DP2 - Cristal; por Der Überlende
o prometido é devido, aqui está a minha versão
O prazo para participar neste DP2 foi estendido até 17 de Novembro
Boas escritas!
Cristal – Parte II
Ela representava os restos mortais de uma linha aristocrática extinta e esquecida. O sangue que lhe corria nas artérias empedernidas pela velhice avançada era o último vestígio dos Khroner, a família maldita que regera aquele pequeno condado durante mais de 500 anos. No entanto, Angela era uma mulher altiva, muito segura de si e que nunca hesitava em fazer-se valer dos seus privilégios de derradeira Duquesa de Khroner. Era a primeira a ser atendida nas lojas da aldeia ou da vila, era-lhe reservado o que de mais fino havia para degustar e o que de melhor recorte havia para vestir ao seu corpo encurvado e senescente. Ela era gentil para quem se dirigisse a ela como Sr.ª Duquesa, admitindo mesmo que por uma vez ou outra se dirigissem a si como Sua Senhoria ou Sr.ª Khroner. Em relação a este último epíteto, o melhor era não abusar, pois mesmo Angela não gostava de ouvir o apelido infame demasiadas vezes, por muito estatuto que este tivesse.
Naquela manhã fria de Novembro, a Duquesa acordara com um solavanco violento que a fez erguer da cama repentinamente. Qual louva-a-deus bêbado, esbracejou inconsequentemente em busca dos óculos enquanto volteava a cabeça para um lado e para outro numa tentativa desesperada de perceber o que se estava a passar nos seus aposentos embebidos na obscuridade da pré aurora. Mas apenas o silêncio ensurdecedor se sucedeu ao tremendo baque abafado... E contudo, Angela sabia que já não estava sozinha... Levantou-se com a calma a que a nobilitas obriga e iniciou o seu ritual diário de toilette. Ao dirigir-se ao espelho de madeira de cerejeira do século XVII que tinha sobre o toucador com igual antiguidade verificou algo muito invulgar. A sua imagem não aparecia nítida e contrastante com o luminar bruxuleante das velas espetadas no tridente de prata brasonado dos Khroner. Ela mal se vislumbrava na superfície de cristal e prata, apenas uma névoa aparecia, e rodopiava no sentido contrário aos ponteiros do relógio, arrastando o tempo consigo para um ponto branco baço que era o centro de toda a actividade. Angela assustou-se e num acto de pânico atirou com o castiçal para o chão. Felizmente, as velas apagaram-se com o embate, não causando maiores estragos. Na penumbra de seu boudoir ela tentava recuperar lentamente o fôlego, quando subitamente lhe ocorreu uma antiga história que seu tio, o venerável Conde de Chambourcy, lhe contara:
O Vaso Eterno
Era um segredo antigo, dos tempos imemoriais que se sucederam à queda do Império Romano, quando os bárbaros saqueavam os despojos de Roma, Antioquia, Mediolanum, Carthago, Lutecia, Londinium... e o mundo civilizado entrava na agonizante primeira fase da idade das trevas, a era Medieval. Era o início da Escola Universal Alquimista, onde sábios romanos, persas, orientais, árabes, hebraicos, gregos, germanos, egípcios, normandos entre outros se uniram pela primeira e última vez. O intuito final era atingir os segredos maiores da magia divina, da alquimia dos soberanos do Universo, o segredo da imortalidade da alma, a pedra filosofal. Numa primeira fase, muitos destes sábios morreram em resultado de experiências mal sucedidas, de misturas mortais de componentes, vítimas de conspirações entre facções...Ah, sim, a humanidade sempre fora pródiga em traição e jogos de poder.
