Amanhecer, por Rosa Oliveira
O Inverno ia longo e muito seco; e ela caminhava num passo curto, rápido e gracioso, balouçando os quadris num movimento cadenciado, como se oferecesse uma dança ao deus da chuva, pedindo-lhe que derramasse na terra ressequida a Benção da água, harmonizando-se com a natureza, como outrora o fizera os seus ancestrais nas longínquas terras de África. Há alguns anos, que vivia nos subúrbios de uma cidade que fora a capital de um império conquistado à custa de homens destemidos e aventureiros, que não recearam navegar por mares desconhecidos, aportando e instalando-se em terras de “gentios”, umas vezes bem recebidos, outras, impondo-se pela força, deixando sementes nas mulheres locais, cujos filhos, séculos depois, como por magia, obedecendo a leis imperceptíveis inscritas na natureza, eram atraídos à terra dos progenitores, reequilibrando o pêndulo dum invisível relógio kármico. O dia amanhecera bonito, o Sol brilhava num céu de um azul intenso, embora se adivinhassem aqui e ali, a esperança das nuvens desejadas. Sentia-se contente, o marido estava novamente empregado, apesar da obra ser longe, e tinha acabado de deixar o filho na ama. Os tacões dos sapatos batiam na calçada numa sonoridade compatível com o coração: “toc”, “toc”, “toc”, parecia que ia para uma festa. Sentia-se grata pelas oportunidades que a vida lhe proporcionara, não quisera que o filho crescesse no “bairro”, ansiava por dar-lhe uma vida digna, por isso arriscara contrair um empréstimo para comprar a casa; também ele já estava naturalizado, pelo que se sentia orgulhosa.
Tinha que se apressar para apanhar a camioneta, era o dia trabalhar na casa daquela senhora excêntrica, que era vegetariana, porque não queria que os animais sofressem, e que vivia numa casa grande, rodeada de livros e plantas. Motivara-a a estudar, dizendo que, a melhor herança que podemos legar a nós próprios, é apreender. Gostava dela, fazia-a sentir-se gente. Cumprimentava-a com dois beijos na face; tinha sempre a água ao lume para o chá, perguntando-lhe: - “Hoje queres chá verde, preto ou de jasmim?”. Aqueles pequenos-almoços eram particularmente reconfortantes; foi nessa intimidade de um conhecimento antigo que não recordavam, de mulher europeia já madura e de jovem mulher africana, que lhe contou parte da sua vida: - Após a independência, os seus pais cabo-verdianos tinham ido tentar a sorte para S.Tomé e Príncipe, onde o governo oferecia terras para quem cultivasse cacau; as condições de vida pouco melhoraram, tiveram sete filhos, mas só dois ficaram na sua companhia, os restantes, emigraram para França ou para Portugal; começara por ir para Paris levada pela irmã mais velha, mas entretanto viajou para Portugal e decidiu ficar, era como se fosse a sua terra. Viu a camioneta a dobrar a esquina, deu uma corrida e entrou ofegante; ouviu um homem com voz rancorosa dizer: - “Mais um preto, malditos sejam, roubam-nos o trabalho e matam os polícias”. Ficou hirta, raramente aquelas manifestações de racismo primário aconteciam, conteve as lágrimas, as pessoas não percebiam, aquela era a sua terra, também ali tinha raízes, era apenas mais escura.
