DBI: Cinderela, por Stela
Custou mas foi! Desculpem lá mas este desafio foi muuuuuito difícil. Aqui fica a minha contribuição.
Cinderela
Mafalda apagou o cigarro com a ponta do sapato. Olhou para o relógio. «Mais cinco minutos…», pensou. Acendeu outro cigarro e calmamente inspirou o fumo, semicerrando ligeiramente os olhos. Eram poucas as coisas que lhe davam prazer na vida. Uma era fumar. Parava-lhe o pensamento, substituía medos por nicotina, angústias por deficiência de oxigénio. Verdade, trocaria qualquer cancro no pulmão por aqueles minutos de silêncio na sua cabeça, enquanto fumava. A outra coisa que lhe dava prazer na vida era dormir. Achava que eram semelhantes, na sua forma narcotizante de existir, e igualmente nos seus sonhos, não havia ideias, nem palavras, nem sentimentos sequer. Nunca se lembrava do que sonhava, embora já lhe tivessem explicado que era impossível que não sonhasse. Fosse como fosse, o sono permitia a Mafalda não existir por uma média de oito horas por dia. Isso agradava-lhe.
Apagou com tristeza o cigarro e voltou para dentro do supermercado. Foi tomar o seu lugar na caixa 15, maquinalmente. «Boa tarde. Tem cartão Maxi?», «bip, bip, bip…», «São 13 euros e 24 cêntimos, por favor».
Fernanda planeara tudo ao pormenor. Iria deixar as iguanas com a irmã, e o testamento já estava com o seu advogado. Disse que ia fazer uma viagem perigosa, que ia à Colômbia por dois meses, famosa por ser o país mais perigoso do mundo, e portanto precisava de fazer estes preparativos todos. No supermercado demorara algum tempo a escolher o vinho certo para misturar com os barbitúricos que comprara. Afinal… havia que ter bom gosto até na morte. Há 14 anos fizera com Eduardo o mesmo trajecto emocional. Tinham decidido suicidar-se, e a razão parecera-lhe tão lógica como agora. Estava profundamente metida em drogas, tal como ele. Os pais, farmacêuticos ricos, tinham-na proibido de voltar a estar com ele, e tinham tentado submetê-la a um tratamento forçado numa clínica de desintoxicação. Sem pensar muito, fugiu. Correu para os braços da droga e de Eduardo, mas depressa se apercebeu de que o caminho que iriam percorrer juntos seria curto. Sem dinheiro, sem ninguém que confiasse neles já o suficiente para lhes emprestar nada, Eduardo pediu-lhe que se prostituísse para terem droga. Ela pôs uma condição. «Ok, eu faço isso… Mas então promete-me que esta é a última vez que nos drogamos». Quando voltou, trazia droga suficiente para se matarem aos dois. Eduardo preparou as seringas em silêncio. «Toma, amor. Desculpa…». Deitaram-se lado a lado e injectaram-se. Enquanto sentia o torpor invadir-lhe o corpo e a consciência a deixá-la, apercebeu-se vagamente de que a mão de Eduardo afrouxava o aperto em que segurava a sua. Acordou ao lado de um corpo frio. “Eu era só uma criança…”, pensava na fila de supermercado. “Uma criança incrivelmente estúpida”. Mas não deixava de ser curioso que a criança que fôra e a adulta em que se tornara tivessem chegado à mesma conclusão: a vida era demasiado dolorosa para ser vivida. Não encontrava razão para permanecer neste mundo. A casa linda em que vivia seria melhor aproveitada por quem sorrisse ao ver nascer o sol sobre a falésia. Para Fernanda, era um desperdício, cada dia um sofrimento, cada minuto uma dor pelo que perdera e pelo que tirara a outros. Por uns anos a carreira de arquitecta ocupara-lhe o tempo, dera-lhe alento. Mas em cada casa que desenhava, via o futuro que não vivera. Ajudar a irmã a pensar na casa dela fora a coisa mais difícil que tivera de fazer. Pensar no quarto para as crianças, na cozinha, no quarto de casal… Estava farta.