Gaudentio era um patrício romano, filho bastardo de um poderoso senador e da sua amante dalmace, uma digna representante do povo eslavo que tanto sangue e suor romano exigiu em troca do controlo de suas terras a sudeste dos Alpes. Seus antepassados maternos eram artífices do metal, fogo... e cristal. Gaudentio aprendera com sua mãe alguns dos segredos incontáveis de como tratar, talhar e polir cristal, e como curioso inato, aprendera nas ruas e mercados muita da sabedoria antiga dos múltiplos povos que antes enxamearam a gorda e velha Roma. Era um virtuoso da magia prática com seres e objectos, e aquilo que hoje se poderia chamar de um brilhante químico. Sabia quais os segredos que o fogo revelava, quais os elementos que viviam no âmago do cristal, e como os poderia invocar. No seu laboratório trabalhava juntamente com um foragido príncipe nardo e um velho alquimista egípcio. Juntos, trabalhavam o cristal na perfeição e criaram a solução para o tempo de espera que dizimava os clarividentes anciãos que aguardavam e desesperavam pela descoberta da matéria mágica que lhes conferiria vita aeterna, a Pedra Filosofal. Gaudentio, Augutinius e El-Ashmeed construíram um vaso mágico de cristal, onde a alma se poderia refugiar durante séculos ou milénios até que fosse descoberto o segredo da carne imortal. Só então se poderia proceder ao transvase, o acto de passar a alma guardada no vaso para o novo corpo imortal.
O tempo tratou de fazer desaparecer completamente a Escola de Gaudentio e seus pares, e levou consigo o mistério do Vaso Eterno...
Angela sabia que era feita de carne mortal, e sabia que o fim estava próximo. Aquele estranho e insano episódio matinal poderia não ser mais do que um sonho que se arrastou para além do fim da narcose nocturna, mas era sem dúvida um aviso. A Duquesa de Khroner não iria durar muito mais tempo à superfície da terra.
Inspirada na antiga história que seu tio lhe contara, decidiu que era hora de visitar aquele homem tenebroso, aquela criatura que tanto transtorno lhe causava. Era hora de ir bater à porta de Mestre Fausto. Ia confrontá-lo, e perguntar-lhe que segredos guardavam aqueles cacos de vidro glorificado, aquela abonecada resplandecente, aqueles incómodos seres de cristal. Tudo na esperança de encontrar entre a parafernália de bibelôs desalmados uma última morada para o seu sopro imortal. O horror alimentado pelo catolicismo vigente de que um Inferno em chamas a poderia engolir para toda a eternidade fê-la tomar atitudes drásticas, tudo em nome da salvação da última das Khroner.
Mal Angela se aproximou da loja de Mestre Fausto ouviu a pesada porta de carvalho ranger e entreabrir-se. Ela sabia que era esperada, ainda que em mais de 40 anos nunca pusera os pés lá dentro mais do que 2 ou 3 vezes.
- Aproxime-se Sr.ª Khroner, estava à sua espera – Disse Fausto, com a sua voz seca e profunda como a caverna da Alegoria.
- Salve velho diabo, fostes vós quem andou a zombar de mim com partidas infantis para me despertar do meu sono? –
- Não fui eu, mas sou capaz de saber que tenha sido. Ela passou por mim esta noite para me cumprimentar e disse que ia a tua casa. –
- De quem falais? – Disse Angela tentando-se passar por mais surpreendida do que de facto estava.
- Da Ceifeira, daquela que a todos visita pelo menos uma vez. –
- Um dos seus bonequitos assustadores, é isso que me estais a insinuar? –
- Vossa Senhoria viu do que falo, quando se mirou ao espelho, quando sentiu o seu sopro gélido ao despertar, quando ouviu o cabo de sua gadanha a bater no solo carcomido de térmitas de seu quarto. –
- Fantasmas? Pensais que me assusto assim tão facilmente? Não sou nenhuma catraia para me impressionar com estorietas de tigres e traças e outras assombrações para tirar sono a crianças, ficai sabendo...-
- Não diga mais nada Sr.ª Duquesa. Não é a primeira vez que tenho um Khroner na minha loja a tentar convencer-me que seus intentos são outros dos que o cá trouxeram. Quereis ver uma peça em particular, um artefacto arcaico do tempo das primeiras trevas, um pequeno e delicado objecto, um vaso. –
- Não.... Sim,... como sabeis?!?