Quando a patroa lhe abriu a porta desatou num pranto baixinho e sentido; ganhou um abraço sem perguntas, e deu-se início ao ritual do chá naquela cumplicidade de conversa que existe entre as mulheres, e que transportam consigo há muitas gerações, fruto da prepotência física e psicológica exercida durante Eras pelo poder masculino; e, desabafou: - “Sinto uma enorme mágoa pelo desdém gratuito de quem não me conhece”. Ouviu a voz amiga dizer: - “A ignorância é a raiz de todos os males, e a história da evolução da humanidade tem sido muito lenta em ciclos de tempo entre idades de Ouro e Idades Negras. Há muitos milhares de anos, o ser humano, ainda era uma espécie de homem animal, deslocava-se em grupos guerreando-se entre si pela obtenção de alimentos e pela posse das mulheres; cobriam-se de peles e dormiam em cavernas para se protegerem das intempéries e dos animais selvagens; depois, descobriram o fogo e inventaram a roda, foi uma enorme conquista. Ainda há alguns séculos havia pequenos estados comandados por senhores feudais, cujo desporto favorito era estarem continuamente em guerra, suportada por uma população de servos, que, nas suas terras, trabalhavam na mais completa escravidão, aos quais, eram exigidos impostos impossíveis de cumprir. Hoje, devido aos meios de comunicação, o mundo é uma aldeia, e há países que se estão a organizar de modo a estarem unidos num ideal comum de solidariedade e partilha, embora, há pouco tempo, entre si, tivesse havido guerras fratricidas, o que actualmente acontece noutros pontos do mundo. Mas, olhando para o passado, podemos entender o futuro. Inexoravelmente, os homens terão que se entender, daqui a alguns séculos ou milénios, surgirá a Nação Terra, onde todos circularão livremente e se fixarão consoante as suas condições e aptidões físicas e psicológicas; a riqueza será equitativamente distribuída e não existirá a ideia imoral de países ricos e pobres, todos terão direito à saúde, educação e cultura, e a noção que alguém é inferior porque é de outra raça, cor ou religião, será considerado anacrónico e primitivo”.
Ficou espantada com tão insólita perspectiva, o discurso tinha sido utópico mas consolador, a dor no coração amaciou. Quem sabe? Talvez na sua terra de origem todos os meninos passassem a andar calçados e a irem a escola; noutros países de África não houvessem crianças subnutridas de barrigas enormes a morrer de fome; na Índia, os pais não mutilassem os filhos para que se tornassem pedintes; na China, não se matassem os recém nascidos do sexo feminino; nalguns países islâmicos africanos, as meninas aos cinco anos não sofressem a ignóbil mutilação de serem excisadas, havendo actualmente 130 milhões de mulheres assinaladas com este estigma; e nos países “desenvolvidos” não existissem meninos anormalmente obesos por excesso de comida, tornando-se adultos intolerantes e xenófobos.
Nesse instante, um lampejo de compreensão pelo passado de aprendizagem, pelo presente de construção, e pelo futuro da esperança anunciada, iluminou-lhe o olhar; por uma causa assim valia o empenho de uma vida...
A Benção invocada cantava nas vidraças da janela, olhou para fora, começara a chover.
por Rosa Oliveira
Tinha que se apressar para apanhar a camioneta, era o dia trabalhar na casa daquela senhora excêntrica, que era vegetariana, porque não queria que os animais sofressem, e que vivia numa casa grande, rodeada de livros e plantas. Motivara-a a estudar, dizendo que, a melhor herança que podemos legar a nós próprios, é apreender. Gostava dela, fazia-a sentir-se gente. Cumprimentava-a com dois beijos na face; tinha sempre a água ao lume para o chá, perguntando-lhe: - “Hoje queres chá verde, preto ou de jasmim?”. Aqueles pequenos-almoços eram particularmente reconfortantes; foi nessa intimidade de um conhecimento antigo que não recordavam, de mulher europeia já madura e de jovem mulher africana, que lhe contou parte da sua vida: - Após a independência, os seus pais cabo-verdianos tinham ido tentar a sorte para S.Tomé e Príncipe, onde o governo oferecia terras para quem cultivasse cacau; as condições de vida pouco melhoraram, tiveram sete filhos, mas só dois ficaram na sua companhia, os restantes, emigraram para França ou para Portugal; começara por ir para Paris levada pela irmã mais velha, mas entretanto viajou para Portugal e decidiu ficar, era como se fosse a sua terra. Viu a camioneta a dobrar a esquina, deu uma corrida e entrou ofegante; ouviu um homem com voz rancorosa dizer: - “Mais um preto, malditos sejam, roubam-nos o trabalho e matam os polícias”. Ficou hirta, raramente aquelas manifestações de racismo primário aconteciam, conteve as lágrimas, as pessoas não percebiam, aquela era a sua terra, também ali tinha raízes, era apenas mais escura.
