Rádio; 500 palavras para um blog
Rádio.
Ruídos, sons longínquos que se aproximam num crepitar sussurrante, que se vêem aninhar junto do fogo eléctrico do diálogo silencioso de transístores, resistências e condensadores. Ondas fantasmagóricas invadem o éter, impelindo a dança rodopiante da energia com a matéria a assentar arraiais numa placa de sílica, plástico e desenhos de solda, ora plúmbea, ora acobreada. Uma fatia de sol codificada, um rasgão na quietude do turbilhão subatómico do velo invisível que nos rodeia, um convite ao desassossego, uma sedutora teia de nada que em tudo se enrola, que atravessa carne e osso, mente e alma, colide na pedra e reflecte no vidro e no metal, propaga-se, desdobra-se em harmónicos precisos, traz informação no seu ventre, qual cadeia de ADN prenhe de vozes, música... e ruído, um infindável ruído miudinho, sibilante como a serpente de Eva, que assobia como as areias do deserto a girarem no vento quente, áspero e seco da fúria do Saara ou do Sael.
Xavier escutava. Carregava gentilmente no botão, sentido o prazer íntimo do pequeno clique que activava a passagem de corrente pela bobine do transformador, iniciando a cascata de electrões gorgolejante de impulsos alternados. Girava gentilmente o potenciómetro, ajustando o volume até este ser o adequado para os seus frágeis ouvidos de ouvinte esfomeado. Baixo. Gostava do som baixo, em que a emissão se confundia com a estática e o burburinho das frequências sobrepostas. Sintonizando lentamente ao longo de toda a largura de banda, cortando e modelando as ondas electromagnéticas que vertiam pela antena de cobre e alumínio do pequeno receptor de secretária, Xavier vogava e conhecia mundos, descobria maravilhas e calamidades, escutava sábios diligentes e gente execrável e patética a guinchar por atenção, deliciava-se com melodias divinas, canções embaladoras e poemas poderosos como as palavras dos deuses no Olimpo e os tormentos das almas no Hades. Contorcia-se com esgares de repulsão perante a banalidade e mediocridade popularucha dos temas que emitiam nas rádios comerciais, ficava chocado quando escutava “a música da sua preferência”, ou pior, “para escutar com alguma insistência”. Xavier tinha que ir a correr vomitar o asco e desprezo daqueles aqueles ataques de vulgaridade mercantilista, que iriam não só passar impunes, mas ainda ser apaparicados pelos media, numa orgia de interesses e jogos de poder centrados no volume comercial das vendas de discos. Que se danasse o livre gosto de quem estivesse do outro lado, teriam que ser desbastados e educados a escutar “a musica da sua preferência”. Mas Xavier não desistia, a rádio era a sua companhia de eleição, a única no mundo que existia para ele, e ele escutava, percorria a escala de megahertz em onda média e frequência modelada, sempre em busca da companhia ideal para mais uma hora de solidão. Xavier estava só. Tinha apenas por companhia os outros fantasmas que se passeavam pelas ondas da rádio e o seu cadáver putrefacto que jazia sobre o chão da sala há mais de três anos, para o qual ele olhava de tempos a tempos com um olhar desinteressado.
25 de Março de 2005
Der Uberlende
Ruídos, sons longínquos que se aproximam num crepitar sussurrante, que se vêem aninhar junto do fogo eléctrico do diálogo silencioso de transístores, resistências e condensadores. Ondas fantasmagóricas invadem o éter, impelindo a dança rodopiante da energia com a matéria a assentar arraiais numa placa de sílica, plástico e desenhos de solda, ora plúmbea, ora acobreada. Uma fatia de sol codificada, um rasgão na quietude do turbilhão subatómico do velo invisível que nos rodeia, um convite ao desassossego, uma sedutora teia de nada que em tudo se enrola, que atravessa carne e osso, mente e alma, colide na pedra e reflecte no vidro e no metal, propaga-se, desdobra-se em harmónicos precisos, traz informação no seu ventre, qual cadeia de ADN prenhe de vozes, música... e ruído, um infindável ruído miudinho, sibilante como a serpente de Eva, que assobia como as areias do deserto a girarem no vento quente, áspero e seco da fúria do Saara ou do Sael.
Xavier escutava. Carregava gentilmente no botão, sentido o prazer íntimo do pequeno clique que activava a passagem de corrente pela bobine do transformador, iniciando a cascata de electrões gorgolejante de impulsos alternados. Girava gentilmente o potenciómetro, ajustando o volume até este ser o adequado para os seus frágeis ouvidos de ouvinte esfomeado. Baixo. Gostava do som baixo, em que a emissão se confundia com a estática e o burburinho das frequências sobrepostas. Sintonizando lentamente ao longo de toda a largura de banda, cortando e modelando as ondas electromagnéticas que vertiam pela antena de cobre e alumínio do pequeno receptor de secretária, Xavier vogava e conhecia mundos, descobria maravilhas e calamidades, escutava sábios diligentes e gente execrável e patética a guinchar por atenção, deliciava-se com melodias divinas, canções embaladoras e poemas poderosos como as palavras dos deuses no Olimpo e os tormentos das almas no Hades. Contorcia-se com esgares de repulsão perante a banalidade e mediocridade popularucha dos temas que emitiam nas rádios comerciais, ficava chocado quando escutava “a música da sua preferência”, ou pior, “para escutar com alguma insistência”. Xavier tinha que ir a correr vomitar o asco e desprezo daqueles aqueles ataques de vulgaridade mercantilista, que iriam não só passar impunes, mas ainda ser apaparicados pelos media, numa orgia de interesses e jogos de poder centrados no volume comercial das vendas de discos. Que se danasse o livre gosto de quem estivesse do outro lado, teriam que ser desbastados e educados a escutar “a musica da sua preferência”. Mas Xavier não desistia, a rádio era a sua companhia de eleição, a única no mundo que existia para ele, e ele escutava, percorria a escala de megahertz em onda média e frequência modelada, sempre em busca da companhia ideal para mais uma hora de solidão. Xavier estava só. Tinha apenas por companhia os outros fantasmas que se passeavam pelas ondas da rádio e o seu cadáver putrefacto que jazia sobre o chão da sala há mais de três anos, para o qual ele olhava de tempos a tempos com um olhar desinteressado.
