O Intervalo, por Isabel Maia
A vida acontece no intervalo do que planeamos e o que acontece são os sonhos que nos esquecemos de sonhar. Temos tendência a racionalizar e a mecanizar a existência considerando o sonho uma dimensão de menoridade, própria de quem anda alheado da vida ou, então, a quem ela, em si, pouco ou nada diz. A dimensão do cálculo inerente à nossa condição de sapiens, arremessa-nos para o futuro mais ou menos longínquo onde tem lugar o plano. O plano alicia…e porquê? O plano é o “ainda não” e, simultaneamente, aquilo que é suposto controlar e dominar. O plano é o indisponível adiado que se julga poder controlar. E não é curioso que esse indisponível (justamente por sê-lo) se torna naquilo que permanentemente se modifica sem ter nunca chegado, algum dia, a ser? “Mudei de planos”. Quantas vezes o dizemos ou ouvimos dizer? Estamos a mudar o que nunca foi. Em rigor não estamos a mudar nada, rigorosamente nada, apenas a afirmar (ainda que a nível quase inconsciente) uma vontade de domínio e de controlo.
O plano não está no passado. No passado está quase tudo o que escapou ao plano, em última análise, no passado estamos NÓS. Os planos ficaram lá onde nunca chegaram a ser e nós fomos, simplesmente fomos por entre tudo o que planeamos. Não há autenticidade no plano. O plano é do domínio da intenção. A vida joga-se no momento da acção, a vida joga-se nos intervalos do previsto porque, em última instância, a vida é o que não controlamos. É do domínio do espontâneo, do incontornável. Por isso ela assusta. Escorre por entre os dedos e não sabemos suportar o que é fugaz. Queremos perpetuar-nos, tornar-nos presentes para sempre, de alguma forma e em algum lugar. Esquecemo-nos do intervalo.
À noção de intervalo está sempre associada a e pausa, isto é, o intervalo é o que está depois do que se fez e antes do que se vai fazer. É o momento, por definição, neutro, infrutífero, estéril, mas tão desejado: o intervalo das aulas, do filme, da tarde de estudo ou de trabalho. Valorizamos o intervalo enquanto condição para a continuidade do sucesso do que estávamos a fazer ou, até, para que este tenha lugar: “Vamos parar um pouco?”; “Por que não fazer um intervalinho?”; “Está na hora do intervalo” (atenção, o intervalo, às vezes, tem hora!!!)…quantas vezes dizemos ou ouvimos dizer isto? O intervalo é o lugar da autenticidade, da vida. Nós somos efectivamente o que somos, no intervalo do que fazemos. Se pensarmos um pouco melhor apercebemo-nos de que, se calhar, não conhecemos ninguém (ou então, poucas pessoas) que num intervalo do que quer que seja prefiram a total solidão, o encontro consigo mesmas. Ao intervalo está associada a leveza. Não é suposto o confronto com nós mesmos. A verdade é que é exactamente ao contrário! É no intervalo que a vida acontece. É no intervalo que somos. O intervalo é o lugar da solidão por excelência que a todo o custo procuramos evitar trazendo sempre mais alguém ou mais alguma coisa para o nosso intervalo. Parece que não é suposto estar-se só no intervalo!
E assim termino, eu própria, o meu intervalo. Escrevi este texto num intervalo do trabalho. Nada estava planeado. Nem o trabalho, nem o texto, nem o intervalo. Através do texto desfizer qualquer plano. Através do texto aconteci. No intervalo SOU.
Isabel Maia
Maio/05
O plano não está no passado. No passado está quase tudo o que escapou ao plano, em última análise, no passado estamos NÓS. Os planos ficaram lá onde nunca chegaram a ser e nós fomos, simplesmente fomos por entre tudo o que planeamos. Não há autenticidade no plano. O plano é do domínio da intenção. A vida joga-se no momento da acção, a vida joga-se nos intervalos do previsto porque, em última instância, a vida é o que não controlamos. É do domínio do espontâneo, do incontornável. Por isso ela assusta. Escorre por entre os dedos e não sabemos suportar o que é fugaz. Queremos perpetuar-nos, tornar-nos presentes para sempre, de alguma forma e em algum lugar. Esquecemo-nos do intervalo.