«Oh menina, despache-se lá com isso, parece que está a dormir em pé!», resmungava um homem de bigode atrás de Fernanda. «’Tá bem que é bonita, mas porra, assim nunca mais saímos daqui…». Fernanda olhou para o homem, como que surpreendida por verificar que havia pessoas a quem estas coisa ainda importavam. «Está com pressa?», perguntou. «Eh, não é bem pressa, mas não tenho o dia todo!». «Pode passar à minha frente, se quiser. Tenho todo o tempo do mundo», disse calmamente. «Não, deixe estar minha senhora… A senhora não tem de fazer nada, a rapariga é que se devia despachar…Deixe lá, não se incomode…», assegurou-lhe o homem, intrigado por esta mulher de olhos escuros e impávidos. Calou-se, por lhe parecer que não era boa da cabeça. “Com gente doida, é melhor deixá-los estar…”, pensou.
Chegada a sua vez de pagar, Fernanda colocou no balcão a garrafa de vinho tinto alentejano, o seu preferido, e puxou a carteira. Mas quando olhou para a rapariga com a nota de dez euros na mão, encontrou os olhos mais azuis e mais implacáveis que já vira em toda a sua vida. «Eu sei quem tu és.», ouviu. «Tu és a puta que matou o meu irmão.» A cara da rapariga, toda contorcida de raiva, não era agora bonita, mas ainda se viam as semelhanças com Eduardo. O nariz fino e perfeito, os lábios cheios, e aqueles olhos acusadores. Pela cabeça de Fernanda passou a imagem de uma criança tímida e agarrada ao irmão, de olhos azuis iguaizinhos aos dele. Era a lembrança que tinha de Mafalda, daqueles dias conturbados em que a próxima dose era a sua única preocupação. Que ironia do destino, naquele dia em que decidira morrer, a única pessoa que a poderia perdoar aparecia à sua frente.
«Vamos tomar um café, Mafalda? Temos muito que conversar.», disse. O homem de bigode sacudia a cabeça, de espanto e indignação. «Mas o que é que vocês pensam?? Está tudo doido ou quê? Eu tenho que voltar para a minha oficina, caramba! Não sou um desocupado qualquer!» Os olhos vazios de Mafalda dirigiram-se para ele e voltou a calar-se. “Irra, esta também deve bater mal da cabeça…”.
Pelo walkie-talkie, Mafalda pediu que a substituíssem. «Emergência familiar, desculpem.» Ergueu-se e fez sinal a Fernanda para que a seguisse. Em vez de se dirigir à zona dos cafés, Mafalda começou a andar em direcção ao parque de estacionamento. «Onde vamos?», perguntou Fernanda, sem no entanto obter resposta. Entraram num Renault 5 muito velhinho, a precisar notoriamente de arranjo. «Vou-te mostrar o que fizeste à minha vida.», disse Mafalda, ligando o motor do carro. Demoraram meia hora no trajecto, 30 minutos durante os quais Fernanda se questionava aonde iriam, e se Mafalda planeava algum tipo de vingança. Fechou os olhos e apercebeu-se de que não tinha a mínima vontade de se defender. Estava pronta. Mafalda estacionou nas traseiras de um edifício, e saiu do carro. «Anda.»
Subiram umas escadas e foram dar à entrada principal do edifício. «Instituto Português de Oncologia», leu Fernanda num painel. Mafalda entrou sem hesitação, sempre seguida por Fernanda. Sabia onde ia, tinha feito aquele trajecto muitas vezes, em todas as estações do ano, com todos os estados de humor, desde o mais esperançado ao mais conformado, passando pelos ocasionais dias de raiva. Chegaram a uma ala onde estavam 15 camas, todas ocupadas por pessoas em estados terminais de algum tipo de cancro. «Aqui a minha mãe passou os últimos 4 meses da vida dela. Morreu o ano passado. Esta era a cama dela», disse, monocórdica, apontando para uma cama colocada junto à janela, agora ocupada por um senhor idoso e cadavérico. «Ela só resistiu tanto tempo porque me tinha a mim. O meu pai não me teve em tanta consideração e quando o Eduardo morreu, deixou de se preocupar consigo mesmo. Acho que morreu de desgosto, embora todos me digam que foi atropelado. Ele não se importava se vivia ou morria.» Fernanda sabia disto. Amigos de outros tempos contavam-lhe de vez em quando o que se passava com a família de Eduardo. Nunca teve coragem de ajudar, nunca teve coragem de olhar com os próprios olhos para o seu legado.
