DCP - O Pintainho (por booklover)
Desde que a mamã partiu com o namorado novo que a nossa vida se tornou num inferno. O papá engelhou-se na bebida, todas as noites tenho de lhe dar um banho e enfiá-lo na cama, isto se ele estiver sem forças para me espancar. O seu cheiro a suor, álcool e sexo entranham-se na minha roupa e começo a sentir uma dor agrilhoada nas entranhas a pulsar ferozmente.
A mágoa asfixia-me o peito, tenho os sentidos entorpecidos e as feridas da alma em chagas vivas.
Durante a noite interminável e vazia oiço vozes mordazes que ecoam na minha cabeça até me deixarem louco de raiva, sobressaltado e com medo, muito medo.
Todos os dias sou humilhado e enxovalhado na escola. Quando me chamam maricas, uma raiva incontrolável começa a cozer dentro de mim e metamorfoseia-se numa fístula espinhosa que carrego nos ombros. Observo-os a jogar futebol: a sujidade, o suor enojam-me, recolho-me nos muros que construí em meu redor.
Houve um dia em que ao regressar da escola atravessou-se um pintainho no meu caminho, instintivamente dei-lhe um pontapé. O pinto ainda deu umas voltas estonteantes antes do estertor final: caiu teso no chão. Deitei-me ao seu lado, a minha respiração provocava uma brisa que lhe levantava suavemente as penas. Não sei quanto tempo fiquei deitado ao seu lado, as lágrimas corriam-me pela face até que uma pequenina e bruxuleante luzinha luminosa me começou a aquecer intimamente. Foi assim que uma realidade espantosamente transparente chegou até mim: Eu era Deus. Podia facilmente acabar com a VIDA, tinha acabado de o fazer com o Pintainho!
Pela primeira vez desde que a mãe partiu senti-me feliz, uma inconcebível alegria e força descomunal apoderaram-se de mim, senti nas minhas mãos um Poder Indestrutível, Inquebrável e Inabalável. Todo o meu medo, fraqueza, angústia e amargura desapareceram repentinamente. Senti-me apaziguado interiormente, agora sabia o que tinha a fazer.
Louco de alegria fui a correr para casa, na mesinha de cabeceira do pai estava a caçadeira que ele tão bem guardava. O cabrão ia agora ver quem mandava, quem era o Rei! Iria sentir toda a minha força e poder, iria olhar-me todo acagaçado nos olhos e reparar que eu era algo mais do que um saco de boxe.
Coloquei Beethoven a tocar no volume máximo, não queria pensar nem distrair-me, tinha uma missão para cumprir. Finalmente tinha um objectivo a atingir, o frágil Jeremias sem metas, desta vez tinha algo a realizar. O pai chegou ao início da tarde aos ziguezagues, ficou atónico e perplexo ao encontrar a casa mergulhada em Beethoven no seu expoente máximo. Ia ter um manjar celestial: uma bala no meio dos cornos misturada com álcool. Nham Nham…
Quando chegou à sala vinha já com o punho cerrado e a espumar raiva mas eu nem lhe dei tempo de levantar o braço: apontei-lhe a caçadeira e aproximei-me até ele ficar de joelhos com o cano no meio da testa. Vi o Terror nos seus olhos e antes de começar a fraquejar da minha missão disparei até acabar com todos os cartuchos.
Olhei para a sua face irreconhecível e interroguei-o: ficas-te agora a saber quem é Deus Todo Poderoso?
Sabia o que me esperava segui… Abasteci-me de balas na cave e parti para a escola. Todos os que se atravessaram no meu caminho foram abatidos, grandes cães. O pânico nos seus rostos estúpidos e anormais excitava-me a adrenalina. Procurei todos os cabrões que me vexaram durante todos estes anos. Colegas, conhecidos, desconhecidos, professores, empregados… não distingui credo, raça, cor dos olhos… foi tudo o que me apareceu à frente: afinal sou Deus e a TODOS amo igual.
Depois perdi os sentidos, quando acordei estava no hospital psiquiátrico de uma prisão de alta segurança. Apanhei prisão perpétua mas desde os incidentes que não pronunciei palavra: tudo o que tinha a dizer foi dito quando arrebentei os miolos a todos! Todos ficaram a saber o que precisavam de saber:
Eu sou DEUS!
Música: Jeremy - Pearl Jam
Livro: Aparição - Virgílio Ferreira
Filme: Bowling for Columbine - Michael Moore
A mágoa asfixia-me o peito, tenho os sentidos entorpecidos e as feridas da alma em chagas vivas.
Durante a noite interminável e vazia oiço vozes mordazes que ecoam na minha cabeça até me deixarem louco de raiva, sobressaltado e com medo, muito medo.
Todos os dias sou humilhado e enxovalhado na escola. Quando me chamam maricas, uma raiva incontrolável começa a cozer dentro de mim e metamorfoseia-se numa fístula espinhosa que carrego nos ombros. Observo-os a jogar futebol: a sujidade, o suor enojam-me, recolho-me nos muros que construí em meu redor.
Houve um dia em que ao regressar da escola atravessou-se um pintainho no meu caminho, instintivamente dei-lhe um pontapé. O pinto ainda deu umas voltas estonteantes antes do estertor final: caiu teso no chão. Deitei-me ao seu lado, a minha respiração provocava uma brisa que lhe levantava suavemente as penas. Não sei quanto tempo fiquei deitado ao seu lado, as lágrimas corriam-me pela face até que uma pequenina e bruxuleante luzinha luminosa me começou a aquecer intimamente. Foi assim que uma realidade espantosamente transparente chegou até mim: Eu era Deus. Podia facilmente acabar com a VIDA, tinha acabado de o fazer com o Pintainho!
