Luz e Sombra

Friday, February 18, 2005

4º ano, apenas mais um contributo para o desafio 500. Desculpem qualquer coisa...

4º ano
No centro comercial, estava um casal com um bebé. E ao lado deles um vagabundo que anotava tudo num naco de papel, trazido do WC. Os transeuntes vagueavam em volta, procurando preencher os nadas que tinham por dentro nos nadas das lojas por fora. O casal lanchava no McDonalds e enfartava o bebé com carne de vacas que pastam noutros continentes. Mas o bebé cuspia a carne num berreiro intrépido e exalava da sua garganta um fedor nauseabundo. Eu era o vagabundo que escrevinhava tudo, enquanto bebia o meu batido de baunilha. Tinha vindo do WC público, onde anotava a preceito as mensagens nazis e recados gay escritos nos azulejos, tão sujos quanto as faces daquele bebé que se agitava, com o anseio precoce de dominar o mundo. Eu compreendia-o porque todos nascemos assim, implacáveis, egoístas, cruéis em estado bruto. Por isso tinha desistido de acreditar em mim. Tinha Posto de lado todas as ambições e sofreguidões do ego, toda a voracidade e avidez dos genes. Tinha-me entregue a uma vida de mendigo asceta, embora apenas fosse visto como um parasita arrumador de automóveis. E ali estava eu a escrever o nojo que sentia daquele casal e daquela criatura que protegiam com tanto egocentrismo. Eles vestiam-se com o luxo da classe alta e o bebé tinha adornos de marca. O bebé era em si mesmo um adorno. O sorriso daqueles pais não reflectia os extremosos cuidados parentais, revelava sim um orgulho vencedor, uma vitória pessoal contra todos os que perpassavam nas montras vítreas e irascíveis, que eram os olhos vis daquele casal. E um desejo animal levou-me a escrever sobre esse casal que pensava viver o melhor das suas vidas, exibindo o seu troféu aos miseráveis que passavam. Mas de repente, parei de escrever. Incorreu-se-me a ideia mais perversa que algum dia os meus pensamentos acometeram. Acorri ao que restava do naco de papel para excretá-la, mas tarde demais. Já estava dominado por aquela ideia, restava-me executá-la.
Aproveitei que a mãe se ausentasse. Que o pai se distraísse com um suspeito telefonema. E raptei-a. Reparei que era uma menina.
Os pais terão visto mais tarde que no lugar dela estava um pequeno bilhete:

“Daqui a 4 anos, neste mesmo lugar.
Até lá, hão-de valorizar…”.

É certo que bastariam três anos. O quarto foi um requinte de malvadez, seria o mais difícil de ultrapassar. O ano decisivo para o casal. E durante estes anos dediquei a minha vida à menina a quem chamei Gaia. Deixei de ser vagabundo para poder educá-la com algumas condições, mas longe da vida de opulência e mordomias que a esperava nas mãos daquele casal.
Hoje chegou o dia. Entramos no centro 4 anos depois. Ela vem comigo de mãos dadas e dirigimo-nos ao Macdonalds. Gaia não sabe o que a espera. Eu também não. Sentamo-nos na mesma mesa. Esperamos horas. Mas não vem ninguém. Que terá afinal acontecido àquele casal, neste último ano?
Gaia pergunta-me “Pai, estás a chorar?”.
Mas nada lhe consigo responder.
18 Fevereiro
Der Igel

4 Comments:

  • e o que 4 anso fizeram desse vagabundo ou nesse vagabundo?

    achei uma história impressionante!
    o vagabundo dominou a situação, no entanto estva disposto a cumprir as palavras que tinha escrito, mas não evitou que Gaia o tratasse por pai!
    no fundo, fiquei confusa...mas aqueles pais apenas acreditaram que a filha não voltaria a estar à sua frente a comer no mcdonalds

    By Blogger Ana João, at 11:24 PM  

  • Que futuro haverá que valha a pena? Que vida cresce do vazio e da cinza? Que verdade é essa que teima em sair da boca de uma criança? Não foi Ghandi que disse "aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro"? Alguém ousou despojar-se de si próprio para salvar uma vida, salvando o futuro. O passado perdeu a fé. E o vagabundo perdeu a fé na humanidade.

    By Blogger Der Überlebende, at 11:49 PM  

  • Espectacular. O texto, a história, a mensagem, adorei tudo! A fé nos outros, na capacidade de crescer dos outros, de ser mais que a mesquinha soma de sucessos e falhanços a que tentam resumir o ser humano... O vagabundo comprovou que os pais da menina nunca tiveram fé nos outros, ele próprio perdeu um pouco essa fé nesta experiência cruel, mas na criança está a fé na renovação, a redenção, por assim dizer... Ela é culpa e absolvição para o vagabundo!

    By Blogger smallworld, at 12:57 AM  

  • Também gostei muita da história. Parecia-me que estava a ler algum livro filosófico. o que terá acontecido aos pais de Gaia, terão deixado de acreditar? terão se apercebido da sua vida mesquinha e fútil? sim, quantos pais vejo que também exibem os filhos como troféus, centrando-os unicamente a partir do próprio umbigo.

    By Blogger Eduarda Sousa, at 11:15 AM  

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