«Olá, Mafalda! Por aqui?» Uma enfermeira nova sorria-lhes, com ar preocupado. «Passa-se alguma coisa?» Mafalda começou a chorar, a imagem da mãe cheia de tubos, amarela e esquálida, tomada por dores, veio-lhe à cabeça sem o poder evitar. A enfermeira segurou Mafalda pelos ombros e encaminhou-a para a porta. «Assim, não, querida, estás a perturbar os pacientes…Anda lá, vamos tomar um chá. Quem é a senhora? Não importa, venha também.» Fernanda seguiu novamente Mafalda, entendendo que nenhuma vingança viria daquela alma triste.
«Esta rapariga nunca vai ser feliz, assim… Teve uma vida super lixada, diga-se de passagem… Ai, desculpe…» A idade da enfermeira traía-a no seu discurso. «E tão gira, era de esperar que tivesse montes de rapazes a correr atrás dela, mas não, mal eles dão de caras com aqueles olhos, percebem logo que ali não há calor, não há nada. Parece que perdeu a alma, ou sei lá o quê… A senhora conhece-a de onde?»
Mafalda bebia o seu chá em silêncio, sentada a um canto e a enfermeira Paula («Paula Mendes, ao seu dispôr!») tentava entabular conversa com aquela mulher estranha, curiosa para perceber qual era a ligação entre aquelas duas e o porquê de Mafalda ter voltado ao IPO tanto tempo depois da mãe morrer. Não era invulgar os familiares de pacientes voltarem ao IPO, para fazer voluntariado, por exemplo, mas Mafalda tinha desaparecido totalmente. E parecia ainda pior do que da última vez que a tinha visto.
«Eu sou a responsável pela solidão dela. A Mafalda tinha um irmão. Ele…» Foi interrompida pela voz de Paula. «O Eduardo! Sim, eu lembro-me da mãe da Mafalda falar nele… Mas porque é que diz que é responsável pela solidão dela?!», perguntou a rapariga, entusiasmada como se se tratasse da telenovela das oito. «Ele morreu por minha causa. Eu era namorada dele e nós…» Foi novamente interrompida. «Ah! Sim, ele morreu de overdose e você sobreviveu e deixou as drogas! Então você é que é a arquitecta?! Ah, estou a ver…» Fernanda sentiu-se um pouco chocada por ver a sua vida resumida assim, mas estas eram as vantagens da TV Guia, um drama ficava explicado em três frases. Sentiu que a rapariga não estava a perceber o alcance da sua tragédia, da tragédia de Mafalda, de Eduardo, daquela família. «Ouça… não fale assim destas coisas… É muito sério. Se não fosse o meu envolvimento com o Eduardo, ele não teria…» Outra vez, Paula tomou a dianteira. «Morrido? Oh, não seja parva! Sabe lá. A verdade é que quando as pessoas têm dentro de si o potencial para se auto-destruir, às vezes só precisam de um empurrãozinho, mas esse empurrão pode vir de qualquer lado, sob a forma até de uma coisa positiva. Às vezes não há nada mais ameaçador que a felicidade...» Uma sombra passou pelos olhos da enfermeira. «Além disso era tão provável que fosse ele a morrer como você, ou não? Olhe, a senhora pura e simplesmente não sabe. Se nos culpássemos sempre pelo que acontece aos outros, então ninguém teria responsabilidade pelas suas acções, não é? Não invente coisas… O melhor que temos a fazer é andar com a nossa vida para a frente. Assumir as nossas responsabilidades, sim, mas de forma útil e não andar a carregar pesos que não foram feitos para pessoas carregarem. Veja a Mafalda. Ela carrega com ela o peso de toda a família. Quem sabe não se culpa a si própria pelo irmão e o pai não a terem amado o suficiente para se agarrarem à vida. Estas coisas não são fardos para crianças carregarem… e veja bem que ela é uma mulher agora, mas no fundo, no fundo, ainda é uma criança…»
As palavras directas de Paula deixaram Fernanda a sentir-se ainda mais miserável. Apercebeu-se de que morrer seria uma escolha cobarde. Mafalda estava ali. Viva e a sofrer. Aproximou-se da rapariga. «Mafalda?» Os olhos azuis ergueram-se para ela do abismo da dor. «Se me deixares… eu gostava de poder tomar conta de ti.» Por uns momentos parecia que Mafalda voltara a ter raiva dentro de si e que ia bater em Fernanda. Mas Fernanda acariciou com a mão os cabelos de Mafalda e trauteou «Então, bate bate coração, louco louco de emoção… a idade assim não tem valor…». E outra memória tomou lugar nas suas cabeças, de uma tarde de Agosto na casa dos pais de Mafalda, dos três a fazerem a sesta depois de uma sardinhada, Mafalda com a cabeça pousada na barriga de Fernanda, enquanto esta acariciava os cabelos encharcados em suor da menina, e as duas trauteando a canção do Carlos Paião, apenas para irritarem Eduardo que detestava a canção. «Daqui a bocado a Cinderela leva mas é um sopapo…», dizia ele ensonado. As duas riam-se e calavam-se. Trocavam olhares cúmplices e logo tornavam a cantar baixinho «Eles são duas crianças, a viver esperanças, a saber sorrir…».
