Luz e Sombra

Monday, January 30, 2006

Rotina

Em mais uma das minhas rotineiras migrações de regresso a casa, deixo-me embevecer pela suavidade da marcha do comboio, pelo silêncio de uma carruagem vazia, por aquela música de fundo, clássica, que me embala, a que eu conheço já o ritmo de cor.A leve sonolência, controlada, convida-me a reflexões várias, que me adormecem, por breves instantes, despertando-me noutros, com um iluminar veloz e momentâneo.Desperto num ápice, procuro, à deriva e em sobressalto, um pedaço de papel e caneta. “Tenho de escrever antes que me esqueça”. Em vão... não trouxe material de escrita. O pânico cresce, perco o controlo e começo a remexer tudo o que trouxe, a olhar atarantadamente em volta. Alguém poderia ter perdido um lápis, deixado o jornal no banco da carruagem, nada...Pego no telemóvel, abro as mensagens, e tento lembrar-me do que já me tinha esquecido. “Tinha qualquer coisa a ver com...” ... “É isso”, e mais rápido do que os meus dedos permitem, escrevo apressadamente como se uma bomba estivesse prestes a explodir, e só eu a pudesse desarmar. O telemóvel, um pouco lento da memória cheia, sofre ataques de uma dactilografia abreviada e confusa, com alguns erros pelo meio, não fosse tanto o desespero.Aliviada por saber que me irei lembrar, guardo o pequeno aparelho e volto- me novamente para a enublada paisagem.Eu sabia que me iria lembrar, escrevendo ou não, mas precisava de me assegurar. Se me esquecesse era terrível. Algo importante para fazer, não o seria, uma ideia brilhante, não passaria nem para o papel, um texto, um poema, daqueles que surgem e fluem como um rio, por vezes como cascatas, ou mesmo uma resolução que poderia mudar toda a minha vida.Eu lembrar-me-ia, eu sei que sim, mas e se a memória falhava? Justificam-se assim os meus actos, os meus loucos reflexos, em busca de estabilidade e controlo.Admito, sou perfeccionista, teimosa, e talvez maníaca do controlo, pelo menos comigo mesma, com a organização do meu presente, do meu futuro, de tudo o que os rodeia, como reflexos de um passado, organizado, controlado e não deixado ao acaso, á sorte ou ao desvario.“Quando é que chego a casa?”mais 25 minutos de espera pelo autocarro... perdi o anterior por um minuto...Lentamente vão chegando mais pessoas, os velhotes, nas suas lamúrias da velhice: as doenças, e as dores, é ver quem é mais desgraçado que o outro, no meio uma foto do netinho, que bonito, e tão inteligente, mas apanhou uma gripe no fim de semana... pode ser uma desgraça...Os putos da escola, asneira atrás de asneira, na convicção de que são “muita fixes”, populares, rebeldes, na esperança de que um o seu esforço seja reconhecido, e consigam ser interrogados pela polícia como nos filmes americanos, talvez até passar uma noite numa sela imunda, e fazer uns risquinhos e uns grafitis na sua parede.Chega depois uma jovem mãe, carregada até aos cabelos, com o bebé e a parafernália toda, o sacrifício de uma mãe, esperando que o seu filho cresça e seja bem educado, (olhar de soslaio aos putos da escola), não como estes, que lhe dê orgulho, tire o seu curso superior numa universidade de Lisboa e cuide dela na velhice. Seria interessante perguntar-lhe, e ouvir um discurso socialmente correcto de: “O meu filho vai ser o que ele quiser”, e verificar o seu crescente desagrado quando, primeiramente, com cinco anos, ele lhe diz que quer ser homem do lixo, e depois essa é uma das poucas profissões que ele poderá seguir...
Tenho os olhos doridos do cansaço, um peso no estômago vazio, e a coluna dorida e gelada dos bancos metálicos da paragem.Queria tanto chegar a casa, comer, ver televisão e dormir, deixar novamente o estudo para outro dia, e no dia seguinte voltar a esta rotina, sociologicamente tão interessante, completamente revigorada, e enérgica que até irrita, não que eu seja irritante, mas porque todos parecem “zombies” de manha...... 2 minutos atrasado, mas vem aí... a minha salvação.

4 Comments:

  • Qual Bridget Jones de inspiração neogótica, a personagem deste texto revela a inquietude e irreverência da autora. A nossa Vera é um vulcão de palavras e histórias, de acidentes luminosos e epígrafes redentoras. É uma força da Natureza.

    obrigado pelo ânimo e criatividade!

    muitos parabéns,

    Der Uber

    By Blogger Der Überlebende, at 12:22 PM  

  • Fizeste-me rir... ;)
    Excelente cenário... e tão real... Nada que nunca me tivesse acontecido ;)

    Beijos e Parabéns!

    By Blogger Synne Soprana, at 11:09 PM  

  • belo texto, reconhecível e calmante. gosto muito das belezas escondidas do dia a dia.

    By Blogger aquelabruxa, at 10:38 AM  

  • Adorei... É tão real e próximo. O pão nosso de cada dia. No meu caso só muda o meio de transporte: autocarro. Mas o cenário e as personagens repentem-se :)

    beijinho

    By Blogger Eduarda Sousa, at 9:51 AM  

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