À noção de intervalo está sempre associada a e pausa, isto é, o intervalo é o que está depois do que se fez e antes do que se vai fazer. É o momento, por definição, neutro, infrutífero, estéril, mas tão desejado: o intervalo das aulas, do filme, da tarde de estudo ou de trabalho. Valorizamos o intervalo enquanto condição para a continuidade do sucesso do que estávamos a fazer ou, até, para que este tenha lugar: “Vamos parar um pouco?”; “Por que não fazer um intervalinho?”; “Está na hora do intervalo” (atenção, o intervalo, às vezes, tem hora!!!)…quantas vezes dizemos ou ouvimos dizer isto? O intervalo é o lugar da autenticidade, da vida. Nós somos efectivamente o que somos, no intervalo do que fazemos. Se pensarmos um pouco melhor apercebemo-nos de que, se calhar, não conhecemos ninguém (ou então, poucas pessoas) que num intervalo do que quer que seja prefiram a total solidão, o encontro consigo mesmas. Ao intervalo está associada a leveza. Não é suposto o confronto com nós mesmos. A verdade é que é exactamente ao contrário! É no intervalo que a vida acontece. É no intervalo que somos. O intervalo é o lugar da solidão por excelência que a todo o custo procuramos evitar trazendo sempre mais alguém ou mais alguma coisa para o nosso intervalo. Parece que não é suposto estar-se só no intervalo!
E assim termino, eu própria, o meu intervalo. Escrevi este texto num intervalo do trabalho. Nada estava planeado. Nem o trabalho, nem o texto, nem o intervalo. Através do texto desfizer qualquer plano. Através do texto aconteci. No intervalo SOU.
Isabel Maia
Maio/05
8 Comments:
Nunca tinha pensado na vida em termos de intervalos, mas é interessante essa tua interpretaçao. Gosto de linguística, e, coincidentemente, há dias andava a pensar (já nao sei porquê, mas penso que andava a pensar escrever algo sobre intervalos - juro!) na origem da palavra, e como sou praticamente bilingue também pensei nela em inglês (intermission), que também traduz para português como intermissao. Fiz estas contas de cabeça:
intermissao = inter + missao = missao interior
intervalo = inter + valo = valo interior
valo = fosso
valar = abrir fossos em volta, cercar de vala, murar, fortificar, defender
interrupçao = inter + erupçao = erupçao interior
Resumindo, será que a origem da palavra intervalo vem de defesa interior, assim como intermissao vem de missao (análise) interior, assim como interrupçao vem de erupçao (explosao do conhecimento)interior?
By aquelabruxa, at 12:23 PM
O teu texto faz-me lembrar uma frase muito inteligente do John Lennon: "Life is what happens while you're making other plans."
By Anonymous, at 2:49 PM
Embora ache esta analise muito interessante, nao concordo quando diz que nos somos o fugiu aos nossos planos. Esses planos sao tambem parte de nos e muitas vezes temos perfeita consciencia de que nunca irao ser realizados. Nao somos so o que fazemos, somos tambem o que pensamos...
By Inês, at 6:34 PM
e também somos o que perdemos, e também somos o que nunca fomos... ;)
olha inês gosto muito da tua foto, está muito gira.
By aquelabruxa, at 8:23 PM
Olá Isabel, acho a tua reflexão muito interessante e profunda, digna de uma filósofa ;-)
Por estranho que pareça, faz-me lembrar aquilo de que somos feitos a nível mais denso... o corpo físico é basicamente constituído por espaços... ou «intervalos», não é. Em termos relativos, é abismal a distância que dista entre o núcleo atómico e os electrões que gravitam à sua volta. O que existe no «meio»? Espaço, vazio, nada...? Pois é, o nada e o vazio são filosoficamente inconcebíveis, logo...
Existimos mesmo, também, nos intervalos... :)
By Anonymous, at 12:09 PM
Muito interessante e provocador o teu texto...
Já o tinha lido antes de ser publicado no blog (privilégios de amigo, :) mas, ainda hoje nem sei bem como o comentar. Tocou-me muito, muito pessoalmente, pois identifiquei-me plenamente com o conceito de "no intervalo EU SOU". De facto, é no intervalo que sucedem as coisas mais mirambolantes, interessantes ou simplesmente inovadoras na minha vida.
Brilhante, simplesmente brilhante!
muito obrigado por partilhares conosco as tuas reflexões,
Der Uberlende
By Der Überlebende, at 12:59 AM
eu farto-me de fazer planos que nunca acontecem por mais breves que sejam! Mesmo quando faço o plano para um tarde de estudo, metade fica sempre por estudar : (((( mais vale tentar viver nos intervalos:)))
beijinho
By Eduarda Sousa, at 3:06 PM
É preciso imaginar-te feliz, no intervalo?
By Anonymous, at 12:33 PM
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