Cinderela
Mafalda apagou o cigarro com a ponta do sapato. Olhou para o relógio. «Mais cinco minutos…», pensou. Acendeu outro cigarro e calmamente inspirou o fumo, semicerrando ligeiramente os olhos. Eram poucas as coisas que lhe davam prazer na vida. Uma era fumar. Parava-lhe o pensamento, substituía medos por nicotina, angústias por deficiência de oxigénio. Verdade, trocaria qualquer cancro no pulmão por aqueles minutos de silêncio na sua cabeça, enquanto fumava. A outra coisa que lhe dava prazer na vida era dormir. Achava que eram semelhantes, na sua forma narcotizante de existir, e igualmente nos seus sonhos, não havia ideias, nem palavras, nem sentimentos sequer. Nunca se lembrava do que sonhava, embora já lhe tivessem explicado que era impossível que não sonhasse. Fosse como fosse, o sono permitia a Mafalda não existir por uma média de oito horas por dia. Isso agradava-lhe.
Apagou com tristeza o cigarro e voltou para dentro do supermercado. Foi tomar o seu lugar na caixa 15, maquinalmente. «Boa tarde. Tem cartão Maxi?», «bip, bip, bip…», «São 13 euros e 24 cêntimos, por favor».
Fernanda planeara tudo ao pormenor. Iria deixar as iguanas com a irmã, e o testamento já estava com o seu advogado. Disse que ia fazer uma viagem perigosa, que ia à Colômbia por dois meses, famosa por ser o país mais perigoso do mundo, e portanto precisava de fazer estes preparativos todos. No supermercado demorara algum tempo a escolher o vinho certo para misturar com os barbitúricos que comprara. Afinal… havia que ter bom gosto até na morte. Há 14 anos fizera com Eduardo o mesmo trajecto emocional. Tinham decidido suicidar-se, e a razão parecera-lhe tão lógica como agora. Estava profundamente metida em drogas, tal como ele. Os pais, farmacêuticos ricos, tinham-na proibido de voltar a estar com ele, e tinham tentado submetê-la a um tratamento forçado numa clínica de desintoxicação. Sem pensar muito, fugiu. Correu para os braços da droga e de Eduardo, mas depressa se apercebeu de que o caminho que iriam percorrer juntos seria curto. Sem dinheiro, sem ninguém que confiasse neles já o suficiente para lhes emprestar nada, Eduardo pediu-lhe que se prostituísse para terem droga. Ela pôs uma condição. «Ok, eu faço isso… Mas então promete-me que esta é a última vez que nos drogamos». Quando voltou, trazia droga suficiente para se matarem aos dois. Eduardo preparou as seringas em silêncio. «Toma, amor. Desculpa…». Deitaram-se lado a lado e injectaram-se. Enquanto sentia o torpor invadir-lhe o corpo e a consciência a deixá-la, apercebeu-se vagamente de que a mão de Eduardo afrouxava o aperto em que segurava a sua. Acordou ao lado de um corpo frio. “Eu era só uma criança…”, pensava na fila de supermercado. “Uma criança incrivelmente estúpida”. Mas não deixava de ser curioso que a criança que fôra e a adulta em que se tornara tivessem chegado à mesma conclusão: a vida era demasiado dolorosa para ser vivida. Não encontrava razão para permanecer neste mundo. A casa linda em que vivia seria melhor aproveitada por quem sorrisse ao ver nascer o sol sobre a falésia. Para Fernanda, era um desperdício, cada dia um sofrimento, cada minuto uma dor pelo que perdera e pelo que tirara a outros. Por uns anos a carreira de arquitecta ocupara-lhe o tempo, dera-lhe alento. Mas em cada casa que desenhava, via o futuro que não vivera. Ajudar a irmã a pensar na casa dela fora a coisa mais difícil que tivera de fazer. Pensar no quarto para as crianças, na cozinha, no quarto de casal… Estava farta.