Pela primeira vez desde que a mãe partiu senti-me feliz, uma inconcebível alegria e força descomunal apoderaram-se de mim, senti nas minhas mãos um Poder Indestrutível, Inquebrável e Inabalável. Todo o meu medo, fraqueza, angústia e amargura desapareceram repentinamente. Senti-me apaziguado interiormente, agora sabia o que tinha a fazer.
Louco de alegria fui a correr para casa, na mesinha de cabeceira do pai estava a caçadeira que ele tão bem guardava. O cabrão ia agora ver quem mandava, quem era o Rei! Iria sentir toda a minha força e poder, iria olhar-me todo acagaçado nos olhos e reparar que eu era algo mais do que um saco de boxe.
Coloquei Beethoven a tocar no volume máximo, não queria pensar nem distrair-me, tinha uma missão para cumprir. Finalmente tinha um objectivo a atingir, o frágil Jeremias sem metas, desta vez tinha algo a realizar. O pai chegou ao início da tarde aos ziguezagues, ficou atónico e perplexo ao encontrar a casa mergulhada em Beethoven no seu expoente máximo. Ia ter um manjar celestial: uma bala no meio dos cornos misturada com álcool. Nham Nham…
Quando chegou à sala vinha já com o punho cerrado e a espumar raiva mas eu nem lhe dei tempo de levantar o braço: apontei-lhe a caçadeira e aproximei-me até ele ficar de joelhos com o cano no meio da testa. Vi o Terror nos seus olhos e antes de começar a fraquejar da minha missão disparei até acabar com todos os cartuchos.
Olhei para a sua face irreconhecível e interroguei-o: ficas-te agora a saber quem é Deus Todo Poderoso?
Sabia o que me esperava segui… Abasteci-me de balas na cave e parti para a escola. Todos os que se atravessaram no meu caminho foram abatidos, grandes cães. O pânico nos seus rostos estúpidos e anormais excitava-me a adrenalina. Procurei todos os cabrões que me vexaram durante todos estes anos. Colegas, conhecidos, desconhecidos, professores, empregados… não distingui credo, raça, cor dos olhos… foi tudo o que me apareceu à frente: afinal sou Deus e a TODOS amo igual.
Depois perdi os sentidos, quando acordei estava no hospital psiquiátrico de uma prisão de alta segurança. Apanhei prisão perpétua mas desde os incidentes que não pronunciei palavra: tudo o que tinha a dizer foi dito quando arrebentei os miolos a todos! Todos ficaram a saber o que precisavam de saber:
Eu sou DEUS!
Música: Jeremy - Pearl Jam
Livro: Aparição - Virgílio Ferreira
Filme: Bowling for Columbine - Michael Moore
6 Comments:
Sim senhora, estás a tentar bater o meu record de corpos caídos, mas ainda vou à frente! ;)
Estiveste ao teu melhor nível neste texto; em termos de acção, de hiperrrealismo, de simbolismo, crueldade e crueza. Muito bom o apontamento do pinto, 5 estrelas!
... depois da semana que passaste aposto que até foi catársico publicar este texto...
sugestões musicais:
Marylin Manson - The Nobodies
The Cure - Burn
ou
Anathema - Alternative 4
By Der Überlebende, at 1:41 AM
[um dos meus esboços pa este desafio era mui parecido com este, so que nao havia *de facto* mortos, nem sangue nem tripas ;P]
tá lindo booklover, alias fantastico, ta mm muuito bô ^^ parabens menina :D*
[so nao gostei ali da morte do pintinho pq eles sao muito fófis, mas fazia falta a morte do bichinho inocente... tadinho* :)]
By Perséfone, at 2:15 PM
adorei este texto booklover... mordaz!! :)
si, deus ama a todos igual...e pequenos deuses proliferam por aí fora!!
By Anonymous, at 4:15 AM
Nem sei bem o que dizer. Gostei muito deste texto pela intensidade, quer da história quer da personagem e o facto de fazer lembrar actos reais.
Sem dúvida alguma o filme com o qual se identifica este texto é o Bowling For Columbine (grande filme).
Gostei da ironia da frase: "afinal sou Deus e a TODOS amo igual." e do parágrafo de Beethoven, porque até certo ponto tem algumas semelhanças com o texto que escrevi (em relação à personalidade da personagem).
Fiquei foi um pouco confusa em relação à idade da personagem: no 1º parágrafo parece ser uma pessoa bastante nova pela maneira como fala dos pais, no entanto, ao longo do texto percebe-se que não é bem assim. Uma personagem modelada, então não?
Enfim... gostei.
Beijinho*
By SweetSerenity, at 1:19 PM
Adorei! Tens muito talento, Booklover, muito! Estas a libertar-te tanto, e eh tao bom ver-te voar, como dizia a outra. Mas a serio, eh mesmo bom ler os teus textos... Beijinhos
By smallworld, at 11:29 AM
Obrigado por todos os vossos comentários :)))
Quanto à tua dúvida, Sweetserenity, quando escrevi o texto pensei no Jeremias com 16 anos ou por ai. O "papá" e "mamã" no primeiro paragrafo foi apenas para salientar a sua dificuldade nos afectos, a falta de amor dos pais e atenção... Daí a sua atitude desprotegida e infantil de lhes chamar papá e mamã... Não sei muito bem como explicar :))))
beijinhos
By Eduarda Sousa, at 11:27 AM
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