Anoitecer by Rosa Maria Oliveira
Mais um texto que recebi da Rosa Maria Oliveira. O nosso obrigado, aqui vai,
O dia estava a findar. Como em quase todos àquela hora, estendia no sofá as suas velhas pernas, que já lhe serviam há 76 anos. Placidamente, como quem cumpre um sagrado dever, assistia à telenovela, atenta ao telefone, não fossem os filhos telefonar. Como uma adolescente esconde dos pais, que assiste com os amigos a filmes impróprios para a sua idade, também ela escondia dos filhos aquela sua fraqueza. Doía-lhe, não por viver sozinha, mas por ouvi-los murmurar: - “A mãe está a ficar “taralhouca” por ver tantas telenovelas”. Aquelas horas eram como um paliativo que lhe aliviavam o corpo da canseira de mais um dia, e ao mesmo tempo, lhe aliviavam o coração das mágoas de uma vida. Mas eles não entendiam... Aquelas personagens, que representavam o mal e o bem, a riqueza e a pobreza, o amor e o ódio, alegrias e tristezas, encontros e desencontros, também faziam parte do seu viver e deambulavam pela casa vazia. Diziam-lhe que era alienante estar tantas horas defronte da televisão. Não compreendia bem o que significava isso, era tão difícil de entender o que eles queriam dizer, como aqueles filmes em línguas estrangeiras, em que tinha que se esforçar bastante para juntar as letras das legendas que passavam a correr, acabando por perder o tino à história.
Tinha 4 anos quando a mãe ainda muito jovem morrera de uma infecção pós-parto; o pai rapidamente arranjou substituta. Foi entregue aos cuidados de uma tia que a mandou à escola, mas, preferia ficar na rua a jogar “à carica” com os rapazes. Nunca passou da 2ª classe; nas letras era um desastre, mas na aritmética era razoável, até conseguia fazer contas de cabeça melhor que os filhos apesar destes terem estudado. Todos os males da sua vida tinham acontecido, porque não tivera a presença e os cuidados da mãe. Se semicerrasse os olhos, ainda conseguia recordar-lhe o rosto: a pele muito branca, cabelos loiros ligeiramente ondulados e um lindo sorriso que iluminava uma casa. Mas, o que lhe provocava uma profunda dor, era não lembrar como eram os seus beijos e os seus afagos. Pelo menos, o seu nome tinha sido escolhido por ela, era russo, igual ao da heroína de um romance, que falava da Revolução de Outubro, e que estava a ler na altura do seu nascimento. Se tivesse tido mãe, certamente que a teria apoiado em todos os momentos complicados que a vida lhe trouxera, e, talvez, nem tivesse sido obrigada a casar com um homem que não amava. Tinha acabado o namoro com um rapaz de quem muito gostava, os pais dele eram medianamente abastados e não consentiram que aquela rapariga, “uma Zé ninguém”, fizesse parte da família. Mais uma vez o destino atingira-a cruelmente.
Entretanto, conhecera o marido, rapaz apessoado e bem falante; levou-a a jantar a uma cervejaria, para o acompanhar e ser simpática bebeu demais. Do que se seguiu, só vagamente, muito vagamente, se recorda. Nos meses seguintes começou a ter “faltas”, confidenciou-o a uma amiga, e esta disse-lhe: - “Estás grávida”. Grávida? Como? Aos 18 anos desconhecia que podia ficar grávida numa primeira vez, com algo que acontecera num momento do qual mal se lembrava, e ainda menos que a irregularidade dos “períodos” significasse ter uma criança dentro dela. Nunca a tia a avisou que tal coisa podia acontecer! O namorado fugidio queria livrar-se de responsabilidades, mas, naquele tempo, Lisboa, era uma cidade provinciana, e o bairro, onde vivia, uma aldeia. O tio ameaçou-o: “Ou casava ou matava-o”. O casamento concretizou-se. Ainda hoje se lembra do primeiro namorado que amou com a alma, conserva-o na memória como alguém que sempre permaneceu ao seu lado, muito terno e sempre próximo.
Não que estivesse arrependida de ter tido a filha mais velha. Dizia com orgulho: - “Foi a minha flor de laranjeira” – tal como não estava arrependida dos três que se seguiram; a todos amava de igual modo com as suas diferentes peculiaridades, mas aquela era diferente. Chorou continuamente nos primeiros três meses de vida, como se soubesse que não tinha sido desejada, mas imposta. Talvez por isso aquela falta de confiança que tinha em si própria, como se estivesse sempre “a mais” onde quer que estivesse, ou naquilo que fizesse. Como se não tivesse as qualidades suficientes para ser aceite e gostassem dela. Era tão diferente dos irmãos... na maior parte das vezes andava alheia ao que a rodeava, sempre com ar sonhador e uns olhos longínquos, como se fitasse no horizonte algo que não conseguia decifrar. Talvez a culpa fosse sua, nem sequer se lembrava como a tinha concebido, talvez por isso, aquela incapacidade que a filha tinha em viver com os pés na terra, embora, quando estava atenta ao mundo, estivesse mesmo. Também a filha enviuvara cedo, a partir daí, como se libertasse de uma amarra, aquela vertente misteriosa acentuou-se. Falava em assuntos estranhos, como: - “Éramos todos deuses imortais esquecidos da nossa origem divina; mergulhados voluntariamente na roda dos renascimentos, não para cumprirmos um castigo individual, mas, numa ordem de justiça universal pré-estabelecida, de oportunidades iguais para todos, embora por caminhos diferentes, da qual não temos consciência até ao dia que realizarmos na Terra aquilo que somos no Céu; após o sucesso dessa peregrinação, repletos de saber e amor, retornaremos a esse Lugar de bem-aventurança onde tudo e todos: É Infinita e Pura Unidade”.
