Luz e Sombra

Wednesday, September 14, 2005

DT: Final feliz, by Stela

Peço muitas desculpas por não ter participado nos desafios anteriores. Apetecia-me escrever sobre isto, e acho que se encaixa bem no tema lançado pelo Silent Child. Prometo ser mais participativa nos próximos desafios!!



Pegou no lápis de khol e traçou com mão firme uma linha escura por baixo dos olhos. Imediatamente o olhar mortiço ganhou nova luz. Aplicou cuidadosamente o rímel, primeiro por cima das pestanas, depois por baixo. Abriu e fechou os olhos, num código morse só dela. Baton… Escolheu o vermelho escuro. Olhou para o resultado final. Magra como um esqueleto, cara chupada e cabelo flamejante vermelho com caracóis rebeldes. Lá estavam os olhos, brilhantes agora, de inteligência e sedução. Nenhuma pergunta se via contudo neles. Estavam vazios de curiosidade pela vida, antes afirmavam claramente o desprezo que devotava a este mundo.
Ia todos os dias à faculdade, apesar de tudo. E mesmo sem nunca estudar afincadamente, tirava notas brilhantes, mas nada lhe parecia ser digno de orgulho. «Podes ser tudo o que quiseres, Marta!» Mas não havia nada que quisesse de facto ser. Encontrava algum apaziguamento nas aulas de Matemática, mas tudo lhe era tão fácil… Até ser a melhor da aula, a melhor da faculdade, a aborrecia e cansava. Nada a fazia vibrar e por isso a única coisa que queria era ausentar-se. O sentimento de ausência de qualquer forma sempre a tinha acompanhado. Onde quer que fosse, sentia-se de fora. Então, porquê não concretizar essa ausência? Usou e abusou de tudo o que tivesse o potencial de a fazer sentir-se finalmente longe, a flutuar, muito acima da vida e da morte. Afinal havia outros mundos para explorar, nos braços do álcool e da droga. Por fim, só lhe sobravam amigos tão desligados e desinteressados neste plano existencial como ela. Mas mesmo esses se afastavam quando começavam a sentir o enorme peso da sua tristeza interior. Era como um manto negro de escuridão que se estendia suave e inexoravelmente sobre as suas almas, sugando-lhes o pouco de alegria que conseguiam esconder dentro de si. Rapidamente começaram a dar desculpas para não estarem com ela. «Desculpa, Marta, mas hoje não dá… A minha mãe já anda a estranhar.»
A mãe de Marta não estranhava nada, porque passava metade do tempo fora do país em trabalho e a outra metade dentro do país em trabalho. Mas amava muito a filha e demonstrava-o dando-lhe todo o dinheiro que ela lhe pedisse. Isso facilitava a compra das suas substâncias de distanciamento planetário.
Nessa noite, Marta estava sozinha, vestida e maquilhada a preceito. Nos pés os seus novos sapatos D&G, nas suas mãos uma miríade de comprimidos multicolores. Tomou-os acompanhada de uma garrafa inteira de vodka. Sentiu o seu corpo desistir, aos poucos. “Vou morrer”, pensou. Até aí, não tinha nunca formulado em palavras ser esse o seu desejo, mas agora que a possibilidade de morrer se lhe afigurava muito possível, não era uma ideia que lhe desagradasse… E à medida que a luz se apagava dos olhos de cigana, sentia ter sido este o único momento dos seus 19 anos em que percebera que afinal, estava viva.

2 Comments:

  • G'anda Stelita

    A historia não é nova, mas é demasiado horrivel para não ser contada a outras vozes

    a diluição do que é ser único e inegualável, o horror do estar só sem saber o que significa não estar só, a agonia de ser sem saber que se é

    ainda bem que reapareceste!

    d.u.

    By Blogger Der Überlebende, at 11:51 PM  

  • Finalmente volto a ler um texto teu :). Não posso dizer que seja o meu favorito mas gostei. À medida que as palavras iam dançando à frente dos meus olhos guardava a secreta esperança de que fosses salvar a tua Marta, de que deixasses germinar nela a pequenina semente da esperança, do sonho. Desculpa lá, mas acho que matar a personagem foi o caminho mais fácil e óbvio. Logo tu, que escolhes sempre os caminhos mais difíceis e bem sabes como as tuas escolhas te têm recompensado :)...

    By Blogger puta_madre, at 11:00 PM  

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