«Oh menina, despache-se lá com isso, parece que está a dormir em pé!», resmungava um homem de bigode atrás de Fernanda. «’Tá bem que é bonita, mas porra, assim nunca mais saímos daqui…». Fernanda olhou para o homem, como que surpreendida por verificar que havia pessoas a quem estas coisa ainda importavam. «Está com pressa?», perguntou. «Eh, não é bem pressa, mas não tenho o dia todo!». «Pode passar à minha frente, se quiser. Tenho todo o tempo do mundo», disse calmamente. «Não, deixe estar minha senhora… A senhora não tem de fazer nada, a rapariga é que se devia despachar…Deixe lá, não se incomode…», assegurou-lhe o homem, intrigado por esta mulher de olhos escuros e impávidos. Calou-se, por lhe parecer que não era boa da cabeça. “Com gente doida, é melhor deixá-los estar…”, pensou.
Chegada a sua vez de pagar, Fernanda colocou no balcão a garrafa de vinho tinto alentejano, o seu preferido, e puxou a carteira. Mas quando olhou para a rapariga com a nota de dez euros na mão, encontrou os olhos mais azuis e mais implacáveis que já vira em toda a sua vida. «Eu sei quem tu és.», ouviu. «Tu és a puta que matou o meu irmão.» A cara da rapariga, toda contorcida de raiva, não era agora bonita, mas ainda se viam as semelhanças com Eduardo. O nariz fino e perfeito, os lábios cheios, e aqueles olhos acusadores. Pela cabeça de Fernanda passou a imagem de uma criança tímida e agarrada ao irmão, de olhos azuis iguaizinhos aos dele. Era a lembrança que tinha de Mafalda, daqueles dias conturbados em que a próxima dose era a sua única preocupação. Que ironia do destino, naquele dia em que decidira morrer, a única pessoa que a poderia perdoar aparecia à sua frente.
«Vamos tomar um café, Mafalda? Temos muito que conversar.», disse. O homem de bigode sacudia a cabeça, de espanto e indignação. «Mas o que é que vocês pensam?? Está tudo doido ou quê? Eu tenho que voltar para a minha oficina, caramba! Não sou um desocupado qualquer!» Os olhos vazios de Mafalda dirigiram-se para ele e voltou a calar-se. “Irra, esta também deve bater mal da cabeça…”.
Pelo walkie-talkie, Mafalda pediu que a substituíssem. «Emergência familiar, desculpem.» Ergueu-se e fez sinal a Fernanda para que a seguisse. Em vez de se dirigir à zona dos cafés, Mafalda começou a andar em direcção ao parque de estacionamento. «Onde vamos?», perguntou Fernanda, sem no entanto obter resposta. Entraram num Renault 5 muito velhinho, a precisar notoriamente de arranjo. «Vou-te mostrar o que fizeste à minha vida.», disse Mafalda, ligando o motor do carro. Demoraram meia hora no trajecto, 30 minutos durante os quais Fernanda se questionava aonde iriam, e se Mafalda planeava algum tipo de vingança. Fechou os olhos e apercebeu-se de que não tinha a mínima vontade de se defender. Estava pronta. Mafalda estacionou nas traseiras de um edifício, e saiu do carro. «Anda.»