Aquelas palavras ressoavam dentro de si como algo que lhe era familiar; mas não queria saber disso, nem sequer era religiosa. Crescera numa família proletária com ideais pró-comunistas, o tio preso pela “Legião”, estivera detido alguns meses acusado de ser agitador na fábrica onde trabalhava. Esse tempo tinha sido de muita penúria. Recordava, que na sua adolescência, tinha um rancor visceral aos padres e aos “legionários” os quais considerava responsáveis pelas suas desditas e provações . Os padres, porque conheciam de perto Deus, e Deus levara-lhe a mãe; os “legionários”, porque prenderam o tio, e estivera na iminência de ir morar na rua, não fora a generosidade dos vizinhos que se cotizaram para pagar a renda de casa.
Era feliz naqueles finais de tarde, uma a uma, vinham as recordações; afastava as más e detinha-se nas boas. A mente ficava suspensa como um barco à vela no alto mar sem que a mais leve brisa o agitasse, tendo como companhia o Sol alaranjado que lentamente descia no horizonte pronto a desaparecer. Ó se pudesse viajar naquela bola cor de fogo e acordar no outro lado do mundo!...
A telenovela estava prestes a começar, fechou os olhos, viu o rosto do homem que amara há 60 anos atrás; Essa imagem esfumou-se, sucedendo-lhe a da mãe, linda como um anjo, correu para os seus braços como uma criança, ouviu-se uma canção de embalar, sorriu e adormeceu....
Abril 2005-04-18
by Rosa Maria Oliveira
9 Comments:
linda personagem. Faz-me lembrar a minha avo em mtos aspectos, o abandono, a injustica, o casamento contra vontade... Quantas vezes nao se sentiram as mulheres dessa geracao e de outras anteriores encurraladas por decisoes de outros? Quantas vezes o destino lhes fugiu das maos? Sao as nossas avozinhas, para quem olhamos com pena: "esta a ficar taralhouca de ver tanta telenovela"...
By smallworld, at 12:13 PM
Senti ternura quando li este texto. Apesar de retratar a triste rotina de tantos idosos, mostrou também como eles à sua maneira são felizes com as suas recordações.
Acho que à maioria deve fazer recordar as suas avós, aquelas ternas senhoras que vivem através da televisão.
By Anonymous, at 1:07 PM
começo a notar numa nostalgia comum, que nao sei ainda bem explicar, aos textos que leio neste blogue. nao é grande admiraçao, claro, visto haver o ponto comum - portugueses - mas a coisa das avós, a relaçao com a terra, referências a aldeias e a tempos passados, personagens solitárias, personagens infelizes, tudo isto nao deixa de me surpreender. é impressao minha, ou há aqui uma saudade estranha de tempos nao vividos? porque será? surpreenderam-me as descriçoes tao apuradas do texto d' "o livro negro", como se lesse realmente algo mediaval... e toda a atmosfera de d' "a cova"... de onde vêm essas ideias, essas descriçoes tao reais? estarei estrangeira?
nao sei explicar melhor.
By aquelabruxa, at 9:35 PM
AquelaBruxa:
É que, na cidade, consegues esquecer-te de quem és a sério; aqui não há cheiros espessos, nem montes, nem verde alucinado, nem a Natureza toda e os antepassados a reinvindicarem-te o espaço que sempre lhes pertenceu na tua cabeça. De repente, dás por ti e estás a voltar às origens sem saberes muito bem porquê. Deve ser o tal do inconsciente colectivo.
Eu já sou segunda geração de lisboetas e dou por mim a sonhar com qualquer coisa longe disto tudo.
By Anonymous, at 2:01 PM
também eu me lembrei logo das minhas avôs tão reais como a personagem descrita no texto, a ver a novelinha e com a chaga da neta a pedir para mudar de canal, hihihi
By Eduarda Sousa, at 3:28 PM
magnifico
soberbo
fascinante
adorável
adorei :)
*parabens*
By Perséfone, at 7:28 PM
Concordo com a Stela: este texto faz-me lembrar a minha avó :). Toda a sua vida foi vivida contra-maré, decidida por outros. É pena porque se lhe tivessem dado ouvidos não teriam acabado como acabaram. Que terá sentido sentido ao percebr que tinha razão a respeito de tantas coisas? Maldito destino...
Gostei do texto também pela personagem da filha mais velha. Acho que a conheço bem demais, até... Só não é viúva.
By Anonymous, at 1:30 PM
Está interessante, mas pouco original. Soa algo gasto num discurso ultrapassado.
By Anonymous, at 9:48 PM
A mim, parece-me bem escrito, mas concordo que é uma narrativa sentimental e pouco profunda.
By Anonymous, at 9:49 PM
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