Luz e Sombra

Friday, July 15, 2005

Miriam

Este caso é verídico!

Miriam é uma mulher muito pequenina, franzina, e delicada. Mora a escassos metros da minha casa. Deve ter aí os seus 45 anos. Há um ror de anos que se veste todos os dias da mesma maneira: saia preta travada pelo joelho e uma camisa com aquelas almofadas nos ombros como se usavam antigamente. Miriam é professora de português já há muitos anos, infelizmente nunca foi minha professora. Mas tive amigos que já a tiveram, todos a adoram, faz tudo pelos alunos e entre os professores é reconhecida como uma pessoa brilhante intelectualmente. Não era raro ouvir, na escola, outros professores tecerem-lhe elogios rasgados. Miriam também dá explicações de português e não tem mãos a medir tal é a quantidade de alunos que a procuram. É daquelas pessoas que dá vontade de conversar e abraçar tal é a sua delicadeza com os outros. Sempre que o meu pai me dava boleia para a escola via a professora, fizesse sol ou chuva, com a mala na mão a vir a pé (uma distância ainda bastante considerável) para a escola leccionar. Nunca vi esta mulher chegar de carro à escola! O marido tem um valente carrão mas nunca a levou ao emprego. É porteiro numa escola e o seu aspecto folgazão e bruto contrasta com o de Miriam, mulher delicada e inteligente. Também é muito frequente vê-la com os dois filhos pequenos a fazer compras ou no cinema. Não passa despercebido a ninguém a forma meiga e carinhosa como os trata, a atenção que lhes dispensa. Também não passa despercebido a ninguém as manchas negras da professora Miriam pelo corpo ou quando num dia de Inverno anda de óculos de sol. É muito frequente também vê-la a aparecer a meio da noite na casa dos nossos vizinhos, toda marcada, a pedir cama e a chorar compulsivamente. Este caso óbvio de maus-tratos sofridos do arruaceiro do marido é conhecido por toda a gente, inclusive que fica com o dinheiro todo da mulher para gastar nas suas borgas. Quando pela professora fico sempre com um aperto de coração, gostava de lhe falar mas não sei o que dizer! Como pode uma mulher tão delicada e inteligente continuar presa a um estupor destes? Não precisa dele para sobreviver. A verdade é que ouvir falar das coças consecutivas que leva já não constitui novidade para ninguém, há mais de 20 anos que as suporta, sem nunca ter posto um pé fora de casa. Quando lhe perguntam porque aguenta esta situação a sua resposta é sempre a mesma: “por causa dos filhos”. Mas este ano, depois de uma grande tareia, os professores, colegas de Miriam, insistiram com ela para abandonar o domicílio. Miriam desta vez aceitou. O marido não a deixou levar nem uma única cadeira. Todos os professores se juntaram e contribuíram para mobilar com os objectos básicos (cama…) a casa de Miriam. É muito raro ver colegas de trabalho a fazerem uma acção destas mas isto também dá para ver o quanto a professora é querida por todos. Abandonou a casa com os filhos. O marido começou aquela chantagem emocional básica: “abandonaste-me, vou morrer sozinho…” Miriam com pena tentou voltar para casa, mas foi convencida pelos amigos a não o fazer. Para aliviar a culpa que Miriam diz sentir (o marido adoeceu entretanto) começou a ir todos os dias cozinhar lá a casa para ele e arrumar tudo. É frequente vê-la todos os dias a lá ir fazer o trabalho de escrava. Mas o mais absurdo disto tudo é que o marido, apanhando-a lá em casa continua a dar-lhe coças. Miriam continua na mesma a ir lá todos os dias cozinhar e arrumar a casa. Continua a levar. É esta a sua situação actual. Eu deixei de querer compreender!

2 Comments:

  • concordo com a sea-gullsoul, um sentimento de dever, talvez algum afecto ainda, um descargo de consciencia? vontade de ajudar o proximo quem sabe?
    ja nao penso que seja questao de compreender, mas de alertar, respeitar e aceitar no caso daqueles com que nos preocupamos e de quem gostamos

    beijinhoooo*

    By Blogger Perséfone, at 3:54 PM  

  • Nunca viram um cão a voltar para o dono que o bate apenas porque este é o dono! Sem outra explicação, nem se chama o amor, apenas um instinto que o manda voltar. Quanto mais baixa for a estrutura intelectual da pessoa (e não estou falar de suas habilitações literárias) estou falar de toda a estrutura cultural-religiosa-experiência anterior-observação de pais-valores próprios.... etc... Se esta estrutura tiver uma organização elementar (do meu ponto de vista) fazendo a pessoa agir mais pelos instintos do que pela racionalidade (sim, instintos, porque o instinto de autoprotecção não entra neste preciso esquema, o ser humano é um bocadinho mais complexo do que os primatas e temos outros instintos que infelismente abafaram o instinto de protecção), sendo assim, a pessoa volta para o "dono" que a magoou...

    Não sei se me exprimi bem, e de certeza que vou ser criticada pelos alguns habitantes do blog, e talvez a minha teoria não vale nada do ponto de vista biológico, Der Uber, mas foi o qu eme fez sentir este post... uma pessoa com organização intelectual tão básica que não respeito os instintos de autoprotecção e segue os instintos de dever impostos pela sociedade/tradições/crenças

    By Blogger Dasha, at 1:19 PM  

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