Desafio 500, por que não? Der Igel volta a atacar, a um preço bastante competitivo ;)
Alice
A voz grave e trémula sobrevoa demoradamente um olhar deserto, gretado pela erosão que desceu há alguns anos sobre a sua vida.
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada…”
Lê baixinho, empregando todo o fôlego da respiração no cansaço da voz.
“… À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Estes primeiros versos da Tabacaria de Pessoa são lidos no cadeirão velho do quarto, engelhado pelas marcas da solidão. Resta-lhe a companhia do poema que Pessoa escreveu, quando se sentia só no universo.
Alice tem os seus 75 anos assentes numa postura aristocrata. Um olhar nobre reluz do cenário trágico que são as rugas fundas do seu rosto. As mãos de Alice seguram o livro com o mesmo amor de uma avó a embalar um neto recém-nascido nos braços. Há muitos anos que Alice se senta à noite a ler a Tabacaria, mas não conseguiu ainda transpor estes quatro primeiros versos.
O terror daquele som invade o quarto devagar, circunda-a.
Invade-a.
É um som que a princípio é brando e tem uma cadência serena. São os estalidos lentos, compassados, das gotas de água que se soltam da torneira gasta e enferrujada da casa de banho. Mas este rumor abafado que ecoa lá do fundo penetra devagar a leitura, com laivos de memória que se interpõem entre os olhos Alice e os versos de Pessoa.
Ela tenta sempre resistir, enquanto a visão não turva. Com a paciência da avó que não veio a ser, enxuga os olhos e ergue-se contra o sangue que corre em sentido contrário no seu peito. Expele o passado da sua voz, quase gritando, e avança na leitura.
“Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é”
Mas o seu olhar abate-se, novamente.
“…(E se soubessem quem é, o que saberiam?)”
O quarto escurece, o livro escorrega-lhe das mãos. Alice permanece debaixo do jugo das sombras que cobrem tudo. Apenas os seus olhos brilham naquele silêncio dominado pelos ecos da torneira. E acima desta, encontramos um espelho baço, que reflecte a imagem turva de Alice com 30 anos. Ela olha-se com o sacrifício cumpridor de todos os dias. Veste-se a preceito, retoca a maquilhagem. Lingerie vermelha e sexy, pronta a servir os homens. Mas enquanto engole as lágrimas e as dúvidas, há sempre um grito, um choro de criança que vem do quarto e circunda-a.
Invade-a.
- É hoje. Vou matá-la. É ela ou eu – pensa, enquanto se dirige ao quarto, onde uma criança se desfaz em choro, atrás da almofada.
- Vem Alice, tu és forte. Tens que crescer!
- Mas eu não quero crescer! – Replica a criança – Quero sonhar!
- Sonhar?!? Não sejas estúpida!... É perigoso sonhar! – Repreende-a, enraivecida.
“Consegui matá-la”, pensa hoje Alice. E nas sombras do quarto, o som da torneira vai-se tornando ténue, distante. O olhar reluzente de Alice apaga-se devagar.
“É perigoso sonhar!
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
29 de Março de 2005
Der Igel
A voz grave e trémula sobrevoa demoradamente um olhar deserto, gretado pela erosão que desceu há alguns anos sobre a sua vida.
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada…”
Lê baixinho, empregando todo o fôlego da respiração no cansaço da voz.
“… À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Estes primeiros versos da Tabacaria de Pessoa são lidos no cadeirão velho do quarto, engelhado pelas marcas da solidão. Resta-lhe a companhia do poema que Pessoa escreveu, quando se sentia só no universo.
Alice tem os seus 75 anos assentes numa postura aristocrata. Um olhar nobre reluz do cenário trágico que são as rugas fundas do seu rosto. As mãos de Alice seguram o livro com o mesmo amor de uma avó a embalar um neto recém-nascido nos braços. Há muitos anos que Alice se senta à noite a ler a Tabacaria, mas não conseguiu ainda transpor estes quatro primeiros versos.
O terror daquele som invade o quarto devagar, circunda-a.
Invade-a.
É um som que a princípio é brando e tem uma cadência serena. São os estalidos lentos, compassados, das gotas de água que se soltam da torneira gasta e enferrujada da casa de banho. Mas este rumor abafado que ecoa lá do fundo penetra devagar a leitura, com laivos de memória que se interpõem entre os olhos Alice e os versos de Pessoa.