- Foi vosso tio quem mo deixou à guarda, com o aviso de que mais tarde a Sr.ª Duquesa o viria buscar. Pois aqui está ele, este pequeno vaso de cristal antigo. É vosso, para fazerdes dele conforme seja vosso desejo.-
Angela olhou para o vaso, surpreendida com o desfecho excessivamente rápido de sua visita. Aparentemente era apenas um vaso de cristal, simples e translúcido, sem nada que o denunciasse como mágico ou com poderes para enganar a eternidade. Fausto sorria tranquilamente, permitindo a seu corpo magro e alto alguns momentos de descanso num velho cadeirão de veludo carmim.
- Mas estais seguramente a gozar com a minha pessoa. Para que quero eu isto? É alguma piada, estais a divertir-vos às minhas custas, é isso, não é? –
- Adeus Angela, a nossa conversa terminou! –
Naquela manhã fria de Novembro, a Duquesa acordara com um solavanco violento que a fez erguer da cama repentinamente. Qual louva-a-deus bêbado, esbracejou inconsequentemente em busca dos óculos enquanto volteava a cabeça para um lado e para outro numa tentativa desesperada de perceber o que se estava a passar nos seus aposentos embebidos na obscuridade da pré aurora. Mas apenas o silêncio ensurdecedor se sucedeu ao tremendo baque abafado...
Angela ergueu-se e lentamente compôs-se do susto. Acendeu o castiçal de prata brasonado e aproximou-se do espelho de madeira de cerejeira do século XVII. Mirou-se e viu a sua cara pálida e ainda trémula do susto que a despertara. Tinha a cabeça pesada, como acontece quando temos um sonho demasiado intenso e perturbador. Estava tudo no seu lugar, tudo na mesma... ela procurava por perturbações e parecia que nada se tinha alterado. Mas não era bem assim. Sobre o seu toucador, na intimidade de seu boudoir, havia agora um pequeno vaso de cristal que luzia com a primeira claridade do dealbar frio. Angela aproximou-se dele, primeiro com receio, depois, lentamente, com uma sensação de esperança e desafio. Ela estava pronta a fazê-lo, a tocar no vaso eterno e a saltar para dentro deste, e para sempre iludir a morte. Era o momento, ela estava convencida de que era isso que desejava, e nada a iria demover. Adeus carne fraca, a eternidade de Gaudentio seria o jardim de sua alma. Angela soluçava e seu corpo tremia de antecipação. Mas a sofreguidão paga-se cara, e, num gesto de amplitude desmedida fez cair o candelabro no chão, onde a chama das velas foi encontrar pasto para progredir sobre o tapete persa do Século XVI. Em menos de 3 minutos todo o boudoir estava em chamas, ardendo como se fosse o dia do juízo final para a Duquesa de Khroner. Em menos de nada estava tudo acabado, toda a casa reduzida a escombros e cinzas...
Só no dia seguinte é que a polícia e os bombeiros poderam começar à procura dos vestígios mortais da Sr.ª Khroner. Encontraram apenas os restos calcinados de seus ossos e alguns vestígios do que antes foram os seus pertences. Pouco havia para reconhecer: os suportes da cama antiga, o espelho quebrado com a prata enegrecida pelo fumo e um curioso pequeno vaso de cristal, que dava a ilusão de ter no seu interior uma ténue luz branca a pulsar.
31 de Outubro de 2005,
Der Überlende
O prazo para participar neste DP2 foi estendido até 17 de Novembro
Boas escritas!
