Luz e Sombra

Sunday, October 09, 2005

DP2 - Cristal; por PiP

E eis que surge a primeira resposta à 3ª edição do Desafio Parte 2 (DP2)
Srs e Sras, deixo-vos com a PiP

desejos de uma óptima semana,

Der U.



Cristal - Parte II

Ângela chegara à aldeia no Verão anterior, a pé, vestida singela e pobremente com uma única sacola a tiracolo. De onde vinha, nunca ninguém soube nem ninguém perguntou, ou, se o fez, não se sabia a resposta. Apareceu na aldeia num dia de feira e foi logo aí que começou a falar com as pessoas da terra. Fez perguntas, ouviu histórias, acalmou crianças impacientes que berravam pelas mães, e ofereceu ajuda a quem parecia precisar. Esta era uma novidade na aldeia. Muito raramente apareciam forasteiros e esta rapariga, de idade indefinida, esperta e viva, que apareceu sozinha, era motivo para especial curiosidade. Muito se falou, mas as perguntas directas foram evitadas e as suas ajudas sempre prontas, bem recebidas.
Ninguém sabia onde Ângela passava a noite, mas com o passar do tempo, a população foi-se habituando a vê-la na rua, logo de manhã, sempre com um sorriso simpático, ainda que algo misterioso. Ângela passava ao dia a prestar os seus serviços a quem lhe desse comida em troca do seu trabalho, e cedo se descobriu que aquela rapariga era uma excelente contadora de histórias. Nos dias de festa do fim do Verão, lá estava ela, ao entardecer, rodeada de crianças, velhos e adultos, a contar mais uma história maravilhosa, no largo da aldeia.
Com a chegada das primeiras chuvas algumas pessoas pensaram se não poderiam dar abrigo àquela desconhecida que já era como se ali tivesse nascido. A partir daí, Ângela teve sempre um pequeno quarto à sua espera, na casa de uma das famílias as aldeia. Mas nem todas as noites lá dormia.

Num destes primeiros dias de Novembro, numa manhã em que não chovia, Ângela foi bater à porta do Mestre Fausto. Já tinha ouvido algumas histórias sobre este homem na aldeia, mas nunca tinha trocado nenhuma palavra com o velho. Seria por isso estranho que o fosse visitar, mas ninguém por ali estava naquela manhã, para se questionar.
O Mestre abriu a porta e desta vez usava o seu rosto de esfinge, talvez tocado pelas dores de ossos que esta altura do ano traz aos mais velhos. No entanto, não escondeu uma expressão de surpresa ao ver Ângela, mas chegou-se para trás para a deixar entrar.
Ângela entrou rapidamente e lançou um olhar rápido à sala escura. As paredes cobertas de prateleiras cheias de relíquias inesperadas e algumas muito curvadas, sob o peso de centenas de livros. Depois do rápido reconhecimento da sala, que não era tão pequena quanto isso, mas cheia de coisas, tomou a liberdade de se sentar num banco de madeira baixo, que estava encostado à parede, sob uma janela.

De início nenhum dos dois falou e nem sequer parecia necessário, ou lógico, dizer alguma coisa. Por fim, Ângela rompeu o silêncio:
- Mestre Fausto, eu sou a Ângela. Fale-me, por favor, da sua colecção de bonecos de cristal.
O velho Mestre teria achado a frase impertinente, se tivesse vindo de outra pessoa qualquer. Mas, estranhamente, sentiu-se bem perante a visão de falar dos seus cristais àquela criatura estranha e inocente, mas que parecia tão segura de si. Já sabia o pouco que havia a saber sobre ela, pelas poucas pessoas com quem falava e que geralmente o punham ao corrente das novidades da vida da pequena aldeia.
- Muito bem, - disse, sentando-se numa cadeira de pau, no centro da sala – traz-me esse cavalo da prateleira ao teu lado.
E assim começou uma série de conversas entre Ângela e o sábio Mestre, qual deles melhor contador de histórias fantásticas, reais ou mais fantasiosas. Ângela passou a ir visitar o Mestre Fausto quando podia e passavam grandes serões os dois, ele a falar, ela a aprender e a questionar, com os olhos a brilhar como os bonecos de cristal à luz das velas.

