DP2 - Cristal, by Stela
A Angela tinha os olhos castanhos escuros, fazendo com que mal se distinguisse a pupila da íris do olho. Entrou pela primeira vez na loja num sábado à tarde particularmente chuvoso, em que a maior parte das pessoas preferira ficar em casa. O Outono tinha feito recentemente a sua chegada inevitável. O Sol, que brilhara tão arrogantemente todo o Verão, incendiando aqui e ali matas inteiras, parecia agora tímido e arrependido, de tão débil que era a sua luz. Quando a campainha da porta soou, mestre Fausto não ergueu a cabeça do que estava a fazer. Acabara de receber uma encomenda particularmente importante, e afadigava-se a desempacotá-la para a examinar convenientemente. Ouviu a porta fechar, e passinhos miúdos. «Se precisar de alguma coisa, espere só 5 minutinhos, está bem?», disse, sem erguer os olhos. «Sim senhor, era para lhe perguntar se pode reparar o meu cisne…» Fausto olhou em frente, mas não viu ninguém em toda a loja. De repente apercebeu-se de que a voz miudinha vinha de trás do balcão onde estava a trabalhar. Ali, muito composta, estava a menina mais pequena que Fausto alguma vez vira. «Cisne? Mostra-me lá…», disse com um sorriso. Angela retirou do bolso um embrulho castanho. «Mas não diga nada à minha mãe», disse num sussurro, «é que… parti-o…» e os dois olhos castanhos como bolotas desviaram-se para o chão, procurando esconder a vergonha de ter feito tal coisa.
As mãos experientes do mestre Fausto abriram o embrulho e admiraram o pequeno cisne de cristal, decapitado. Os dois pedaços em que se partira complementavam-se perfeitamente, era apenas necessário aplicar uma cola especial com muito cuidado e o cisne ficaria como novo. Angela olhava-o agora com olhos suplicantes. «Não te preocupes, isto é um instante! A tua mãe nem vai perceber!», disse-lhe, tranquilizante. Virou costas ao balcão e dirigiu-se à sala das traseiras da loja, onde tinha o seu arsenal de utensílios para melhor cuidar, avaliar, restaurar todas as figuras de cristal que lhe vinham parar à mão. Colocou o cisne partido debaixo da lupa para poder aplicar cuidadosamente a cola. Reparou que Angela o tinha seguido. «Entao? Receosa?... Olha que pior do que está não fica de certeza…» disse-lhe Fausto rindo. «Não… é que é uma coisa tão frágil e tão bonita… Parecia-me que se iria partir em trinta mil bocadinhos… Mas afinal foi só em dois.», disse Angela, parecendo recordar o susto que apanhara quando vira o pequeno cisne voar para o chão. «Ah, não te preocupes… Este cristal é de uma excelente qualidade, por isso não se estilhaça assim tão facilmente. Além disso, sabes que o cisne é uma das formas que o deus grego Zeus pode assumir? Portanto, já vês, não era assim qualquer coisinha que o deitaria abaixo!», reconfortou-a Fausto.
Angela sorriu e olhou em volta. Abrindo os olhos e a boca de espanto, disse «Uau!», quando viu a magnifica colecção de Fausto, normalmente afastada dos olhos dos clientes. Cirandou pela oficina, e às tantas os seus olhos pareceram fixar-se numa figura em especial, com umas asas do cristal mais transparente que vira. «Que animal é aquele atrás deste elefante?», perguntou. «Parece que brilha de forma diferente…». A voz de Fausto soou repentinamente ríspida. «Menina, já tenho aqui o cisne pronto. Acho que é altura de o devolveres à tua mãe.» Angela anuiu com a cabeça, um pouco amedrontada, e voltou à parte pública da loja. «Quanto lhe devo?», inquiriu numa vozinha ainda mais tímida. «Nada, não te preocupes, é por conta da casa» disse Fausto, sorrindo novamente. Disseram adeus, e Angela saiu para o frio mais uma vez.