25 de Março de 2005
Der Uberlende
9 Comments:
E por que não desenvolveres este personagem para um "psico" estilo Suskind, mas em vez dos cheiros explorares os sons? Era uma boa onda. Gosto do nome, Xavier já tem, em si, o certo ruído de fundo da rádio, tem o XXxxxXXxxxx. Mas escreveste, sobretudo, sobre os sons que te vêm de dentro. Fervilhantes, por sinal. E na tua frequência, a obsessão pela vítima e pelo cadáver, os desejos animais escondidos nas sombras. Um secreto resquício de sangue debaixo da unha de uma mão... que até pode ser a nossa. Continua nesta frequência, gosto das músicas que lá se passam ;)
By Anonymous, at 7:09 PM
Ok, eskeci-me de assinar: Der Igel
By Anonymous, at 7:13 PM
Ulver: "Perdition City" (2000)
6. We Are The Dead
Ghosts presence, ghost music in the radio at night,
when you can't sleep, in the line of shadows
around the glowing red eye.
Voices that talk and talk towards nothing,
so that nothing's hollow role shall not slide
in on the scene in the solitary theater.
And the voices laugh loud, so the candles flicker
and go out, without noticing how dark it becomes.
And he who records the voices of the spirits
of the dead. On the tape filled with buzz and
cosmic noise you can hear their remote voices
form German words; they say: Wir sind die Toten,
which is true, whoever they might be.
The total inaccessibility of silence, it shines in the
wallmirror when you've left, and disappears
when you return. No silence in death's silence
in memoriam, Xavier
By Der Überlebende, at 10:35 PM
Quando li a palavra - transistor -assustei-me! fez-me lembrar as aulas de informática :)
Já fui mais adepta de ouvir rádio, agora só se for mesmo no carro. Os malditos intervalos longos que passam entre as músicas fazem-me desligar imediatamente o aparelho!!! ao ler os teus textos parece-me que acabaste de expulsar de dentro de ti tamanha força, energia incomensurável! fervilhas!
beijinho
By Eduarda Sousa, at 12:04 PM
Xavier era um homem que aspirava a ser Homem. Atreveu-se a tentar usar a mente... mas com o tempo tornou-se demente. Abraçou a solidão para refugiar-se de uma sociedade catatónica, hostil e imesiricordiosa para quem ousa pensar. Pensou até encontrar na morte uma saída. Mas ficou no mesmo sítio, mais corpo menos corpo, enredado na teia que vai teimosamente tecendo, na busca desesperada por um caminho. Xavier ainda não sabe que a sombra daquilo em que se tornou é a contraparte da Luz que se encontra à mais ínfima distância que ele ainda não imagina... ali mesmo ao seu alcance. Xavier não é mto diferente de outros que por aí passam mas no seu isolamento compulsivo ainda não conseguiu despertar para a Vida. Ainda que isso lhe vá custar mto, tal irá acontecer... qdo estiver preparado. Como tudo o que é importante apenas o conseguirá com esforço. E afinal ele vai descobrindo que Existe.
By Anonymous, at 2:26 PM
Xavier era um homem que aspirava a ser Homem. Atreveu-se a tentar usar a mente... mas com o tempo tornou-se demente. Abraçou a solidão para refugiar-se de uma sociedade catatónica, hostil e imesiricordiosa para quem ousa pensar. Pensou até encontrar na morte uma saída. Mas ficou no mesmo sítio, mais corpo menos corpo, enredado na teia que vai teimosamente tecendo, na busca desesperada por um caminho. Xavier ainda não sabe que a sombra daquilo em que se tornou é a contraparte da Luz que se encontra à mais ínfima distância que ele ainda não imagina... ali mesmo ao seu alcance. Xavier não é mto diferente de outros que por aí passam mas no seu isolamento compulsivo ainda não conseguiu despertar para a Vida. Ainda que isso lhe vá custar mto, tal irá acontecer... qdo estiver preparado. Como tudo o que é importante apenas o conseguirá com esforço. E afinal ele vai descobrindo que Existe.
By Anonymous, at 2:31 PM
Xavier.. um conto fantástico por um autor delicadamente talentoso!
By Anonymous, at 5:38 PM
Mais um texto incrível do arrepiante Der Uberlende. Credo, até parece que estou a ver as moscas por cima do cadáver, a apodrecer lentamente, na mais completa solidão, e o rádio a mudar de estação sem alma viva aparentemente para rodar o botão... Creepy!!
By smallworld, at 1:24 PM
Mais um grande texto!
Fechas sempre com chave de ouro.
By Anonymous, at 8:47 PM
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