Pressão... (Parte II); por Shakti
Recebemos mais um texto para o desafio Parte II. Obrigado Shakti
No seu mundo não havia espaço para si.
As sirenes ouvem-se, estridentes, cada vez mais perto. Há água por todo o lado, o tiro havia sido certeiro: nos canos instalados por debaixo do lava-louça.
A vizinha estava histérica, apavorada, endiabrada. Espumava, gritando, enfurecida e saturada por ter de morar no mesmo edifício daquele lunático, dizia.
Ele, imóvel, ainda de espingarda na mão, apontada para baixo, olhava fixamente para os tornozelos cobertos de água e o chão de destroços. O estrago era grande.
Nos segundos que se seguiram ao disparo, toda a sua deplorável existência passou-lhe alucinadamente por entre os dedos. Perante a confusão permaneceu impávido e sereno como se esperasse pelo mais absoluto silêncio. Até que por fim o conseguiu, e num momento completamente banido de tudo e de todos, só, no seu próprio vazio, sozinho, no seu espaço caótico, apenas acompanhado pelo turbilhão de vozes que lhe martelavam o espírito, atravessa um deserto de profunda catarse e chora duas horas sem parar. É então que, quase sem dar conta, exorciza um a um, todos os seus demónios e ensurdecedoramente berra para toda uma vida sem sal, cheia de medos e receios, sem riscos, sem coragem, sem atitude nem reacções, uma vida despercebida, vulgar, insignificante, comezinha, conformista.
Elisa, a sua gata, era o seu espelho, e na feliz convivência de 11 anos, revia-se nela todos os dias como um ser supostamente feliz. Mas não era. Nunca foi. Porque não foi ousado, curioso, audaz, porque se acomodou a um quotidiano banal, mesquinho, cobarde, desinteressante, solitário, agrilhoado ao cliché de se arrepender do que não fez. Toda a sua vida se resumia a uma conjunção condicional: “Se”. “Se tivesse casado...”, “Se tivesse filhos...”, “Se tivesse amado...”, “Se tivesse sido assim e assado...”, “Se tivesse feito isto e aquilo, nesta e naquela altura...”. Ele era um imenso “SE”!
Passou um mês. No balcão recolhe o bilhete e segue caminho para a porta de embarque. Para trás não olha porque deixa tudo o que não quer, nem precisa: a casa, o trabalho, o que foi mas nunca quis ser, e o mais importante: o “se”. Finalmente conseguiria apagar aquelas duas destruidoras letras. Até da sua roupa se viu livre. A única bagagem que segue consigo, para além da sua carteira com os seus documentos, é o atlas que havia aberto na semana passada, completamente ao acaso, a fim de ditar o seu destino.
Terra do Fogo. Não sabia nada acerca desse lugar de nome curioso, nem sequer tinha ouvido falar, mas fez questão de tentar não saber. Preferia chegar assim, despido de qualquer tipo de informação, à descoberta. De si, dos outros, de coisas, lugares, pessoas, situações, momentos, mas essencialmente daquele que havia enterrado uma mera conjunção que condicionara toda a sua vida.
Não tinha 51 anos, tinha 15. O Mundo era seu.
Shakti
No seu mundo não havia espaço para si.
As sirenes ouvem-se, estridentes, cada vez mais perto. Há água por todo o lado, o tiro havia sido certeiro: nos canos instalados por debaixo do lava-louça.
A vizinha estava histérica, apavorada, endiabrada. Espumava, gritando, enfurecida e saturada por ter de morar no mesmo edifício daquele lunático, dizia.
Ele, imóvel, ainda de espingarda na mão, apontada para baixo, olhava fixamente para os tornozelos cobertos de água e o chão de destroços. O estrago era grande.
Nos segundos que se seguiram ao disparo, toda a sua deplorável existência passou-lhe alucinadamente por entre os dedos. Perante a confusão permaneceu impávido e sereno como se esperasse pelo mais absoluto silêncio. Até que por fim o conseguiu, e num momento completamente banido de tudo e de todos, só, no seu próprio vazio, sozinho, no seu espaço caótico, apenas acompanhado pelo turbilhão de vozes que lhe martelavam o espírito, atravessa um deserto de profunda catarse e chora duas horas sem parar. É então que, quase sem dar conta, exorciza um a um, todos os seus demónios e ensurdecedoramente berra para toda uma vida sem sal, cheia de medos e receios, sem riscos, sem coragem, sem atitude nem reacções, uma vida despercebida, vulgar, insignificante, comezinha, conformista.
Elisa, a sua gata, era o seu espelho, e na feliz convivência de 11 anos, revia-se nela todos os dias como um ser supostamente feliz. Mas não era. Nunca foi. Porque não foi ousado, curioso, audaz, porque se acomodou a um quotidiano banal, mesquinho, cobarde, desinteressante, solitário, agrilhoado ao cliché de se arrepender do que não fez. Toda a sua vida se resumia a uma conjunção condicional: “Se”. “Se tivesse casado...”, “Se tivesse filhos...”, “Se tivesse amado...”, “Se tivesse sido assim e assado...”, “Se tivesse feito isto e aquilo, nesta e naquela altura...”. Ele era um imenso “SE”!
Passou um mês. No balcão recolhe o bilhete e segue caminho para a porta de embarque. Para trás não olha porque deixa tudo o que não quer, nem precisa: a casa, o trabalho, o que foi mas nunca quis ser, e o mais importante: o “se”. Finalmente conseguiria apagar aquelas duas destruidoras letras. Até da sua roupa se viu livre. A única bagagem que segue consigo, para além da sua carteira com os seus documentos, é o atlas que havia aberto na semana passada, completamente ao acaso, a fim de ditar o seu destino.
Terra do Fogo. Não sabia nada acerca desse lugar de nome curioso, nem sequer tinha ouvido falar, mas fez questão de tentar não saber. Preferia chegar assim, despido de qualquer tipo de informação, à descoberta. De si, dos outros, de coisas, lugares, pessoas, situações, momentos, mas essencialmente daquele que havia enterrado uma mera conjunção que condicionara toda a sua vida.
Não tinha 51 anos, tinha 15. O Mundo era seu.
Shakti
1 Comments:
he, he, gostei da exorcizão dos demónios, dos "se" e da nova vida, de uma verdadeira, real, cheia de sentido e significado!
vai ser impossível escolher o melhor texto :)))) Iol
beijinho
By Eduarda Sousa, at 1:34 PM
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