Subiram umas escadas e foram dar à entrada principal do edifício. «Instituto Português de Oncologia», leu Fernanda num painel. Mafalda entrou sem hesitação, sempre seguida por Fernanda. Sabia onde ia, tinha feito aquele trajecto muitas vezes, em todas as estações do ano, com todos os estados de humor, desde o mais esperançado ao mais conformado, passando pelos ocasionais dias de raiva. Chegaram a uma ala onde estavam 15 camas, todas ocupadas por pessoas em estados terminais de algum tipo de cancro. «Aqui a minha mãe passou os últimos 4 meses da vida dela. Morreu o ano passado. Esta era a cama dela», disse, monocórdica, apontando para uma cama colocada junto à janela, agora ocupada por um senhor idoso e cadavérico. «Ela só resistiu tanto tempo porque me tinha a mim. O meu pai não me teve em tanta consideração e quando o Eduardo morreu, deixou de se preocupar consigo mesmo. Acho que morreu de desgosto, embora todos me digam que foi atropelado. Ele não se importava se vivia ou morria.» Fernanda sabia disto. Amigos de outros tempos contavam-lhe de vez em quando o que se passava com a família de Eduardo. Nunca teve coragem de ajudar, nunca teve coragem de olhar com os próprios olhos para o seu legado.
«Olá, Mafalda! Por aqui?» Uma enfermeira nova sorria-lhes, com ar preocupado. «Passa-se alguma coisa?» Mafalda começou a chorar, a imagem da mãe cheia de tubos, amarela e esquálida, tomada por dores, veio-lhe à cabeça sem o poder evitar. A enfermeira segurou Mafalda pelos ombros e encaminhou-a para a porta. «Assim, não, querida, estás a perturbar os pacientes…Anda lá, vamos tomar um chá. Quem é a senhora? Não importa, venha também.» Fernanda seguiu novamente Mafalda, entendendo que nenhuma vingança viria daquela alma triste.
«Esta rapariga nunca vai ser feliz, assim… Teve uma vida super lixada, diga-se de passagem… Ai, desculpe…» A idade da enfermeira traía-a no seu discurso. «E tão gira, era de esperar que tivesse montes de rapazes a correr atrás dela, mas não, mal eles dão de caras com aqueles olhos, percebem logo que ali não há calor, não há nada. Parece que perdeu a alma, ou sei lá o quê… A senhora conhece-a de onde?»
Mafalda bebia o seu chá em silêncio, sentada a um canto e a enfermeira Paula («Paula Mendes, ao seu dispôr!») tentava entabular conversa com aquela mulher estranha, curiosa para perceber qual era a ligação entre aquelas duas e o porquê de Mafalda ter voltado ao IPO tanto tempo depois da mãe morrer. Não era invulgar os familiares de pacientes voltarem ao IPO, para fazer voluntariado, por exemplo, mas Mafalda tinha desaparecido totalmente. E parecia ainda pior do que da última vez que a tinha visto.
«Eu sou a responsável pela solidão dela. A Mafalda tinha um irmão. Ele…» Foi interrompida pela voz de Paula. «O Eduardo! Sim, eu lembro-me da mãe da Mafalda falar nele… Mas porque é que diz que é responsável pela solidão dela?!», perguntou a rapariga, entusiasmada como se se tratasse da telenovela das oito. «Ele morreu por minha causa. Eu era namorada dele e nós…» Foi novamente interrompida. «Ah! Sim, ele morreu de overdose e você sobreviveu e deixou as drogas! Então você é que é a arquitecta?! Ah, estou a ver…» Fernanda sentiu-se um pouco chocada por ver a sua vida resumida assim, mas estas eram as vantagens da TV Guia, um drama ficava explicado em três frases. Sentiu que a rapariga não estava a perceber o alcance da sua tragédia, da tragédia de Mafalda, de Eduardo, daquela família. «Ouça… não fale assim destas coisas… É muito sério. Se não fosse o meu envolvimento com o Eduardo, ele não teria…» Outra vez, Paula tomou a dianteira. «Morrido? Oh, não seja parva! Sabe lá. A verdade é que quando as pessoas têm dentro de si o potencial para se auto-destruir, às vezes só precisam de um empurrãozinho, mas esse empurrão pode vir de qualquer lado, sob a forma até de uma coisa positiva. Às vezes não há nada mais ameaçador que