A segunda vez que Angela entrou na loja foi 7 anos mais tarde. O calor de Agosto fazia da loja mais uma vez um local protector, fresco por causa da penumbra onde os cristais brilhavam. Fausto não reconheceu a jovem de t-shirt de alças preta e calças de ganga senão pelo boneco de cristal que lhe trazia – o cisne, outra vez quebrado. «Finalmente, a cola que lhe pôs há anos cedeu… Desta vez a culpa não foi minha, foi do meu irmãozinho… É tão traquinas como eu era!», disse Angela a rir. Fausto riu-se também calorosamente, e olhou pela segunda vez para aquele cisne torturado por crianças brincalhonas. «Desta vez vai ser mais difícil… A sua mãe devia guardar isto noutro sítio, senão da próxima vez não há mestre Fausto que lhe valha…». E deslocou-se para a oficina. Angela seguiu-o, como fizera 7 anos antes. «Já me tinha esquecido… Tem aqui um verdadeiro tesouro, mestre Fausto», disse. «Aposto que estas prateleiras guardam segredos do arco da velha!». Mas Fausto não respondeu, ocupado com a reparação do velho cisne. «É curioso…», disse Angela poucos momentos depois. «O meu avô também tinha uma paixão enorme por cristais. Talvez o conheça. Victor de Chambourcy?».
Fausto ficou estático. «Sim, conheço», respondeu de forma seca. Angela continuou a falar. «O meu avo falou-me de um cristal especial… pensei que o mestre seria a melhor pessoa para me dizer se tal cristal existe de facto ou não. Aparentemente, o meu avô acreditava que o cristal estava amaldiçoado. A Aqueronte?...», inquiriu.
«Duvido que Victor de Chambourcy falasse desse cristal a seja quem for… muito menos à sua neta. O Conde era um homem extremamente zeloso para com a sua família, e esse cristal de que me fala é tudo menos um objecto seguro. Por isso lhe digo que é melhor ir-se embora e não me procurar mais!», afirmou Fausto, olhando com suspeita para Angela. Mas desta vez a rapariga não arredou pé. De mãos nos bolsos e olhar provocador, disse: «Oh, o avozinho falou, sim. Não havia nada que ele não me dissesse. Quanto ao zelo familiar do meu avô, eu se fosse a si, não tinha tanta certeza…» Aproximou-se de Fausto, olhando-o directamente. «Onde está o cristal?», perguntou.
«O que é que aconteceu ao Conde?! O que é que fizeste ao Conde? Ele nunca iria mencionar a Aqueronte, se não fosse ameaçado…», balbuciou o mestre, mãos suando, com o cisne ainda entre elas. «Digamos que ele sofreu… », disse Angela, olhando para o cisne nas mãos trémulas de Fausto, «… um acidente. Ou dois».
Os olhos de Fausto luziram de compreensão, e o cisne caiu-lhe das mãos, estilhaçando-se de vez no chão da oficina. «Como?... Como?!», exclamou horrorizado. «Ninguém mais devia ter esse poder… Pensámos que estava tudo acabado, tudo!».
Angela riu-se, e por uns momentos podia ter voltado a ser uma simples rapariga de 14 anos. Mas quando olhou para Fausto, tinha olhos empedernidos, vazios de humanidade. «O primeiro erro foi o mesmo de sempre… A curiosidade. O meu querido avô quis continuar a investigar sobre estes cristais amaldiçoados e finalmente conseguiu descobrir os rituais que permitiam a captura de determinadas energias nos elementos do cristal. Daí a perceber como capturar a energia espiritual de alguém dentro de um cristal, foi um passo pequeno. Pena que na sua ânsia de descobrir se o processo funcionava, tenha usado a minha mãe como cobaia. Foi o seu segundo erro… Sim, ele disse que tinha sido um acidente… Não me leve a mal, ela não está mal como bailarina, mas continuo a achar que o meu avô faz um cisne de primeira!» Parecia agora ligeiramente aborrecida. «Vou repetir mais uma vez. Onde está a Aqueronte? Se não respondes rápido, podes substituir o meu querido avô nas brincadeiras do meu irmão… Ele tem mesmo mãos de manteiga!», disse ela, franzindo o sobrolho.b
Fausto fechou os olhos, anuindo. «Não fazia ideia… Assim seja… espero que te arrependas e te apercebas de que o poder destes cristais não é para ser usado no mundo de hoje.» Puxou do molho de chaves que trazia à cintura e abriu uma das gavetas de um armário alto de carvalho.
