A boa filha; 500 palavras para um blog
Para a Marta. Desculpa qualquer coisinha...
Peguei no casaco e nas chaves de casa e saí porta fora sem pensar. Desci a rua com passadas largas, nem abrandando quando um gato se atravessou no meu caminho e me olhou com ar desconfiado. Não sabia para onde ia, mas isso não fazia diferença. Só sabia que tinha de ir. Senão… Senão, não poderia conter mais a minha vontade de gritar, de romper com tudo, com a razão, com o amor filial, mandava tudo à merda e pregava-lhe um murro na cara. Pregava, juro. É que é sempre, são horas incontáveis de berros, de choro, de chantagem emocional insuportável. Não sei o que ela quer de mim. Não sei que mais posso fazer. Só sei que já não consigo ouvir as exigências dela sem ter vontade de a matar.
Nem sempre foi assim. Em tempos, ela foi a minha melhor amiga. E eu confiava nela. Vivia para ver um sorriso na sua cara. Eu confiava… Será que ela não vê como me trai todos os dias com a sua desaprovação, como me apunhala com o seu descontentamento? A única coisa que eu queria era vê-la feliz, era a única coisa que me parecia essencial na vida, e ela tirou-me isso sem pensar duas vezes. Que pena eu não ser como a outra filha que teve, e em vez de me matar a estudar não me ter matado com drogas e outros vícios. Assim teria duas filhas mortas, mas talvez isso a fizesse mais feliz.
Agora corria pela avenida que ia dar à praia. Eram ainda uns 5 km, mas eu não me importava. Uma chuva grossa caía, parecendo-me apropriada ao meu estado de espírito. Obrigada, pensei eu, enquanto as lágrimas se misturavam com as gotas de chuva na minha face, tão parecida com a da minha irmã. Sempre me rebelei contra essa comparação, todos os dias da sua curta vida. Uma raiva voltou-me a subir pelo peito, espantando-me, porque pensei que até a raiva deveria ser finita.
Não percebo. As ondas do mar fitavam-me naquele silêncio ensurdecedor que o mar tem, uma a uma vindo testemunhar quem andava desconsoladamente pela praia. Sempre fui uma boa filha. Revi mentalmente os meus pecados e não encontrei nenhum que merecesse tal tortura. Ponderei o suicídio. Será que ela ia chorar por mim? Certamente iria maldizer a sua sina, ter duas filhas tão ingratas, que menosprezavam todos os sacrifícios que por elas tinha feito. Eu ia fazer-lhe falta, disso tinha a certeza. Quem mais ela poderia utilizar como bode expiatório de toda a sua infelicidade? Quem mais a amaria o suficiente para a aturar todos os dias? Não, ela ia chorar, sim, lágrimas amargas, não por mim, mas por ela.
A chuva parara. O sol já se punha, num céu finalmente livre de nuvens, enchendo o horizonte de cores suaves, laranja, cor-de-rosa. Ia ser uma noite estrelada. Inspirei fundo, decidida. O estômago roncou, anunciando a aproximação da hora de jantar. Virei costas ao mar e iniciei a minha longa caminhada para casa.
Peguei no casaco e nas chaves de casa e saí porta fora sem pensar. Desci a rua com passadas largas, nem abrandando quando um gato se atravessou no meu caminho e me olhou com ar desconfiado. Não sabia para onde ia, mas isso não fazia diferença. Só sabia que tinha de ir. Senão… Senão, não poderia conter mais a minha vontade de gritar, de romper com tudo, com a razão, com o amor filial, mandava tudo à merda e pregava-lhe um murro na cara. Pregava, juro. É que é sempre, são horas incontáveis de berros, de choro, de chantagem emocional insuportável. Não sei o que ela quer de mim. Não sei que mais posso fazer. Só sei que já não consigo ouvir as exigências dela sem ter vontade de a matar.
Nem sempre foi assim. Em tempos, ela foi a minha melhor amiga. E eu confiava nela. Vivia para ver um sorriso na sua cara. Eu confiava… Será que ela não vê como me trai todos os dias com a sua desaprovação, como me apunhala com o seu descontentamento? A única coisa que eu queria era vê-la feliz, era a única coisa que me parecia essencial na vida, e ela tirou-me isso sem pensar duas vezes. Que pena eu não ser como a outra filha que teve, e em vez de me matar a estudar não me ter matado com drogas e outros vícios. Assim teria duas filhas mortas, mas talvez isso a fizesse mais feliz.