Cristal – Parte II
Ela representava os restos mortais de uma linha aristocrática extinta e esquecida. O sangue que lhe corria nas artérias empedernidas pela velhice avançada era o último vestígio dos Khroner, a família maldita que regera aquele pequeno condado durante mais de 500 anos. No entanto, Angela era uma mulher altiva, muito segura de si e que nunca hesitava em fazer-se valer dos seus privilégios de derradeira Duquesa de Khroner. Era a primeira a ser atendida nas lojas da aldeia ou da vila, era-lhe reservado o que de mais fino havia para degustar e o que de melhor recorte havia para vestir ao seu corpo encurvado e senescente. Ela era gentil para quem se dirigisse a ela como Sr.ª Duquesa, admitindo mesmo que por uma vez ou outra se dirigissem a si como Sua Senhoria ou Sr.ª Khroner. Em relação a este último epíteto, o melhor era não abusar, pois mesmo Angela não gostava de ouvir o apelido infame demasiadas vezes, por muito estatuto que este tivesse.
Naquela manhã fria de Novembro, a Duquesa acordara com um solavanco violento que a fez erguer da cama repentinamente. Qual louva-a-deus bêbado, esbracejou inconsequentemente em busca dos óculos enquanto volteava a cabeça para um lado e para outro numa tentativa desesperada de perceber o que se estava a passar nos seus aposentos embebidos na obscuridade da pré aurora. Mas apenas o silêncio ensurdecedor se sucedeu ao tremendo baque abafado... E contudo, Angela sabia que já não estava sozinha... Levantou-se com a calma a que a nobilitas obriga e iniciou o seu ritual diário de toilette. Ao dirigir-se ao espelho de madeira de cerejeira do século XVII que tinha sobre o toucador com igual antiguidade verificou algo muito invulgar. A sua imagem não aparecia nítida e contrastante com o luminar bruxuleante das velas espetadas no tridente de prata brasonado dos Khroner. Ela mal se vislumbrava na superfície de cristal e prata, apenas uma névoa aparecia, e rodopiava no sentido contrário aos ponteiros do relógio, arrastando o tempo consigo para um ponto branco baço que era o centro de toda a actividade. Angela assustou-se e num acto de pânico atirou com o castiçal para o chão. Felizmente, as velas apagaram-se com o embate, não causando maiores estragos. Na penumbra de seu boudoir ela tentava recuperar lentamente o fôlego, quando subitamente lhe ocorreu uma antiga história que seu tio, o venerável Conde de Chambourcy, lhe contara:
O Vaso Eterno
Era um segredo antigo, dos tempos imemoriais que se sucederam à queda do Império Romano, quando os bárbaros saqueavam os despojos de Roma, Antioquia, Mediolanum, Carthago, Lutecia, Londinium... e o mundo civilizado entrava na agonizante primeira fase da idade das trevas, a era Medieval. Era o início da Escola Universal Alquimista, onde sábios romanos, persas, orientais, árabes, hebraicos, gregos, germanos, egípcios, normandos entre outros se uniram pela primeira e última vez. O intuito final era atingir os segredos maiores da magia divina, da alquimia dos soberanos do Universo, o segredo da imortalidade da alma, a pedra filosofal. Numa primeira fase, muitos destes sábios morreram em resultado de experiências mal sucedidas, de misturas mortais de componentes, vítimas de conspirações entre facções...Ah, sim, a humanidade sempre fora pródiga em traição e jogos de poder.
Gaudentio era um patrício romano, filho bastardo de um poderoso senador e da sua amante dalmace, uma digna representante do povo eslavo que tanto sangue e suor romano exigiu em troca do controlo de suas terras a sudeste dos Alpes. Seus antepassados maternos eram artífices do metal, fogo... e cristal. Gaudentio aprendera com sua mãe alguns dos segredos incontáveis de como tratar, talhar e polir cristal, e como curioso inato, aprendera nas ruas e mercados muita da sabedoria antiga dos múltiplos povos que antes enxamearam a gorda e velha Roma. Era um virtuoso da magia prática com seres e objectos, e aquilo que hoje se poderia chamar de um brilhante químico. Sabia quais os segredos que o fogo revelava, quais os elementos que viviam no âmago do cristal, e como os poderia invocar. No seu laboratório trabalhava juntamente com um foragido príncipe nardo e um velho alquimista egípcio. Juntos, trabalhavam o cristal na perfeição e criaram a solução para o tempo de espera que dizimava os clarividentes anciãos que aguardavam e desesperavam pela descoberta da matéria mágica que lhes conferiria vita aeterna, a Pedra Filosofal. Gaudentio, Augutinius e El-Ashmeed construíram um vaso mágico de cristal, onde a alma se poderia refugiar durante séculos ou milénios até que fosse descoberto o segredo da carne imortal. Só então se poderia proceder ao transvase, o acto de passar a alma guardada no vaso para o novo corpo imortal.
