blog de 500 coisas, por Der Igel
SISTEMA
A vida fluía como sempre na grande Lisboa. A azáfama normal entre as treze e as treze e trinta. O trânsito lento e compacto. A sofreguidão do contra-relógio, o aperto no coração em cada sinal vermelho. O jacto denso de adrenalina que pulsa nas artérias da vida urbana, rasgando com o ruído de buzinas o bafio da atmosfera baça, podre, mundana. É a esta hora que os milhares de vultos esfaimados de Lisboa procuram o abrigo quotidiano dos restaurantes. Vultos de homens enfatuados, olhares empertigados e sorrisos arrogantes entram diariamente no restaurante onde ELE serve à mesa. E uma vez sentados, todos os homens relaxam nos seus efémeros lugares que velozmente se sucedem. E coçam a comichão das calças nos bancos onde os regos se roçam, enquanto chamam o empregado, apontam para o menu e pedem. E acima do frenesim de vozes e risos soa o som perene e sobranceiro da televisão, que mostra as normais notícias do dia-a-dia: a miséria de um mundo distante, que não estremece as bocas cauterizadas pelo sistema, habituadas à frieza mecânica de devorar. “A vida é um SISTEMA feito para não sonhar” grita um velho maluco que ninguém quer ouvir. Todos fingem conversar, rir, desligados do velho e das notícias da televisão, enquanto as bocas devoram a rápida refeição.
Só ELE, que serve à mesa, ouve o velho maluco e as suas alucinadas intervenções. “Oiçam-me bem, a vossa vida é um SISTEMA parasita que vos devora os sonhos!”. Mas ninguém lhe liga e o velho returque “Ou então não me oiçam! E devorem essa comida! Devorem, que quem vos devora é o SISTEMA, que vos come por dentro toda a vossa vida!”. E nisto o velho puxa pelo braço d’ELA, que recorre ao empregado com um olhar de quem está a ser incomodada. ELE, que sempre fora um empregado simpático e gentil, encaminha o velho para fora do restaurante e a normalidade restabelece-se, ao som das notícias da televisão.
ELA agradece mas nem lhe olha. Afinal, ELE é o empregado e ELA a cliente habitual que vem todos os dias almoçar sozinha, envolta nos seus afazeres que toldam o seu olhar vazio e impassível do resto do mundo. Do mundo que os seus olhos atravessam pela televisão, frios, sem nada ver. ELA dilui-se todos os dias na multidão daquelas horas lestas a passar e devora quase sem olhar grandes pedaços de comida. ELA é apenas mais uma mulher. Minada pelo sono de uma noite mal dormida. Minada pelos estilhaços de uma vida que tenta todos os dias esquecer. Os seus olhos cansados apenas vivem para o amanhã.
E a vida fluía como sempre na grande Lisboa, não fosse no dia de amanhã o velho não aparecer. Nesse dia, ELA levantou os olhos para ELE. Viu-lhe escorrer, no rosto simpático e gentil, uma lágrima.
Hoje a vida fluía normal, entre as treze e as treze e trinta, não fosse esta notícia encher os canais da televisão:
“Naquele restaurante de Lisboa, todos choraram de comoção”.
22 de Março de 2005
Der Igel
A vida fluía como sempre na grande Lisboa. A azáfama normal entre as treze e as treze e trinta. O trânsito lento e compacto. A sofreguidão do contra-relógio, o aperto no coração em cada sinal vermelho. O jacto denso de adrenalina que pulsa nas artérias da vida urbana, rasgando com o ruído de buzinas o bafio da atmosfera baça, podre, mundana. É a esta hora que os milhares de vultos esfaimados de Lisboa procuram o abrigo quotidiano dos restaurantes. Vultos de homens enfatuados, olhares empertigados e sorrisos arrogantes entram diariamente no restaurante onde ELE serve à mesa. E uma vez sentados, todos os homens relaxam nos seus efémeros lugares que velozmente se sucedem. E coçam a comichão das calças nos bancos onde os regos se roçam, enquanto chamam o empregado, apontam para o menu e pedem. E acima do frenesim de vozes e risos soa o som perene e sobranceiro da televisão, que mostra as normais notícias do dia-a-dia: a miséria de um mundo distante, que não estremece as bocas cauterizadas pelo sistema, habituadas à frieza mecânica de devorar. “A vida é um SISTEMA feito para não sonhar” grita um velho maluco que ninguém quer ouvir. Todos fingem conversar, rir, desligados do velho e das notícias da televisão, enquanto as bocas devoram a rápida refeição.
Só ELE, que serve à mesa, ouve o velho maluco e as suas alucinadas intervenções. “Oiçam-me bem, a vossa vida é um SISTEMA parasita que vos devora os sonhos!”. Mas ninguém lhe liga e o velho returque “Ou então não me oiçam! E devorem essa comida! Devorem, que quem vos devora é o SISTEMA, que vos come por dentro toda a vossa vida!”. E nisto o velho puxa pelo braço d’ELA, que recorre ao empregado com um olhar de quem está a ser incomodada. ELE, que sempre fora um empregado simpático e gentil, encaminha o velho para fora do restaurante e a normalidade restabelece-se, ao som das notícias da televisão.