Agora corria pela avenida que ia dar à praia. Eram ainda uns 5 km, mas eu não me importava. Uma chuva grossa caía, parecendo-me apropriada ao meu estado de espírito. Obrigada, pensei eu, enquanto as lágrimas se misturavam com as gotas de chuva na minha face, tão parecida com a da minha irmã. Sempre me rebelei contra essa comparação, todos os dias da sua curta vida. Uma raiva voltou-me a subir pelo peito, espantando-me, porque pensei que até a raiva deveria ser finita.
Não percebo. As ondas do mar fitavam-me naquele silêncio ensurdecedor que o mar tem, uma a uma vindo testemunhar quem andava desconsoladamente pela praia. Sempre fui uma boa filha. Revi mentalmente os meus pecados e não encontrei nenhum que merecesse tal tortura. Ponderei o suicídio. Será que ela ia chorar por mim? Certamente iria maldizer a sua sina, ter duas filhas tão ingratas, que menosprezavam todos os sacrifícios que por elas tinha feito. Eu ia fazer-lhe falta, disso tinha a certeza. Quem mais ela poderia utilizar como bode expiatório de toda a sua infelicidade? Quem mais a amaria o suficiente para a aturar todos os dias? Não, ela ia chorar, sim, lágrimas amargas, não por mim, mas por ela.
A chuva parara. O sol já se punha, num céu finalmente livre de nuvens, enchendo o horizonte de cores suaves, laranja, cor-de-rosa. Ia ser uma noite estrelada. Inspirei fundo, decidida. O estômago roncou, anunciando a aproximação da hora de jantar. Virei costas ao mar e iniciei a minha longa caminhada para casa.
5 Comments:
Veio de dentro, este texto.
Muito real e humano.
By Anonymous, at 8:30 PM
Terrivel...
Estás a deitar tudo cá para fora, cheia de força e raiva, de arte e sentimento, de coragem e delicadeza.
Newton estava enganado. Uma alma enorme pode caber em qualquer corpo!
By Der Überlebende, at 1:24 AM
Este texto será mesmo autobiográfico? ou apenas ficcção?
"É que é sempre, são horas incontáveis de berros, de choro, de chantagem emocional insuportável."
"Quem mais ela poderia utilizar como bode expiatório de toda a sua infelicidade? Quem mais a amaria o suficiente para a aturar todos os dias? Não, ela ia chorar, sim, lágrimas amargas, não por mim, mas por ela."
Conseguiste por tudo aquilo que eu gostaria de conseguir escrever, que saisse cá para fora, que me libertasse de toda esta raiva acumulada no fundo de mim...
By Eduarda Sousa, at 12:07 PM
Ah! Nao vale tentar perceber donde vem as historias! Senao iamos ter que perguntar ao Der Uberlende porque eh que morre sempre alguem nos contos dele (quase sempre, pronto...). Eh sempre ficcao misturada com realidade, que pode ser minha ou de outras pessoas. Inspirei-me em parte na pessoa a quem dediquei o texto, mas tb nao eh um retrato. E nao lho vou mostrar porque seria mto doloroso. Nao estas sozinha nos teus sentimentos, Booklover. Disso podes ter a certeza.
By smallworld, at 1:31 PM
Dez em quando aqui venho em busca de um texto teu. Gostei muito deste porque traduz aquilo que, por experiência, entendo ser a família: um núcleo para onde, por mais horrendas que sejam as palavras proferidas, voltamos sempre. Alguns poderão achar que o fazemos por sermos como os burros com as palas nos olhos - não conhecemos outro caminho. Ou talvez por gostarmos de apanhar "porrada" ou acharmos que a merecemos por sermos vis, egoístas ou simplesmente, tudo o que o núcleo não desejava. Sei lá... Talvez por que o sangue fale mais alto e sabermos que, em família, raramente se diz o que se pensa de facto por medo de nos ferirmos ainda mais. Jinhos
P.S.- O meu cantinho está de cara lavada. Dá lá um salto, espero que gostes :)
By Anonymous, at 5:54 PM
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