 apanhava o comboio, chegava ao cais do Sodré às 7h45, e ao emprego às 8h00. Esperava pelo comboio sempre no mesmo sítio, o terceiro poste a contar da rampa, de pé, segurando a sua mala de cabedal à frente do corpo. Era uma mala velhinha, já com os seus vinte anos, que o pai lhe tinha dado quando ele terminou a faculdade. Como tinham passado rápido, sempre no mesmo sítio, terceiro poste a contar da rampa. No emprego era visto como um homem pacato. Almoçava sozinho, sempre no mesmo restaurante. No comboio, lia ou dormitava. Já se tinha habituado tanto à paisagem que via do comboio, que não reparava mais no reflexo do sol a nascer no mar, na solidão estóica do Bugio… Ao princípio sim, ficava pasmado a olhar, vendo cada dia amanhecer diferente do outro, mas agora dava-lhe mais prazer encostar a cabeça à janela e sentir o embalo do comboio, regular e previsível.
Um dia esperava na estação, terceiro poste a contar da rampa, quando ouviu um riso de criança que lhe chamou a atenção por não saber de onde vinha. Olhou em volta, constatando que era a única pessoa na plataforma, com excepção de um bêbado que dormia num dos bancos, com uma garrafa de vinho aninhada entre os braços. Era impossível ter sido ele a dar aquela gargalhada tão cristalina. Outra vez, soou o riso. Intrigado, o homem aproximou-se da beira da linha, porque lhe parecia que o som vinha dali debaixo. De facto, ali estava. Um rapazinho dos seus 4 anos, de cabelo castanho encaracolado e narizinho arrebitado e sardento. Ria-se e tapava a boca com a mão. «O que fazes aí, menino? Olha que isso é perigoso!!» O miúdo, obviamente deleitado com a atenção, pegou numa pedrinha e fez pontaria ao mendigo. A pedrinha acertou-lhe bem no meio da testa, mas ele apenas agitou a mão à frente da cara como para afastar um visitante indesejado e continuou a ressonar. «Que malvado que me saíste… Anda, sai daí. Chega-te aqui que eu puxo-te para cima, vá.», disse o homem. A criança gargalhou outra vez, apanhada em falta, e começou a correr pelos carris afora, olhando para o homem numa provocação clara. Então tropeçou e caiu, deixando um fio de sangue a escorrer do joelho. Virou para o homem uns olhos grandes e lacrimosos, parecia ir desatar num pranto. O homem largou a pasta e desceu para a linha, correndo para o menino. Mas este levantou-se outra vez e novamente começou a correr pela linha, rindo alto. O homem acelerou e finalmente, alcançou-o, e puxando-o por um bracinho, disse «Já te apanhei, malandro!», esbaforido pelo esforço da corrida. Mas na cara do menino, já não havia olhos grandes, nem sorriso, nem lágrimas. O maquinista tentou travar, mas não foi a tempo de evitar o embate. Demoraram três horas a recolher os pedaços espalhados pela linha, mas só encontraram duas pernas, dois braços, uma cabeça. Nenhuma criança.

4 Comments:

  • Stela, numa palavra: Arrepiante! Que texto fantástico, digno de Stephen King ou Edgar Alan Poe, mesmo fantástico! Deixaste-me arrepiado, e sabes que não me arrepio facilmente...

    Que entusiasmante é ler os teus textos!!

    bem hajas!

    By Blogger Der Überlebende, at 12:46 AM  

  • This comment has been removed by a blog administrator.

    By Blogger Der Überlebende, at 12:47 AM  

  • Lindo. Muito bem escrito. Essa veia revela-se... pulsa com uma intensidade que não nos deixa indiferentes. E com uma maturidade impressionante. Só te posso dizer: estou ansioso pelas tuas próximas 500 palavras. Der Igel

    By Anonymous Anonymous, at 2:01 AM  

  • Digno de uma série "ficheiros secretos", continuas a surpreender-me com cada texto novo. Parece que tens uma fonte inesgotável de criatividade e imaginação dentro de ti. I love it.
    beijinho e continua a escrever, queremos mais !!!

    By Blogger Eduarda Sousa, at 3:32 PM  

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