Cidadania; 500 palavras para um blog, by Der Igel
Aqui vai mais uma resposta ao desafio 500. Desta vez foi o Der Igel que deu expressão ao seu delírio. Aqui vai!
Der Uberlende
Cidadania
Amo esse amor com que tu amas, como as serpentes que se envolvem nas camas. Frias, venenosas, tuas pernas públicas inacessíveis que transpõem todas as portas e matam, um a um, todos os homens. Amo essa ferida que não fecha, esse olhar que não te deixa olhar e arrepia e fere quem te desfere um sorriso ocasional.
És sexo casual, mulher de não amar.
Tens esse olhar de animal, de convite à predação de parasitas por reflexos de vidros que expõem e desnudam. Tens desse amor desistido, mulher banal, disponível, tão nua, tão morta. Expiras um mar convulso de ácidos que te sulcam as expressões do rosto, que corroem nas veias todas as modas, todas as serventias, todas as convenções. Tens tantos corações quanto restos, de relações, de lágrimas que pereceram, de livros que nunca se escreveram.
És vítima de ti, cidadania em dose certa.
És número de BI, com certa idade, estado civil, fotografia em pose certa. És em ti mesma uma prisão, escorpião vil truncado no ventre, vives entre sombras que se alimentam dos sonhos, és mãe deserta. És criança, puta, cidadania sobre os cadáveres do fim do dia. E insectos necrófagos ascendem-se na noite e invadem o corpo que é o nosso junto, em realidades múltiplas, múltiplos rostos, gritos de monstros que nos penetram com os sexos das avenidas, insecticidas, germes de sonhos que se atenuam em novelos de pénis massajados. Olhares sôfregos amontoados sobre cinzas de cigarros. Mãos sobrepostas em varões de autocarros. Bocas que buscam ar de onde nunca veio. Hormonas que se roçam no seio da volúpia, tatuada na carne imaginária e proibida que é comum e que é a tua.
Amo-te. Amo esse olhar com que não olhas. Esse mistério que não existe na tua vida. Esse morder de lábios que não são os de Scarlett ou de Angelina. Esse movimento com que fragmentas o espectro de homens rarefeitos. Anginas de peito galopantes, tromboses e overdoses, golpes fundos lancinantes, nos parapeitos dos teus dedos. És umbigo que vincula, veiculas pesadelos, és tornozelos que não findam e deslindam a brancura dos cabelos. És acção, transpiração, suores de Agosto, mosto de sexo e soma e saxo-que-não-pára e sémen cru e homem nu no azulejo e Tejo à tona de saliva e escara viva que não sara. És um enleio de carne grafitada, infectada com o nosso medo, a nossa dor e devaneio. És viagem pelo mundo no fundo dos recantos incertos de Lisboa. Mulher-insecto, fêmea soberana, soberba abstracção, gangrena, putrefacção que enlouquece todos os homens. E todos os homens te levam do autocarro para as suas casas, te violam em suas casas, te assassinam em suas casas. Todos os homens te procuram em canais da televisão, em sites da Internet, em bordéis depois das sete, em transformismos ao espelho. Foi lá que um dia te encontrei. No reflexo do homem que me olhava. Eras afinal a fêmea que lá havia. A essência. Para além de toda a minha demência. Para além de toda a cidadania.
24 de Janeiro de 2005,
Der Igel
Der Uberlende
Cidadania
Amo esse amor com que tu amas, como as serpentes que se envolvem nas camas. Frias, venenosas, tuas pernas públicas inacessíveis que transpõem todas as portas e matam, um a um, todos os homens. Amo essa ferida que não fecha, esse olhar que não te deixa olhar e arrepia e fere quem te desfere um sorriso ocasional.
És sexo casual, mulher de não amar.