Tirou de lá de dentro um pequeno embrulho, e retirou o pano que o protegia. As asas da Aqueronte brilharam, mais uma vez livres. Evitando olhar o cristal de frente, estendeu-o a Angela, que o recebeu também baixando os olhos. «Bom, velhote, o nosso negócio termina aqui. Foi um prazer não te ter como bibelot…» Virou costas e ia a sair da oficina quando ouviu palavras familiares, embora para qualquer outra pessoa pudessem parecer apenas sussurros numa língua desconhecida. Encarou de novo o mestre Fausto e viu-o de joelhos, com uma mão em cima do pano de onde retirara a Aqueronte. Agora via claramente traçado no pano o selo usado para efectuar a captura de energias em cristal. Nos seus olhos um misto de medo e incredulidade, a última coisa que ouviu foi mestre Fausto a dizer «A curiosidade matou o gato…».
À frente de Fausto restava agora apenas o cristal, tilintando no chão. Rapidamente, cobriu-o com o pano antigo, e voltou a guardá-lo na mesma gaveta. Parecendo dez anos mais velho, Fausto arrastou as pernas cansadas até à porta da loja, e virou a tabuleta de forma a que se visse do lado de fora «Fechado». Por hoje era tudo…
Angela sorriu e olhou em volta. Abrindo os olhos e a boca de espanto, disse «Uau!», quando viu a magnifica colecção de Fausto, normalmente afastada dos olhos dos clientes. Cirandou pela oficina, e às tantas os seus olhos pareceram fixar-se numa figura em especial, com umas asas do cristal mais transparente que vira. «Que animal é aquele atrás deste elefante?», perguntou. «Parece que brilha de forma diferente…». A voz de Fausto soou repentinamente ríspida. «Menina, já tenho aqui o cisne pronto. Acho que é altura de o devolveres à tua mãe.» Angela anuiu com a cabeça, um pouco amedrontada, e voltou à parte pública da loja. «Quanto lhe devo?», inquiriu numa vozinha ainda mais tímida. «Nada, não te preocupes, é por conta da casa» disse Fausto, sorrindo novamente. Disseram adeus, e Angela saiu para o frio mais uma vez.
A segunda vez que Angela entrou na loja foi 7 anos mais tarde. O calor de Agosto fazia da loja mais uma vez um local protector, fresco por causa da penumbra onde os cristais brilhavam. Fausto não reconheceu a jovem de t-shirt de alças preta e calças de ganga senão pelo boneco de cristal que lhe trazia – o cisne, outra vez quebrado. «Finalmente, a cola que lhe pôs há anos cedeu… Desta vez a culpa não foi minha, foi do meu irmãozinho… É tão traquinas como eu era!», disse Angela a rir. Fausto riu-se também calorosamente, e olhou pela segunda vez para aquele cisne torturado por crianças brincalhonas. «Desta vez vai ser mais difícil… A sua mãe devia guardar isto noutro sítio, senão da próxima vez não há mestre Fausto que lhe valha…». E deslocou-se para a oficina. Angela seguiu-o, como fizera 7 anos antes. «Já me tinha esquecido… Tem aqui um verdadeiro tesouro, mestre Fausto», disse. «Aposto que estas prateleiras guardam segredos do arco da velha!». Mas Fausto não respondeu, ocupado com a reparação do velho cisne. «É curioso…», disse Angela poucos momentos depois. «O meu avô também tinha uma paixão enorme por cristais. Talvez o conheça. Victor de Chambourcy?».
Fausto ficou estático. «Sim, conheço», respondeu de forma seca. Angela continuou a falar. «O meu avo falou-me de um cristal especial… pensei que o mestre seria a melhor pessoa para me dizer se tal cristal existe de facto ou não. Aparentemente, o meu avô acreditava que o cristal estava amaldiçoado. A Aqueronte?...», inquiriu.
«Duvido que Victor de Chambourcy falasse desse cristal a seja quem for… muito menos à sua neta. O Conde era um homem extremamente zeloso para com a sua família, e esse cristal de que me fala é tudo menos um objecto seguro. Por isso lhe digo que é melhor ir-se embora e não me procurar mais!», afirmou Fausto, olhando com suspeita para Angela. Mas desta vez a rapariga não arredou pé. De mãos nos bolsos e olhar provocador, disse: «Oh, o avozinho falou, sim. Não havia nada que ele não me dissesse. Quanto ao zelo familiar do meu avô, eu se fosse a si, não tinha tanta certeza…» Aproximou-se de Fausto, olhando-o directamente. «Onde está o cristal?», perguntou.