Quando a patroa lhe abriu a porta desatou num pranto baixinho e sentido; ganhou um abraço sem perguntas, e deu-se início ao ritual do chá naquela cumplicidade de conversa que existe entre as mulheres, e que transportam consigo há muitas gerações, fruto da prepotência física e psicológica exercida durante Eras pelo poder masculino; e, desabafou: - “Sinto uma enorme mágoa pelo desdém gratuito de quem não me conhece”. Ouviu a voz amiga dizer: - “A ignorância é a raiz de todos os males, e a história da evolução da humanidade tem sido muito lenta em ciclos de tempo entre idades de Ouro e Idades Negras. Há muitos milhares de anos, o ser humano, ainda era uma espécie de homem animal, deslocava-se em grupos guerreando-se entre si pela obtenção de alimentos e pela posse das mulheres; cobriam-se de peles e dormiam em cavernas para se protegerem das intempéries e dos animais selvagens; depois, descobriram o fogo e inventaram a roda, foi uma enorme conquista. Ainda há alguns séculos havia pequenos estados comandados por senhores feudais, cujo desporto favorito era estarem continuamente em guerra, suportada por uma população de servos, que, nas suas terras, trabalhavam na mais completa escravidão, aos quais, eram exigidos impostos impossíveis de cumprir. Hoje, devido aos meios de comunicação, o mundo é uma aldeia, e há países que se estão a organizar de modo a estarem unidos num ideal comum de solidariedade e partilha, embora, há pouco tempo, entre si, tivesse havido guerras fratricidas, o que actualmente acontece noutros pontos do mundo. Mas, olhando para o passado, podemos entender o futuro. Inexoravelmente, os homens terão que se entender, daqui a alguns séculos ou milénios, surgirá a Nação Terra, onde todos circularão livremente e se fixarão consoante as suas condições e aptidões físicas e psicológicas; a riqueza será equitativamente distribuída e não existirá a ideia imoral de países ricos e pobres, todos terão direito à saúde, educação e cultura, e a noção que alguém é inferior porque é de outra raça, cor ou religião, será considerado anacrónico e primitivo”.
Ficou espantada com tão insólita perspectiva, o discurso tinha sido utópico mas consolador, a dor no coração amaciou. Quem sabe? Talvez na sua terra de origem todos os meninos passassem a andar calçados e a irem a escola; noutros países de África não houvessem crianças subnutridas de barrigas enormes a morrer de fome; na Índia, os pais não mutilassem os filhos para que se tornassem pedintes; na China, não se matassem os recém nascidos do sexo feminino; nalguns países islâmicos africanos, as meninas aos cinco anos não sofressem a ignóbil mutilação de serem excisadas, havendo actualmente 130 milhões de mulheres assinaladas com este estigma; e nos países “desenvolvidos” não existissem meninos anormalmente obesos por excesso de comida, tornando-se adultos intolerantes e xenófobos.
Nesse instante, um lampejo de compreensão pelo passado de aprendizagem, pelo presente de construção, e pelo futuro da esperança anunciada, iluminou-lhe o olhar; por uma causa assim valia o empenho de uma vida...
A Benção invocada cantava nas vidraças da janela, olhou para fora, começara a chover.
por Rosa Oliveira
2 Comments:
A beleza, profundidade e maturidade deste fascinante pedaço de literatura não está ao alcance de qualquer novato nestas andanças da palavra escrita. Estamos a milhas da poesia 'adolescente' auto-centrada (por toda a beleza íntima que tenha, não é discutível)e estamos noutra dimensão que não a do devaneio litérário momentâneo (é mais a minha cara...). Estamos no campo da experiência de vida a ganhar corpo e forma, da observação cuidada do mundo e dos seus temas, da meditação profunda sobre o que é "esta coisa" da humanidade.
Li e voltei a ler.
Tanta riqueza não é fácil de apreender com uma simples passagem de olhos rápida para aniquilar um pouco de uma tarde ou noite de Domingo.
Entre a emoção, o alerta e a esperança, fiquei a vaguear nas palavras escritas. Escritas por quem as soube tão bem escrever.
Obrigado Rosa,
voltarei a ler, mais tarde, para não me esquecer do som da chuva na vidraça
Der Uberlende
By Der Überlebende, at 12:53 AM
Leio e releio este texto vezes sem fim...
Tudo me parece tão próximo e real
beijinho
By Eduarda Sousa, at 2:29 PM
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