Luz e Sombra

Sunday, May 22, 2005

Pressão... (II parte); em forma D500, por booklover

Tinha apontado a caçadeira para a testa, as garras tremiam-me, gotas de fadiga escorriam pelo rosto, fechei os olhos: o meu último desejo era expirar na ignorância. Mas no último milionésimo de segundo uma força oculta desviou-me o canudo da testa. Bum. Fragmentos de cal caíram-me em cima.

A desordem instalou-se, em menos de uma rajada de bafo já tinha a policia a bater-me à porta. Apático das ideias permaneci deitado, ainda me tentei levantar mas os músculos não me obedeciam. A campainha não parava de tocar: um som cáustico e agonizante entrava pelos ouvidos e fazia ressonância por todo o corpo que tiritava como se estivesse a ser electrocutado. Até que a policia derrubou a porta, encontraram-me espraiado no chão, coberto de pó como uma aparição.

Quando recuperei os sentidos estava deitado numa cama do hospital psiquiátrico. A quantas horas ou dias estava ali, não sei! Diagnóstico reservado: depressão profunda com tendências suicidas fundamentada pela perda de um ente querido. Deram-me alta passado uma semana.

Ao regressar a casa fui recebido com uma intrépida prenda: Abaixo-Assinado por todos os inquilinos do prédio a pedirem para eu abandonar o apartamento logo que me fosse possível pois deixaram de se sentir seguros com a minha presença.

Sem o mínimo de discórdia, peguei nas minhas coisas e abandonei a casa nesse mesmo dia. Não havia mais nada que me prendesse àquele espaço, a Elisa tinha partido, ao abandonar tudo o que me recordava a sua presença iria aguentar menos dolorosamente a sua falta. Enganei-me, ao partir a dor aumentou mais. O sofá onde passei horas intermináveis com ela, o parapeito onde ela gostava de se aninhar… tudo ficou para trás… apenas a tigela vazia me acompanhou.

Dormi a primeira noite num banco do jardim, decidido a procurar casa no próximo dia. Estava de baixa no trabalho, não tinha com que me preocupar. Acontece que o tempo foi passando, as horas arrastando-se, e eu acostumando-me a viver na rua. Chegou o dia em que deixei de querer uma casa para viver, não fazia sentido, ter um sofá para ver televisão sozinho, sem a companhia da Elisa, seria pavoroso chegar a casa todos os dias e não encontrar ninguém à minha espera. Perdi a conta ao tempo, passei a deambular pela cidade e a ir comer duas vezes por dia a um centro de caridade governado por Frades da paróquia.

Sempre que um gato se atravessava no meu caminho entrava numa imbecilidade intensa, comecei a ter delírios: a Elisa acompanhava-me para todo o lado e era tão real quanto eu próprio. Enquanto fazia as minhas caminhadas habituais conversava com ela, afagava-lhe o pêlo, ouvia-a a contar as suas aventuras. As pessoas começaram a olhar-me com um ar desconfiado e mais tarde via-lhes ódio nos olhos. Mas isso não me importava, desde que tivesse a Elisa ao meu lado. Formávamos um ser uno, cada um de nós era metade do outro e sempre que eu me deitava deixava-a enrolar-se nos meus pés.
Finalmente era Feliz!

6 Comments:

  • ps- desde que este desafio foi lançado que ouvia uma voz na cabeça a dizer-me: tu não consegues, tu não consegues, tu não consegues...
    Decidi fazer ouvidos moucos e tentar escrever o melhor que conseguia!

    By Blogger Eduarda Sousa, at 5:33 PM  

  • Conseguiste!

    ...e ainda hás-de conseguir muuuito mais!

    acredita em ti! Eu acredito!

    beijinhos

    By Blogger Der Überlebende, at 6:39 PM  

  • Booklover, a tua escrita esta cada dia melhor, mais desenvolta, mais livre, mais rica. E tudo porque (acho eu) te libertas cada vez mais das tuas insegurancas enquanto escritora. Aceita este texto como (mais uma) prova de que tu consegues, sim senhora. E nao digo isto para ser simpatica! Acho esta versao muito possivel, na realidade. Os sem-abrigo que vemos e ignoramos na rua tem todos um passado, alguns bastante mais interessante do que o vulgar pai de familia de classe media. Beijinhos

    By Blogger smallworld, at 1:10 PM  

  • E, na minha opinião, conseguiste muito bem :) Gostei muito do texto. A forma como foi escrito e também a creatividade que tem.
    "Diagnóstico reservado: depressão profunda com tendências suicidas fundamentada pela perda de um ente querido. Deram-me alta passado uma semana." esta frase e os olhares desconfiados e com ódio das pessoas que passam, demonstram bem a insensibilidade que o ser humano por vezes pode ter, ignorando os mundos interiores do outro sendo arrogante e supérfulo. E esquecem-se que todos tem uma história.
    O personagem é daquelas pessoas que perde a força, a vontade, deixando-se deambular pela vida e, muitas vezes, alimentando-se apenas da imaginação. É triste saber que os apoios são tão poucos e que muitas pessoas "não estão nem aí".
    Beijinho*

    By Blogger SweetSerenity, at 9:33 PM  

  • achei o teu texto magnifico!! so o li agora :x ai ai foram tantas as versoes que por aqui passaram que se tornou dificil le-las a todas, e a tua foi uma das que se me escapou, ta mesmo fantastico, nao me vou por praqui com analises baratas, mm porque nao tenho jeito pra elas, mas soou-me tao realista que... bem... gostei mesmo :D

    muitos parabens ;)
    beijinhos****

    By Blogger Perséfone, at 12:09 PM  

  • Não sei porque dizes que não consegues. O teu texto é um dos meus preferidos. E por estranho que pareça, acho que a fronteira entre a ficção e a realidade é bem ténue. Há muita gente a viver na rua com histórias parecidas. Não porque tentaram o suicidio pela perda de um gato mas porque viviam na solidão extrema, naquela linhazinha estreita entre a lucidez e a loucura. E será loucura?
    Parabéns. Está muito fluido e humano.

    By Anonymous Anonymous, at 10:02 PM  

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