«O que é que aconteceu ao Conde?! O que é que fizeste ao Conde? Ele nunca iria mencionar a Aqueronte, se não fosse ameaçado…», balbuciou o mestre, mãos suando, com o cisne ainda entre elas. «Digamos que ele sofreu… », disse Angela, olhando para o cisne nas mãos trémulas de Fausto, «… um acidente. Ou dois».
Os olhos de Fausto luziram de compreensão, e o cisne caiu-lhe das mãos, estilhaçando-se de vez no chão da oficina. «Como?... Como?!», exclamou horrorizado. «Ninguém mais devia ter esse poder… Pensámos que estava tudo acabado, tudo!».
Angela riu-se, e por uns momentos podia ter voltado a ser uma simples rapariga de 14 anos. Mas quando olhou para Fausto, tinha olhos empedernidos, vazios de humanidade. «O primeiro erro foi o mesmo de sempre… A curiosidade. O meu querido avô quis continuar a investigar sobre estes cristais amaldiçoados e finalmente conseguiu descobrir os rituais que permitiam a captura de determinadas energias nos elementos do cristal. Daí a perceber como capturar a energia espiritual de alguém dentro de um cristal, foi um passo pequeno. Pena que na sua ânsia de descobrir se o processo funcionava, tenha usado a minha mãe como cobaia. Foi o seu segundo erro… Sim, ele disse que tinha sido um acidente… Não me leve a mal, ela não está mal como bailarina, mas continuo a achar que o meu avô faz um cisne de primeira!» Parecia agora ligeiramente aborrecida. «Vou repetir mais uma vez. Onde está a Aqueronte? Se não respondes rápido, podes substituir o meu querido avô nas brincadeiras do meu irmão… Ele tem mesmo mãos de manteiga!», disse ela, franzindo o sobrolho.b
Fausto fechou os olhos, anuindo. «Não fazia ideia… Assim seja… espero que te arrependas e te apercebas de que o poder destes cristais não é para ser usado no mundo de hoje.» Puxou do molho de chaves que trazia à cintura e abriu uma das gavetas de um armário alto de carvalho.
Tirou de lá de dentro um pequeno embrulho, e retirou o pano que o protegia. As asas da Aqueronte brilharam, mais uma vez livres. Evitando olhar o cristal de frente, estendeu-o a Angela, que o recebeu também baixando os olhos. «Bom, velhote, o nosso negócio termina aqui. Foi um prazer não te ter como bibelot…» Virou costas e ia a sair da oficina quando ouviu palavras familiares, embora para qualquer outra pessoa pudessem parecer apenas sussurros numa língua desconhecida. Encarou de novo o mestre Fausto e viu-o de joelhos, com uma mão em cima do pano de onde retirara a Aqueronte. Agora via claramente traçado no pano o selo usado para efectuar a captura de energias em cristal. Nos seus olhos um misto de medo e incredulidade, a última coisa que ouviu foi mestre Fausto a dizer «A curiosidade matou o gato…».
À frente de Fausto restava agora apenas o cristal, tilintando no chão. Rapidamente, cobriu-o com o pano antigo, e voltou a guardá-lo na mesma gaveta. Parecendo dez anos mais velho, Fausto arrastou as pernas cansadas até à porta da loja, e virou a tabuleta de forma a que se visse do lado de fora «Fechado». Por hoje era tudo…
2 Comments:
Como dizia o William Golding, o melhor do mundo são as crianças (se nunca leram "O Senhor das Moscas" não sabem o que estão a perder...)
A agressividade da candura infantil em estado demencial consegue ter o poder de mover montanhas e subjugar o mais forte guerreiro.
Alas, poor Faust, não estava preparado para lidar com a maldade disfarçada, ainda que esta estivesse carregada de ignorância e sentimentos de vingança que lhe minaram a capacidade de julgar o oponente.
É isso ai Stelita, o melhor do mundo é a inocência... e o que de mais perverso há também!
... estou aqui a pensar se vale a pena estender o prazo do desafio (dia 31, 0:00). Que me dizem?
continuação de boas escritas
Der Uberrr
By Der Überlebende, at 6:16 PM
O Sol, que brilhara tão arrogantemente todo o Verão, incendiando aqui e ali matas inteiras, parecia agora tímido e arrependido, de tão débil que era a sua luz. - gosto muito
By aquelabruxa, at 10:50 AM
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