O tempo tratou de fazer desaparecer completamente a Escola de Gaudentio e seus pares, e levou consigo o mistério do Vaso Eterno...
Angela sabia que era feita de carne mortal, e sabia que o fim estava próximo. Aquele estranho e insano episódio matinal poderia não ser mais do que um sonho que se arrastou para além do fim da narcose nocturna, mas era sem dúvida um aviso. A Duquesa de Khroner não iria durar muito mais tempo à superfície da terra.
Inspirada na antiga história que seu tio lhe contara, decidiu que era hora de visitar aquele homem tenebroso, aquela criatura que tanto transtorno lhe causava. Era hora de ir bater à porta de Mestre Fausto. Ia confrontá-lo, e perguntar-lhe que segredos guardavam aqueles cacos de vidro glorificado, aquela abonecada resplandecente, aqueles incómodos seres de cristal. Tudo na esperança de encontrar entre a parafernália de bibelôs desalmados uma última morada para o seu sopro imortal. O horror alimentado pelo catolicismo vigente de que um Inferno em chamas a poderia engolir para toda a eternidade fê-la tomar atitudes drásticas, tudo em nome da salvação da última das Khroner.
Mal Angela se aproximou da loja de Mestre Fausto ouviu a pesada porta de carvalho ranger e entreabrir-se. Ela sabia que era esperada, ainda que em mais de 40 anos nunca pusera os pés lá dentro mais do que 2 ou 3 vezes.
- Aproxime-se Sr.ª Khroner, estava à sua espera – Disse Fausto, com a sua voz seca e profunda como a caverna da Alegoria.
- Salve velho diabo, fostes vós quem andou a zombar de mim com partidas infantis para me despertar do meu sono? –
- Não fui eu, mas sou capaz de saber que tenha sido. Ela passou por mim esta noite para me cumprimentar e disse que ia a tua casa. –
- De quem falais? – Disse Angela tentando-se passar por mais surpreendida do que de facto estava.
- Da Ceifeira, daquela que a todos visita pelo menos uma vez. –
- Um dos seus bonequitos assustadores, é isso que me estais a insinuar? –
- Vossa Senhoria viu do que falo, quando se mirou ao espelho, quando sentiu o seu sopro gélido ao despertar, quando ouviu o cabo de sua gadanha a bater no solo carcomido de térmitas de seu quarto. –
- Fantasmas? Pensais que me assusto assim tão facilmente? Não sou nenhuma catraia para me impressionar com estorietas de tigres e traças e outras assombrações para tirar sono a crianças, ficai sabendo...-
- Não diga mais nada Sr.ª Duquesa. Não é a primeira vez que tenho um Khroner na minha loja a tentar convencer-me que seus intentos são outros dos que o cá trouxeram. Quereis ver uma peça em particular, um artefacto arcaico do tempo das primeiras trevas, um pequeno e delicado objecto, um vaso. –
- Não.... Sim,... como sabeis?!?