Passaram-se dias semanas assim, cheias das histórias das figuras de vidro, algumas mais complexas e misteriosas que outras. Percorreram as prateleiras de relíquias, uma a uma, mas houve uma que permaneceu intocada, até uma noite em que Ângela fez a pergunta:
- Mestre, pode falar-me do Tigre e do Grifo Assírio?
- Quem é que te falou deles? O que é que tu sabes?
- Então sou eu que lhe vou agora contar a minha história. O meu pai e a minha mãe eram de uma terra não muito longe daqui. Mas não eram pessoas de ficar a viver ali para sempre, queriam sair e conhecer o mundo. Acabaram por ir para a Índia... Foi lá que o meu pai fez o melhor amigo da sua vida, O senhor Jean. Apesar do nome, ele vivia na Índia desde criança e tinha uma colecção de animais de cristal verdadeiramente admirável. A maioria, ou mesmo todos, eram figurinhas vulgares de elefantes, cavalos... Mas entre eles havia um cristal especial. Chamava-se simplesmente Tigre era efectivamente uma figura de um tigre, mas mais perfeita do que o humanamente possível. Segundo Jean, aquela peça teria pertencido a um inglês, mas nunca soube como é que ele a tinha conseguido.
«O meu pai adorava aquele Tigre, mas sempre teve dificuldade em acreditar nos seus poderes, os quais o Mestre deve conhecer. Evitava olhar demoradamente para a figura só por respeito ao amigo que acreditava no mito. Mas um dia o meu pai ficou sozinho na sala de Jean, com toda a colecção à sua frente. Por mais que quisesse, não conseguia desviar os olhos do Tigre e, afinal, aqueles poderes deviam ser apenas dizeres populares. Quando Jean chegou, já o meu pai estava no chão , em transe, todo transpirado e ofegante. Depois disto nunca o meu pai foi o mesmo e acabou por pôr termo à sua vida, depois de pedir desculpa a minha mãe.»
«Eu nasci na Índia, poucos anos antes disto acontecer. Pouco me lembro, mas a minha mãe conto-me a história. Quando comecei a questionar-me mais a sério, procurei Jean. Estava velho, muito mais velho do que o meu pai seria se vivesse. Não queria contar-me nada, mas acabei por saber que o Tigre já não fazia parte da sua colecção. Também soube que agora possuía uma peça, o Grifo Assírio, com estranhos poderes.»
«Comecei a investigar o desaparecimento do Tigre e acabei aqui, agora.»

Mestre Fausto levantou-se, muito sério, e foi até à prateleira que faltava explorar. Tirou de lá uma figura maravilhosa de um tigre e entregou-a a Ângela. Tão leve e fino que era aquele cristal! E o seu brilho! Mas Ângela levantou a cabeça para o Mestre, logo que este começou a falar.
- A verdade é que o Grifo Assírio não desapareceu há muito tempo, ao contrário do que se pensa. O Conde de Chambourcy deu-mo também juntamente com a Aqueronte. – e apontou para uma grande traça, com uma caveira gravado no dorso, na prateleira do Tigre. – Acontece que o Grifo e a Aqueronte são poderosos só por si, mas quando juntos tornam-se ainda mais destrutivos. Por outro lado, levam à tortura mais profunda quem tente destruir qualquer um deles. A única solução que encontrei foi separá-los, e a maneira mais segura de garantir que não iam parar a mãos que não deviam, era confiar uma deles à alguém que conhecesse bem o seu poder.

«Quando fui à Índia, ouvi por mero acaso, a história que agora concluo ser a do teu pai. Quando a ouvi fiquei logo interessado em conhecer a pessoa que possuía tal cristal, embora ainda tenha pensado que não devia ser alguém muito cuidadoso, para ter deixado acontecer aquilo. Conheci Jean e mudei de ideias a história do amigo estava marcada em cada expressão sua e o peso da responsabilidade e da culpa vergava-o. Ofereci-lhe o Grifo mas quis aceitar. A responsabilidade por um poder daqueles era já monstruosa. Não queria mais. No entanto, odiava aquele Tigre e começou a ter uma ideia. Acabou por propor uma troca e foi isso que fizemos.»

«Como vês, a pose do poder não compensa a responsabilidade que se tem, para se impedir que aconteçam catástrofes.»
Ângela acenou, sem expressão, rodando o Tigre nas mãos e sem olhar para ele, até que o ancião lho retirou cuidadosamente e o colocou na prateleira mais alta, bem lá atrás, escondido pelos brilhos inofensivos do ganso, do lobo e da borboleta.


7 de Outubro de 2005,

PiP

4 Comments:

  • Olá Pip

    Ganda texto, um seguimento que nunca me tinha passado pela cabeça. Original e mais do que isso muito bem escrito. Parabéns, apesar de ainda não haver comments tenho a certeza que já foi lido por muita gente.

    A minha versão ainda anda a cozer na cabecita. A ver se é este fim de semana que sai do forno.

    beijinho

    By Blogger Eduarda Sousa, at 10:45 AM  

  • Cara PiP,

    Desculpa ter demorado tanto tempo a comentar. Pediste-me que o fizesse no mail que enviaste e não o fiz em bom tempo. Estou em falta para contigo.
    Gostei muito da tua resposta ao DP2. É extremamente doce, agradável e muito fresca. Tens a imaginação 'à solta' e a escrita é fluida. Fizeste-me lembrar o "Chocolate" da Joanne Harris, com a chegada da forasteira misteriosa e a inevitabilidade da sobreposição do bem sobre o mal.
    Tou ansioso pelo teu próximo texto!!

    Muito obrigado pelo teu empenho. É uma honra ter-te aqui!

    continuação de boas escritas,

    Der U.

    By Blogger Der Überlebende, at 11:46 PM  

  • Esse é, por acaso um livro que nunca li. Da Joanne Harris só li "A Praia Roubada".

    Estou ansiosa por ler outras respostas ao desafio porque quando comecei a imaginar a Parte II veio quase automaticamente o que escrevi, salvo algumas coisas que fui inventando "pelo caminho". Tenho muita curiosidade por ver outras continuações para a mesmíssima 1ª parte.

    Obrigada por estes comments tão elogiosos!;)
    Bjs

    By Blogger Filipa, at 11:12 AM  

  • :-)
    E injusto, e injusto...com textos assim vamos ter que nos esforcar muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito. Parabens!

    By Blogger Joana, at 12:04 PM  

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