Tens esse olhar de animal, de convite à predação de parasitas por reflexos de vidros que expõem e desnudam. Tens desse amor desistido, mulher banal, disponível, tão nua, tão morta. Expiras um mar convulso de ácidos que te sulcam as expressões do rosto, que corroem nas veias todas as modas, todas as serventias, todas as convenções. Tens tantos corações quanto restos, de relações, de lágrimas que pereceram, de livros que nunca se escreveram.
És vítima de ti, cidadania em dose certa.
És número de BI, com certa idade, estado civil, fotografia em pose certa. És em ti mesma uma prisão, escorpião vil truncado no ventre, vives entre sombras que se alimentam dos sonhos, és mãe deserta. És criança, puta, cidadania sobre os cadáveres do fim do dia. E insectos necrófagos ascendem-se na noite e invadem o corpo que é o nosso junto, em realidades múltiplas, múltiplos rostos, gritos de monstros que nos penetram com os sexos das avenidas, insecticidas, germes de sonhos que se atenuam em novelos de pénis massajados. Olhares sôfregos amontoados sobre cinzas de cigarros. Mãos sobrepostas em varões de autocarros. Bocas que buscam ar de onde nunca veio. Hormonas que se roçam no seio da volúpia, tatuada na carne imaginária e proibida que é comum e que é a tua.
Amo-te. Amo esse olhar com que não olhas. Esse mistério que não existe na tua vida. Esse morder de lábios que não são os de Scarlett ou de Angelina. Esse movimento com que fragmentas o espectro de homens rarefeitos. Anginas de peito galopantes, tromboses e overdoses, golpes fundos lancinantes, nos parapeitos dos teus dedos. És umbigo que vincula, veiculas pesadelos, és tornozelos que não findam e deslindam a brancura dos cabelos. És acção, transpiração, suores de Agosto, mosto de sexo e soma e saxo-que-não-pára e sémen cru e homem nu no azulejo e Tejo à tona de saliva e escara viva que não sara. És um enleio de carne grafitada, infectada com o nosso medo, a nossa dor e devaneio. És viagem pelo mundo no fundo dos recantos incertos de Lisboa. Mulher-insecto, fêmea soberana, soberba abstracção, gangrena, putrefacção que enlouquece todos os homens. E todos os homens te levam do autocarro para as suas casas, te violam em suas casas, te assassinam em suas casas. Todos os homens te procuram em canais da televisão, em sites da Internet, em bordéis depois das sete, em transformismos ao espelho. Foi lá que um dia te encontrei. No reflexo do homem que me olhava. Eras afinal a fêmea que lá havia. A essência. Para além de toda a minha demência. Para além de toda a cidadania.
24 de Janeiro de 2005,
Der Igel
2 Comments:
Tindersticks
Whiskey And Water (Tindersticks, 1993)
Turn my whiskey into water
My cigarettes, I don't know what they taste like
Other women seem so ugly to me now
Playthings stand dusty
Books lie open on the page where I met her
And that other life
Is just a memory to me now
So tell me how it feels
It feels so good
Tell me how it goes
It goes so fast
So tell me how it feels
It feels so good
Tell me how it goes
It goes so fast
So fast
I was clumsy, heavy-handed
Grown selfish, ill-tempered
But that life
Is just a memory to me now
Softly nudge towards her
Gently put inside her
And that other life
Just seems so ugly to me now
So tell me how it feels
It feels so good
Tell me how it goes
It goes so fast
So tell me how it feels
It feels so good
Tell me how it goes
It goes so fast
So fast
...e as outras mulheres, que se esgueiraram por entre o meu olhar casualmente fervoroso, despediam-se de mim com um sorriso desprendido, daqueles que só se oferecem aos verdadeiramente insignificantes. Obrigado Der Igel, pela tua violência!
By Der Überlebende, at 1:42 AM
alguma vez serei capaz de escrever assim? com tamanha beleza e emoção? alguma vez as palavras me escorrerão assim das mãos, nuas e cruas? estou enamorada dos vossos textos...
By Eduarda Sousa, at 10:33 AM
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