Chatfriend, 500 palavras, num blog acessível e com baixos custos de produção, por Der Igel
Chatfriend
Ontem.
Arredores de Lisboa. A tempestade assola um bloco de prédios de tons rosa. A noite debruça-se sobre a janela do 12º andar, onde Sara repensa a sua vida. No seu olhar desbotam-se as lágrimas inadvertidas que parecem assomar dos túneis dos sombrios recalcamentos. As lágrimas confluem-se na chuva transversa que lhe inunda o rosto. E as certezas confundem-se no breu do céu em volta. No limiar do precipício, Sara toma uma decisão.
Volta para o interior do quarto, onde uma electricidade estática crepita do fundo do monitor e a única luz que resta é a de fresta da porta que a separa do resto do apartamento. Nesse momento, do outro lado da porta, uma voz sumida, áspera e fria, sussurra-lhe
“BOA-NOITE…”
E recebe um “boa-noite” de volta. A luz apaga-se e Sara deposita a fundura dos olhos na janela do chat, onde vários nicknames a interpelam com voracidade noctívaga e anónima. Heartcore está entre eles e é um confidente de algumas noites, o único que lhe merece resposta.
Heartcore» Sara, tas aí?...
Sara responde-lhe com um daqueles smiles que tantas vezes não revelam o que sentimos, tão fácil que é acreditarmos num ícone virtual e vermos nele a essência da pessoa que desconhecemos.
Chatfriend» sim, voltei
Heartcore» até que enfim. Ia dizer-te para tares descansada.
Heartcore» não vou fazer nenhuma asneira
Chatfriend» acho bem
Heartcore» vou fazer o que tu dizes, procurar ajuda
Chatfriend» fico feliz
Chatfriend» lembra-te, há sempre uma saída, mesmo quando parece que perdemos tudo, quando todas as portas se fecham. Vai à luta!
Heartcore» sim, vou acreditar, não vou desistir…
Os dentes de Sara cravam-se uns nos outros com a força de uma barragem, enquanto relembra aquela imagem que pulsa violentamente das brumas do subconsciente. Sara sustém o choro e o grito que pergunta
«PORQUÊ?»
Enquanto os dedos se movem freneticamente sobre o teclado marcado pelas dedadas de sangue. Os golpes nos braços não foram, porém, ainda muito fundos.
Hoje.
Tráfego intenso do fim do dia. Um autocarro suburbano leva os passageiros para os arredores de Lisboa. Os passageiros avultam-se, agredidos pelas sirenes lancinantes que furam tímpanos por entre o trânsito. Sara está entre os passageiros. Decidida, enquanto percorre os seus túneis subterrâneos, abandonada, rasgada, despida. Foge do violador que a persegue em sonhos e grita. Grita, por entre o silêncio dos olhares moribundos e desgastados dos passageiros, sem que ninguém a oiça.
Grita, sufoca nos seus medos, pesadelos e convulsões, e soluça de choro, perdida, a correr no labirinto sem saída. Até chegar à paragem mais perto de casa.
As paredes do seu quarto esperam-na. Sara senta-se na cama, hoje está decidida. Cai a noite e resta a luz debaixo da porta. A voz sumida murmura mais um “BOA-NOITE”, mas não recebe o “boa-noite” de volta. A porta range, abre-se devagar. A luz inunda a escuridão do quarto. O ecrã negro estridula de electricidade estática. No teclado não há vestígios de sangue. A janela está fechada. No quarto não se encontra ninguém.
4 de Abril de 2005
Der Igel
Ontem.
Arredores de Lisboa. A tempestade assola um bloco de prédios de tons rosa. A noite debruça-se sobre a janela do 12º andar, onde Sara repensa a sua vida. No seu olhar desbotam-se as lágrimas inadvertidas que parecem assomar dos túneis dos sombrios recalcamentos. As lágrimas confluem-se na chuva transversa que lhe inunda o rosto. E as certezas confundem-se no breu do céu em volta. No limiar do precipício, Sara toma uma decisão.