Ela tenta sempre resistir, enquanto a visão não turva. Com a paciência da avó que não veio a ser, enxuga os olhos e ergue-se contra o sangue que corre em sentido contrário no seu peito. Expele o passado da sua voz, quase gritando, e avança na leitura.
“Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é”
Mas o seu olhar abate-se, novamente.
“…(E se soubessem quem é, o que saberiam?)”
O quarto escurece, o livro escorrega-lhe das mãos. Alice permanece debaixo do jugo das sombras que cobrem tudo. Apenas os seus olhos brilham naquele silêncio dominado pelos ecos da torneira. E acima desta, encontramos um espelho baço, que reflecte a imagem turva de Alice com 30 anos. Ela olha-se com o sacrifício cumpridor de todos os dias. Veste-se a preceito, retoca a maquilhagem. Lingerie vermelha e sexy, pronta a servir os homens. Mas enquanto engole as lágrimas e as dúvidas, há sempre um grito, um choro de criança que vem do quarto e circunda-a.
Invade-a.
- É hoje. Vou matá-la. É ela ou eu – pensa, enquanto se dirige ao quarto, onde uma criança se desfaz em choro, atrás da almofada.
- Vem Alice, tu és forte. Tens que crescer!
- Mas eu não quero crescer! – Replica a criança – Quero sonhar!
- Sonhar?!? Não sejas estúpida!... É perigoso sonhar! – Repreende-a, enraivecida.
“Consegui matá-la”, pensa hoje Alice. E nas sombras do quarto, o som da torneira vai-se tornando ténue, distante. O olhar reluzente de Alice apaga-se devagar.
“É perigoso sonhar!
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
29 de Março de 2005
Der Igel
2 Comments:
ANATHEMA LYRICS
A Natural Disaster (2003)
6. Pulled Under 2000 Metres A Second
Just freedom is only a hallucination
That waits at the edge of the distant horizon
And we are all strangers in global illusion
Wanting and needing impossible heaven
Chasing the dream as they swim out to sea
The mirage ahead says that they can be free
Become lost in delusion drowning their reason
Swept on by the current of selfish ambition
Frightened ashamed and afraid of the blame
The questions are screaming the answers are hiding
The sickness is growing distracted condition
You can feel the disgust and smell the confusion
Lying insane getting soaked in the rain
Draining the sky of the guilt and the shame
The nightmare is coming the clouds are descending
Pulled under two thousand metres a second
Clawing at walls that just slip through my fingers
Darkness consuming collapsing and breaking
Distilled paranoia seeped into the walls
And filled in the cracks with the whispering calls
Shadows are forming take heed of the warnings
Creeping around at four in the morning
Lie to myself start a brand new beginning
But i'm losing myself in this fear of living
Freedom is only a hallucination
That waits at the edge of the places you go when you dream
Deep in the reason betrayal of feeling
The mistakes that I made tore my conscience apart at the seems
Freedom is only a hallucination
That waits at the edge of the places you go when you dream ....
Freedom is only a hallucination
That waits at the edge of the places you go when you dream
Deep in the reason betrayal of feeling
The mistakes that I made tore my conscience apart at the seems
Freedom is only a hallucination
That waits at the edge of the places you go when you dream....
Poor Alice, there never was a wonderland
By Der Überlebende, at 11:07 PM
Nem sei dizer... Volto aqui ao blog passado um tempo de reclusão e é isto que encontro??? Cada vez textos mais impressionantes? Cada vez histórias mais marcantes? mau... preço competitivo é favor. Isto é dado. :) Sobre os outros textos, hei-de comentar mais tarde, com mais tempo. Agora só tenho tempo para dizer que este me tocou muitíssimo. Fui quase às lágrimas quando o li, só porque ia ter uma reunião a seguir achei melhor controlar-me que já ando com fama de carpideira, o que aqui na Holanda não é bom! Não sei, talvez por a minha mãe se chamar Alice... Ou porque reconheço o abafar contínuo de sonhos, de crianças-planos-projectos, de tantas formas e feitios... Até que morrem. E não há nada mais triste que uma alma sem sonhos.
By smallworld, at 12:12 AM
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