Luz e Sombra

Wednesday, March 09, 2005

A Estranha; 500 palavras para um blog

A estranha.
2 horas da manha, noite quente e abafada. O mercúrio do termómetro espreguiça-se languidamente até a uns mornos 28ºc, e a brisa sorrateira que insiste em sacudir o cortinado da janela como se fosse uma serpente deslizando entre as areias do deserto, vagarosa e traiçoeira, alternando convulsões mais violentas com ligeiríssimos volteios de noite embriagada. Através do ar sinto o aroma de um sentimento sujo, delinquente e infiel. Trago-o devagar. E enquanto as partículas doces e preciosas me penetram os pulmões, decido recomeçar. Agora sou eu quem decide.
Mais perto. Cada passo está mais perto da violência inocente, de quem vai escapar de si próprio. Mais perto. Deixo a carne banquetear-se com as sevícias adoradas da luxúria, com a interpenetração dos sentidos, com a violação de todas as proibições da moral, desprezando os códigos religiosos que me proíbem de estar mais perto do êxtase, perto de Deus.
Ajuda-me, estou incandescente por dentro. Ajuda-me, não quero parar de arder. Tu tornas-me especial, como a afinidade do sangue ao coração, como a cumplicidade do cérebro ao sexo, como a distância da razão à paixão, como a realização animalesca do meu corpo sobre o teu poder. Submissão. À medida que avançamos, e que se desvelam os segredos mais escondidos. Sei que tudo esteve escondido. Mas agora estamos a ver. A minha face nos teus olhos. Sei que a vês. Pois tu és como eu, nascida do medo e castração. Cubro a minha cara, não quero ver os meus olhos. Nesta noite que não passa, sinto o teu medo por mim. A tua face nos meus olhos, é tudo o que vejo. Porque tu vens donde eu venho, do mar profundo e sem vida. Cubro a minha face, não quero ver os teus olhos. Esquece toda a realidade. Abandona as tuas amarras e derruba as paredes que te confinam. És o meu medo, e vejo-te dentro dos teus olhos!
De novo, o gosto a vidro partido. E apenas restam os buracos negros, onde antes brilhavam as estrelas. E os primeiros enxames de anjos vem debicar e lamber os restos mortais dos sentimentos desumanizados da nossa existência. O teu grito sobe até aos pés do céu, para serem afastados pelo vento agreste da enorme indiferença de Deus para connosco. Fora de vista. Fora do horizonte. Fora da minha carne!
E os corações vazios dirão: o que é demais é demais!
Ai vem outra vez, o toque sedoso das cordas que me manietam e prendem à minha insaciável vontade de tudo devassar.
O sol está prestes a nascer. Não, ninguém é inocente aqui. Tenho que escolher quem vai pagar os estragos desta noite. Ao ritmo de uma rima infantil, aponto o dedo a ti e a mim e decido quem é o lobo e quem foi a ovelha.
Adivinha, ganhei o jogo! Podes pegar no dinheiro que está em cima da cómoda e ir-te daqui.
Tenho que me despachar, ainda hoje tenho que voltar para junto da minha família e ser um cidadão exemplar.

9 de Março de 2005,
Der Uberlende

6 Comments:

  • Upsss..., como a minha net anda algo estranha pensei que da primeira vez não tinha conseguido publicar. Peço desculpa pelo meu equívoco!

    By Blogger Der Überlebende, at 1:57 PM  

  • Já resolvi o problema Der Uberlende. às vezes também me acontece o mesmo!!!
    Mais um texto brilhante, parabéns.
    beijinho

    By Blogger Eduarda Sousa, at 2:52 PM  

  • Hmm, o teu texto deixou-me a pensar na questão do sexo casual...(ter ou não ter, eis a questão, na minha moralidade tão cristã, apesar de nem baptizada ser). E de como as nossas fantasias são mais facilmente realizadas com quem não temos uma imagem a manter. Fascina-me a origem das fantasias de cada um, é uma porta aberta para as nossas fragilidades. Belo texto...

    By Blogger smallworld, at 2:37 PM  

  • pois sexo casual... nos homens não me faz confusão mas nas mulheres sim... porque os homens precisam de aliviar aquela tensão que os consome permanentemente mas acho, que nós mulheres, funcionamos de forma diferente, para nós não há sexo sem amor! acho eu, não sei bem!!!

    By Blogger Eduarda Sousa, at 11:24 AM  

  • Antes de mais, desculpem a minha ausência! Não acho que seja apenas sexo casual, é sobretudo sexo pago. É sobertudo a agressiva compulsão da vida urbana compulsiva, os anseios e os medos em jactos de adrenalina, o devaneio incessante com a morte, que estão na atitude daquele personagem, que ao despir o seu fato (de yupie) faz que se despe do seu eu social que o mundo exige que ele seja. enfim, é um texto forte e extremamente humano. Parabéns! a qualidade não se perdeu por aqui... Der Igel

    By Anonymous Anonymous, at 9:26 PM  

  • Antes de mais, desculpem a minha ausência! Não acho que seja apenas sexo casual, é sobretudo sexo pago. É sobretudo a agressiva compulsão da vida urbana, os anseios e os medos em jactos de adrenalina, o devaneio incessante com a morte, que estão na atitude daquele personagem, que ao despir o seu fato (de yupie) faz que se despe do seu eu social que o mundo exige que ele seja. enfim, é um texto forte e extremamente humano. Parabéns! a qualidade não se perdeu por aqui... Der Igel

    By Anonymous Anonymous, at 9:31 PM  

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