ELA agradece mas nem lhe olha. Afinal, ELE é o empregado e ELA a cliente habitual que vem todos os dias almoçar sozinha, envolta nos seus afazeres que toldam o seu olhar vazio e impassível do resto do mundo. Do mundo que os seus olhos atravessam pela televisão, frios, sem nada ver. ELA dilui-se todos os dias na multidão daquelas horas lestas a passar e devora quase sem olhar grandes pedaços de comida. ELA é apenas mais uma mulher. Minada pelo sono de uma noite mal dormida. Minada pelos estilhaços de uma vida que tenta todos os dias esquecer. Os seus olhos cansados apenas vivem para o amanhã.
E a vida fluía como sempre na grande Lisboa, não fosse no dia de amanhã o velho não aparecer. Nesse dia, ELA levantou os olhos para ELE. Viu-lhe escorrer, no rosto simpático e gentil, uma lágrima.
Hoje a vida fluía normal, entre as treze e as treze e trinta, não fosse esta notícia encher os canais da televisão:
“Naquele restaurante de Lisboa, todos choraram de comoção”.
22 de Março de 2005
Der Igel
5 Comments:
Ok, já todos perceberam que eu sou amigo pessoal do Der Igel, mas isto que vou aqui escrever nada tem a ver com cumplicidade de amigos de longa data.
Não é fácil ser-se frágil neste mundo bruto, egoista e insensato. Não é fácil ousar sentir e demonstrá-lo, sem cair na lamechice barata, no romance de cordel, na infantilidade própria da juventude, na ausência da musa mascarada com idealismos disparatados ou pseudo-liberalismos. Menos fácil ainda é ser-se sincero quando se contemplam actos desta natureza, não ser bajulador nem falso-profeta, não tentar agradar com palmadinhas nas costas nem atirar comentários intelectualóides à parede a ver se escorregam.
Tudo isto para dizer que fiquei imensamente comovido com o teu texto.
Será que chegaste ao coração de mais alguém?
Manifestem-se!
Ousem ser, pensar e agir...hoje!
By Der Überlebende, at 6:34 PM
É bom assistir à tua mudança de abordagem.
Sente-se que te começas a encontrar contigo e com um mundo que existe cá fora.
Um mundo que por vezes não é nada bonito e muitas vezes é assustador. E não é fácil viver neste mundo real... Não é fácil confrontá-lo diariamente, quem nunca teve o desejo de ficar recolhido nos seus lençóis, só para não ter que enfrentar a realidade que há lá fora e que tem a ousadia de nos entrar em casa pela televisão.
Muitos adaptam-se, se é que se pode chamar assim, e tornam-se como que carneiros deste SISTEMA. Não entendem, não questionam, não olham para os lados, apenas se deixam ir com o rebanho, de olhar vazio, de cabeça vazia, de sonhos vazios...
Obrigado Der Igel por teres trazido um pouco do que se tornou o nosso mundo da maneira genial como sabes fazer.
By Anonymous, at 7:04 PM
Dream
"Muitos adaptam-se, se é que se pode chamar assim, e tornam-se como que carneiros deste SISTEMA. Não entendem, não questionam, não olham para os lados, apenas se deixam ir com o rebanho, de olhar vazio, de cabeça vazia, de sonhos vazios..."
Mas haverá maneira de fugirmos a esta anestesia da sociedade? será assim tão fácil deixar de ser carneiro? não estaremos demasiado enraizados no SISTEMA para o conseguir quebrar e fugir dele? seremos suficientemente lúcidos para inconscientemente não nos deixarmos ir na rotina de todos os dias, sem questionar, sem pensar?
By Eduarda Sousa, at 10:55 AM
Nos dias que correm somos completamente absorvidos por uma sociedade demasiado exigente para uma simples vivência como a do mais comum dos mortais.
São estes os que se arriscam a comportar como carneiros no seu quotidiano. Certamente muitos deles já tiveram o pensamento de fazer algo que pudesse contrariar essa corrente, mas nunca passaram à acção... Mas gosto de acreditar que existem uns poucos que conseguem.
Gosto de acreditar que no mar de gente sem expressão com quem nos cruzamos, aqueles de trazem um sorriso na face e olham com expectativa em seu redor conseguem, diariamente, fugir à força do SISTEMA.
Que é fácil? Certamente que não. Que é compensador? Sem sombra de dúvida que sim...
By Anonymous, at 7:31 PM
Uff... sinto-me deveras lisonjeado com os comments interessantes que se desenvolveram a partir deste sistema. "Muitos adaptam-se, se é que se pode chamar assim, e tornam-se como que carneiros deste SISTEMA" - com este conceito da adaptação resumes bem o que tento transmitir com os olhares mortos-vivos dos personagens, que são as que vemos todos os dias, por vezes perigosamente perto de nós. Por vezes perigosamente dentro de nós.
Der Igel
By Anonymous, at 6:32 PM
Post a Comment
<< Home