a felicidade...» Uma sombra passou pelos olhos da enfermeira. «Além disso era tão provável que fosse ele a morrer como você, ou não? Olhe, a senhora pura e simplesmente não sabe. Se nos culpássemos sempre pelo que acontece aos outros, então ninguém teria responsabilidade pelas suas acções, não é? Não invente coisas… O melhor que temos a fazer é andar com a nossa vida para a frente. Assumir as nossas responsabilidades, sim, mas de forma útil e não andar a carregar pesos que não foram feitos para pessoas carregarem. Veja a Mafalda. Ela carrega com ela o peso de toda a família. Quem sabe não se culpa a si própria pelo irmão e o pai não a terem amado o suficiente para se agarrarem à vida. Estas coisas não são fardos para crianças carregarem… e veja bem que ela é uma mulher agora, mas no fundo, no fundo, ainda é uma criança…»
As palavras directas de Paula deixaram Fernanda a sentir-se ainda mais miserável. Apercebeu-se de que morrer seria uma escolha cobarde. Mafalda estava ali. Viva e a sofrer. Aproximou-se da rapariga. «Mafalda?» Os olhos azuis ergueram-se para ela do abismo da dor. «Se me deixares… eu gostava de poder tomar conta de ti.» Por uns momentos parecia que Mafalda voltara a ter raiva dentro de si e que ia bater em Fernanda. Mas Fernanda acariciou com a mão os cabelos de Mafalda e trauteou «Então, bate bate coração, louco louco de emoção… a idade assim não tem valor…». E outra memória tomou lugar nas suas cabeças, de uma tarde de Agosto na casa dos pais de Mafalda, dos três a fazerem a sesta depois de uma sardinhada, Mafalda com a cabeça pousada na barriga de Fernanda, enquanto esta acariciava os cabelos encharcados em suor da menina, e as duas trauteando a canção do Carlos Paião, apenas para irritarem Eduardo que detestava a canção. «Daqui a bocado a Cinderela leva mas é um sopapo…», dizia ele ensonado. As duas riam-se e calavam-se. Trocavam olhares cúmplices e logo tornavam a cantar baixinho «Eles são duas crianças, a viver esperanças, a saber sorrir…».
3 Comments:
É assim que funciona a minha amiguita! Grande classe, enorme estilo... excelente trama!
parabens (ham)! E vens sempre a tempo
ps: o Igel promete voltar em breve...(shh)
By Der Überlebende, at 8:53 PM
[bgd pela resposta D.U. :)]
ora bem, o que dizer? um atropelamento de sentimentos que aqui vai, focaste bem o que marcou a vida de cada personagem, não sei porquê nao consegui gostar da enfermeira, parece-me alguém desligado da dor humana, demasiado politicamente correcto, sinceramente essa é uma das coisas que mais me intriga e irrita até nas pessoas, não me apetece agora dissertar sobre o porquê, provavelmente é obvio de qualquer das maneiras, a Fernanda... bem a Fernanda consegui simpatizar com ela, pareceu-me uma senhora sofrida e considerar suicidio é sempre denuncia de grande angústia e desgosto independentemente do motivo, felizmente encontrou uma outra forma de os encarar, a Mafalda e a mãe.. não sei, a Mafalda tocou-me, mesmo, desde que ela leva a Fernanda até ao IPO que o meu estômago embrulhou, lembrou-me muita coisa, muitas caras, muitas palavras, muitos cheiros.
Música Portuguesa :) um lindo "remate" para uma história tao humana quanto esta, deixou um cheirinho de esperança no ar :) é mágico o momento em as lágrimas passam a simbolo da saudade deixada nos nossos corações, e passam a nascer acompanhadas de um sorriso nos lábios.
Muitos Parabéns :)
beijinho*
By Perséfone, at 9:21 PM
Tenho andado meia desesperançada, melancólica... nem sei bem porquê?! talvez por esta fase de exames nunca mais acabar!!! ao ler o teu texto parece que uma chama voltou a nascer dentro de mim, é meio estúpido o sentimento que me invadiu no momento: é possível criar, fazer coisas originais, inventar... e isto bastou para me animar para mais uma tarde abominável de estudo :)
beijinho
By Eduarda Sousa, at 10:48 AM
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