Volta para o interior do quarto, onde uma electricidade estática crepita do fundo do monitor e a única luz que resta é a de fresta da porta que a separa do resto do apartamento. Nesse momento, do outro lado da porta, uma voz sumida, áspera e fria, sussurra-lhe
“BOA-NOITE…”
E recebe um “boa-noite” de volta. A luz apaga-se e Sara deposita a fundura dos olhos na janela do chat, onde vários nicknames a interpelam com voracidade noctívaga e anónima. Heartcore está entre eles e é um confidente de algumas noites, o único que lhe merece resposta.
Heartcore» Sara, tas aí?...
Sara responde-lhe com um daqueles smiles que tantas vezes não revelam o que sentimos, tão fácil que é acreditarmos num ícone virtual e vermos nele a essência da pessoa que desconhecemos.
Chatfriend» sim, voltei
Heartcore» até que enfim. Ia dizer-te para tares descansada.
Heartcore» não vou fazer nenhuma asneira
Chatfriend» acho bem
Heartcore» vou fazer o que tu dizes, procurar ajuda
Chatfriend» fico feliz
Chatfriend» lembra-te, há sempre uma saída, mesmo quando parece que perdemos tudo, quando todas as portas se fecham. Vai à luta!
Heartcore» sim, vou acreditar, não vou desistir…
Os dentes de Sara cravam-se uns nos outros com a força de uma barragem, enquanto relembra aquela imagem que pulsa violentamente das brumas do subconsciente. Sara sustém o choro e o grito que pergunta
«PORQUÊ?»
Enquanto os dedos se movem freneticamente sobre o teclado marcado pelas dedadas de sangue. Os golpes nos braços não foram, porém, ainda muito fundos.
Hoje.
Tráfego intenso do fim do dia. Um autocarro suburbano leva os passageiros para os arredores de Lisboa. Os passageiros avultam-se, agredidos pelas sirenes lancinantes que furam tímpanos por entre o trânsito. Sara está entre os passageiros. Decidida, enquanto percorre os seus túneis subterrâneos, abandonada, rasgada, despida. Foge do violador que a persegue em sonhos e grita. Grita, por entre o silêncio dos olhares moribundos e desgastados dos passageiros, sem que ninguém a oiça.
Grita, sufoca nos seus medos, pesadelos e convulsões, e soluça de choro, perdida, a correr no labirinto sem saída. Até chegar à paragem mais perto de casa.
As paredes do seu quarto esperam-na. Sara senta-se na cama, hoje está decidida. Cai a noite e resta a luz debaixo da porta. A voz sumida murmura mais um “BOA-NOITE”, mas não recebe o “boa-noite” de volta. A porta range, abre-se devagar. A luz inunda a escuridão do quarto. O ecrã negro estridula de electricidade estática. No teclado não há vestígios de sangue. A janela está fechada. No quarto não se encontra ninguém.
4 de Abril de 2005
Der Igel
7 Comments:
Quem já não passou pela violência dos chats? quem já não procurou um amigo desconhecido no silêncio da noite? uma voz para nos ouvir... quem já não se desiludiu com a falsa mentira de uma máscara atrás do computador?
fizeste-me recordar muitas coisas...
By Eduarda Sousa, at 10:45 AM
Sara? Estás aí? Sara??
By Joana, at 2:29 PM
Sara?
By Eduarda Sousa, at 3:08 PM
História empolgante. Maravilhoso final. Sara fugiu de casa? ou passou para o mundo virtual?
By Anonymous, at 8:52 PM
Há quem se procure nos chats e há quem se procure nos blogs, Sara...
By João Carlos Silva, at 2:00 PM
A mim pareceu-me que isto é sobre muito mais do que chats. Auto-mutilação, talvez?... Não é um tema nada comum.
By Anonymous, at 2:55 PM
Não é comum o tema auto-mutilação? pode não ser nos media mas aqui no meio da faculdade fala-se bastante sobre este assunto, reconhece-se braços cortados, Dor, só isso: Dor!
By Eduarda Sousa, at 3:01 PM
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