- Foi vosso tio quem mo deixou à guarda, com o aviso de que mais tarde a Sr.ª Duquesa o viria buscar. Pois aqui está ele, este pequeno vaso de cristal antigo. É vosso, para fazerdes dele conforme seja vosso desejo.-
Angela olhou para o vaso, surpreendida com o desfecho excessivamente rápido de sua visita. Aparentemente era apenas um vaso de cristal, simples e translúcido, sem nada que o denunciasse como mágico ou com poderes para enganar a eternidade. Fausto sorria tranquilamente, permitindo a seu corpo magro e alto alguns momentos de descanso num velho cadeirão de veludo carmim.
- Mas estais seguramente a gozar com a minha pessoa. Para que quero eu isto? É alguma piada, estais a divertir-vos às minhas custas, é isso, não é? –
- Adeus Angela, a nossa conversa terminou! –
Naquela manhã fria de Novembro, a Duquesa acordara com um solavanco violento que a fez erguer da cama repentinamente. Qual louva-a-deus bêbado, esbracejou inconsequentemente em busca dos óculos enquanto volteava a cabeça para um lado e para outro numa tentativa desesperada de perceber o que se estava a passar nos seus aposentos embebidos na obscuridade da pré aurora. Mas apenas o silêncio ensurdecedor se sucedeu ao tremendo baque abafado...
Angela ergueu-se e lentamente compôs-se do susto. Acendeu o castiçal de prata brasonado e aproximou-se do espelho de madeira de cerejeira do século XVII. Mirou-se e viu a sua cara pálida e ainda trémula do susto que a despertara. Tinha a cabeça pesada, como acontece quando temos um sonho demasiado intenso e perturbador. Estava tudo no seu lugar, tudo na mesma... ela procurava por perturbações e parecia que nada se tinha alterado. Mas não era bem assim. Sobre o seu toucador, na intimidade de seu boudoir, havia agora um pequeno vaso de cristal que luzia com a primeira claridade do dealbar frio. Angela aproximou-se dele, primeiro com receio, depois, lentamente, com uma sensação de esperança e desafio. Ela estava pronta a fazê-lo, a tocar no vaso eterno e a saltar para dentro deste, e para sempre iludir a morte. Era o momento, ela estava convencida de que era isso que desejava, e nada a iria demover. Adeus carne fraca, a eternidade de Gaudentio seria o jardim de sua alma. Angela soluçava e seu corpo tremia de antecipação. Mas a sofreguidão paga-se cara, e, num gesto de amplitude desmedida fez cair o candelabro no chão, onde a chama das velas foi encontrar pasto para progredir sobre o tapete persa do Século XVI. Em menos de 3 minutos todo o boudoir estava em chamas, ardendo como se fosse o dia do juízo final para a Duquesa de Khroner. Em menos de nada estava tudo acabado, toda a casa reduzida a escombros e cinzas...
Só no dia seguinte é que a polícia e os bombeiros poderam começar à procura dos vestígios mortais da Sr.ª Khroner. Encontraram apenas os restos calcinados de seus ossos e alguns vestígios do que antes foram os seus pertences. Pouco havia para reconhecer: os suportes da cama antiga, o espelho quebrado com a prata enegrecida pelo fumo e um curioso pequeno vaso de cristal, que dava a ilusão de ter no seu interior uma ténue luz branca a pulsar.
31 de Outubro de 2005,
Der Überlende
2 Comments:
Pois bem, aqui temos uma Angela totalmente diferente do esperado. Sempre imaginei a Angela como uma crianca, desde que li a primeira parte do texto. Nunca a visualizei como alguem as portas da morte. By the way, Khroner podia ser um apelido holandes! Gostei especialmente do "truque" de ela acordar duas vezes do sono, e do sonho se misturar com a realidade.
By smallworld, at 10:59 AM
Finalmente consegui ler o texto todo! Confesso que o li às pestações, bocadinhos de fugida...
Eu também pensei em Angela como uma criança e esta continuação surpreendeu-me.
Gostei bastante do modo como a magia se incorpora no texto, não só na narrativa mas na repetição da cena do acordar, e, como a stela disse, da mistura entre o sonho e a realidade.
Mais uma vez, parabéns, Uber!
By Filipa, at 1:13 PM
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