Luz e Sombra

Monday, September 12, 2005

'Poema em Linha Recta' de Álvaro de Campos

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso, arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas do hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,


Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste mundo que me confesse que uma vez já foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos


Quantas vezes também eu fui reles, vil, parasita, ridícula, absurda, grotesca, mesquinha, submissa, arrogante, cobarde, errónea, infame…

E vocês também nunca foram? Ou são todos Semideuses?

6 Comments:

  • "Indesculpavelmente sujo,
    Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho"

    É incrível a coragem que é preciso para dizer isto ao Mundo...!

    By Blogger Filipa, at 7:52 PM  

  • Estupidamente, lembrei-me de algo ridículo para comentar esta obra de artre intemporal do Fernando de Campos ou Álvaro Pessoa se preferirem
    "Estar vivo é o contrário de estar morto" dizia a impagável Lili Caneças... ridículo, não é?

    mas quando eu sinto que estar vivo é sentir, experimentar, mentir, jogar, testar, mandriar, comentar, vilipendiar, negar, comer, dormir, fornicar, enganar, sublimar, sublinhar, subjugar, subentender, surpreender...viver!

    A vida é feita de perfeições, que nos lembram que somos humanos.

    Os semideuses jazem mortos e arrefecem!
    Não estão vivos, são fantoches defuntos de um mundo que não existe, de uma mentira que nãoé tão real como a mentira dos vivos, de um sentir que nada experimenta, de uma vitoriosa submissão que os leva ao inferno das putas que os pariram, pois eles não existem, não sangram, não mentem, não teem inveja, não comem a mulher proibida, não piscam o olho ao moço de fretes, não tomam drogas nem bebem tanto vinho que fiquem tontos e estupidamente bebâdos...

    Abomino os semideuses, são o contrário de mim

    estão mortos!

    d.u.

    By Blogger Der Überlebende, at 11:17 PM  

  • Acho que ninguem conseguiu ainda fazer poemas-soco tao admiraveis como este tipo. Eh tao cru, tao verdadeiro, tao transparente e ingenuo tambem na expressao dos seus sentimentos...
    "Arre, estou farto de semideuses!
    Onde é que há gente no mundo?"
    Boa pergunta! Aqui neste blog ja encontrei bastante gente, que demonstra com orgulho nao ser um semideus aborrecido. Que isto de viver nao eh so sentimentos bonitos e nobres.

    By Blogger smallworld, at 2:12 PM  

  • Uff...

    Obrigada já não me sinto tão sozinha na minha vileza e mesquinhez... :)

    By Blogger Eduarda Sousa, at 11:25 AM  

  • "Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
    Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
    Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
    Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
    Quem há neste mundo que me confesse que uma vez já foi vil?
    Ó príncipes, meus irmãos,

    Arre, estou farto de semideuses!
    Onde é que há gente no mundo?"

    Oh oh, quantas mas quantas vezes da as ganas de lhes arrancar o pedestal e lhes bater com ele na cabeça? ;D mesquinha, vingativa, vil, orgulhosa, respondona, precipitada, tudo isso e mais alguma coisa ^^ humildade nunca fez mal a ng

    beijinho*

    By Blogger Perséfone, at 8:32 PM  

  • sou tudo isso e mais.
    ou talvez esteja tudo na nossa cabeça!

    By Blogger Alexandre Fonseca, at 10:56 PM  

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