DT: "O Monólogo da Praia do Inefável" por Joaquim Gilvaz
Caros familiares do Luz e Sombra,
Recebemos mais uma contribuição para o Desafio Temático do mês de Setembro - solidão/sofrimento/dor - vindo directamente do nosso vizinho BLOG DE UMA MORTE ANUNCIADA
Deliciem-se...
Quatro cães que viajam juntos carregam a bagagem do vento e as pernas do mar. – pensou o Sr. José enquanto mergulhava a mão direita na fina areia da Praia do Inefável. Esta seria uma óptima frase para iniciar um romance - aquele que anda há anos para escrever- ao passo que iniciar uma conversa com ela seria tremendamente absurdo. Talvez, porque nunca existe ninguém ao nosso lado, quando no final de uma tarde cinzenta vemos passar quatro cães no fundo da praia.
É nesta ausência que o Sr. José tem vivido. Mas hoje seria o último dia que a sua vida seria guiada pelas suas condutas delineadas do quotidiano.
Sim! Amanhã vai escrever uma carta a alguém que tire à sorte da lista telefónica. Vai contar-lhe de como gosta de Schumann, do arrepio que estrutura nas mudanças de andamento e na impossibilidade humana de ouvir todos os sons numa sinfonia… Escreverá também, acerca daquele livro que leu no Verão passado que falava de um homem só. Um desenganado que só escutava o mundo pelas suas torturas intelectuais, sempre no arredor do sentimento - um académico dos silêncios e da prosa imaginada. Certo dia, todos os seus quadros se confundiram com um sentimento - a perda. A perda de si em si mesmo, a ilustração do que era numa vida que não lhe é; mas principalmente a perda de sensações por tudo. Por certo, o Sr. José identificou-se com esta personagem daí a sua exaltação por esse livro – mas isto são os devaneios de quem apenas podará narrar ou especular acerca do que vai na cabeça dos outros.
Do nome que sair da lista telefónica, espera-se que feminino, nascerá a nova companhia do Sr. José, nem mesmo que seja por ficção. Apenas para dar um rosto a um amor que nunca teve…Tornar o sofrimento mais digno. Ter a quem dirigir os seus pensamentos; adormecer a imaginar histórias para lhe contar; estar sozinho na praia e dizer-lhe coisas antigas da sua infância:
- O meu avô foi pescador...- dizia o Sr. José. - É estranho pensar que todos podemos escolher os nossos caminhos na vida, mas no fim todos se afunilam no esquecimento.
- José, esquece os existencialismos e vem correr comigo na areia fria..- responderia a rapariga da lista telefónica.
- Espera! Gostava de te contar um ensinamento que o meu avô partilhou comigo quando era pequeno. Os pescadores apenas têm duas mortes possíveis: no mar por afogamento; ou na terra por trombose. Os corações desses homens pertencem ao mar, na terra deixam de ser precisos...
- E como morreu o teu avô? – Interrogaria a rapariga da lista telefónica.
- Foi atropelado por um autocarro... – diria o Sr. José.
- Então, não morreu afogado, nem de trombose, logo essa teoria está refutada!
- Era a minha avó que ia nesse autocarro… Queria fugir do meu avô por não aguentar o sofrimento de o ver partir todos os meses para o mar. Ele quis impedi-la de partir, pondo-se à frente da carreira das 5. E ali morreu atropelado. Não morreu do coração, mas pelo coração...
O Sr. José, deixou de poder distinguir os quatro cães que por ele passaram, de súbito também ele deixara-se de reconhecer. Desenterrou a mão direita da areia fina, voltava para casa, onde o refogado o esperava no micro-ondas. E o imenso silêncio da solidão que escorria das paredes de sua casa. Para trás deixava o mar e os barracões quase teatrais dos profundos pescadores…assim como, o gesto perdido de procurar alguém.
Ass: Joaquim Gilvaz
5 Comments:
Não sei bem que comentário fazer... é uma história tão perfeita, doce e dolorosa... Ao ler invadiu-me um desassossego da solidão. Está muito bem escrita. Parabéns
By Eduarda Sousa, at 9:22 AM
Lindo... Muito lindo. Uma prosa muito suave e contida, madura, como já realçou a Earworm. Foi um prazer ler o teu texto.
By smallworld, at 8:34 PM
muito bonito...
deixas que se torne simples a complexidade que envolve as personagens, deixando que a estória se conte a si própria.
É uma honra ler-te aqui, talvez um pouco longe do teu "habitat natural", mas ve-se que estás tão à vontade que deixas cair o casaco e que os dedos dancem sobre o teclado para que o teu conto ganhe asas digitais
uma sugestão musical, que espero que te agrade
Anne Clarck - Mundesley Beach
(se quiseres é só dizer que te envio por mail)
um abraço,
Der U.
By Der Überlebende, at 12:34 AM
:)obrigado a todos pela simpatia, e pela palavras calorosas!!
vou tentar realizar novas participações...apesar de ser um pouco desleixado...ando a postar no meu blog de "mês a mês"... mas fica prometido!
Anne Clarck?! ainda não ouvi falar, mas fiquei curioso...vou investigar!(podes enviar :P)
bem, neste momento ando a ouvir um pouco de Suvjan Stevens (Illinois), o segundo album dos 50 que vai dedicar a cada estado americano.(doidinho)
abraços
By JoaquimGilVaz, at 1:30 AM
desculpa... n é Clarck mas sim Clark
digamos que o alter ego do Der Uberlende anda um bocado cansado :s
logo te mandarei assim que o "outro" deixar
d.u.
ps: e sim, escreves mesmo com muita classe
By Der Überlebende, at 9:25 AM
Post a Comment
<< Home