Luz e Sombra

Friday, January 28, 2005

A realidade despenha-se sobre mim; 500 palavras para um blog

A realidade despenha-se sobre mim.
A virtude recusa-se a partilhar o seu copo de absinto comigo, rejeita tocar meus lábios secos e gretados pelas palavras gastas e abusadas. Não mais irei vislumbrar a sua face azulada, anóxica de tanto tempo passar de nariz empinado, convencida que estará sempre de ser a luz do mundo, se não passasse ela de um pobre candeeiro kitsch e com a tinta estalada, onde os cães vão despudoradamente marcar território, alheios à sua inoxidável e impassível atitude.
O ódio, sempre que me vê, lança uma estrépitosa e desiquilibrada gargalhada, de tão admirado que fica por um ser tão débil e transparente bater-lhe à porta a pedir favores. “Mas quem é que tu pensas que és?!” E eu fico à porta, como um peixe cuspido pelo mar a estrebuchar na areia seca, a enterrar-se rapidamente fruto das convulsões do cruel desespero a que foi lançado. Só, arrasto-me penosamente dali p’ra fora, para longe daquele nauseabundo mesquinho que se ri de mim, com a boca escancarada a mostrar os dentes podres e escassos. E enquanto rastejo, arrasto comigo a imagem da virtude a mirar-me de soslaio, bebericando com arrogância o seu copo de éter verde fumegante.
E o amor? Ah, como se diverte o amor às minhas custas, a esvoaçar feliz por entre as chamas que irrompem do meu corpo manietado ao poste com que fui sorteado no auto de fé da repulsa. Chego a sentir uma brisa muito ténue e breve sobre o meu rosto, à medida que as asas de afrodite volteiam sobre a minha cabeça, mas cedo percebo que tudo o que ela quer é avivar as labaredas, cujas línguas amarelas e vermelhas me lambem languidamente, com todo o tempo do tiquetaquear do relógio que marca o meu sacrifício.
Restas-me tu, infame desespero... Ao menos sabes como me consolar, aninhando-me no teu peito velho, seco e vazio, amamentando-me com o leite espumoso da auto-indulgência e da miséria, acariciando-me o cabelo com os teus dedos longos como as horas da madrugada, acalentando-me com o teu bafo tépido de enganos e ilusões mastigadas, envolvendo-me no teu manto denso de paranoia e esquizofrenia. E eu encosto o meu ouvido ao teu coração para melhor escutar a sinfonia demencial dos antepassados inquietos, que insistem em aflorar para contar mais uma daquelas infindáveis estórias que faziam gala em matraquear ad nauseam, convencidos de que se conseguissem manter o olhar do espectador fixo nos seus olhos encovados e amarelentos conseguiriam leva-lo para o fundo do poço com eles, para que eternamente escutasse a sua verborreia maldita.
No entanto, repentinamente ergo a cabeça e sinto o sangue a fluir a toda a velocidade bem para o interior do meu corpo. Gelo. Fico hirto de horror. Pisco violentamente os olhos mas nada vejo. Arqueio ansiosamente o peito mas nem um sopro de ar me alimenta os pulmões. Não me mexo, mas giro lenta e compassadamente sobre mim mesmo enquanto flutuo sobre o abismo negro. Acordo! E a realidade esfuma os meus pesadelos.
28 de Janeiro de 2005
Der Uberlende

3 Comments:

  • fico enebriada pelas tuas palavras e com vontade de escrever... talvez logo à noite consiga
    beijinho

    By Blogger Eduarda Sousa, at 11:14 AM  

  • Já conhecia o brilhantismo e criatividade de Der Uberlende noutras escritas, de outra natureza que não esta. Regozijo-me por vê-lo deixar fluir todo o seu mundo poético. Prevejo os primeiros passos de uma longa caminhada... Pois é, escrever é isto. É isso mesmo que tens sentido ao escrever para estes blogs. É essa perene instisfação de não teres escrito o teu "poema perfeito", esse poema que nenhum de nós julga algum dia alcançar e ´que nos dá o alento de irmos até ao nosso limite. Escrever é gostar de estar numa situação de limite, com nós próprios e com o mundo. Continuemos com a nossa senda, talvez fundemos uma nova vaga poética: já não são quadras nem sonetos, nem modernismos, são tudo o que queremos dizer em 500 palavras :)

    By Anonymous Anonymous, at 11:46 AM  

  • Hmm, bem arrancado lá do fundo da alma. Poucos são os que reconhecem o desespero como o velho traiçoeiro que é. Gostei muito. Ainda bem que a realidade esfumou os teus pesadelos... mas sem pesadelos onde estava a poesia da vida? Stela

    By Anonymous Anonymous, at 11:57 PM  

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