Antes do adeus, by Stela; mais de 500 palavras, mas é por poucochito...
Para o avô L. 25 de Abril sempre!
Começou a escrever as cartas depois de jantar. Tinha sido uma refeição silenciosa. A mãe mal tocara na comida, e Jorge pensou ver algumas lágrimas misturarem-se com a sopa, que ela mexia interminavelmente com a colher, sem nunca a levar à boca. O pai tentara puxar assunto. «Acho que o Benfica ainda pode ganhar o campeonato.» «Sim. Mas o Eusébio já não anda a jogar assim muito bem…» Calaram-se, porque o nome Eusébio lembrava ultramar, palavra proibida nessa noite.
“Querido Pai,” escrevia Jorge mais tarde, “desculpa. Não vou poder estar aqui para ir contigo à Luz ver o nosso Glorioso. Não sei quanto tempo vou estar fora. Perdoa-me por não te ter dito nada, mas como deves imaginar não podia.” Parou, pensando no que o pai ia dizer quando as primeiras perguntas fossem feitas, no Ministério. Sentiu o aguilhão da culpa ao pensar que o pai podia perder o cargo de Director-geral, ou até passar uma noite na prisão, ou… «Mas Jorge, tu queres ser um bom soldado?», a voz de Célia na sua cabeça. «Amor, não é assim. Se eu for chamado, é eu ou eles, entendes? Não tem nada a ver com ideologia!» Eu ou eles… Eu aqui contigo, ou eles…
“Meu amor… Amo-te com toda a minha alma. Partir foi a única solução que encontrei, para que não seja nem eu, nem eles. Mas tenho medo que nós sejamos sacrificados no meio disto tudo… Eu parto, amor, mas uma parte de mim fica contigo, enredada para sempre nos teus cabelos macios, presa ao brilho dos teus olhos, para ter a certeza que continuas a sorrir mesmo sem me teres ao teu lado. Vamos voltar a ver-nos, prometo-te. E teremos os filhos com que sonhámos, e a vida que merecemos ter.” A mão tremia-lhe. Sentia-se cobarde, a fugir, enquanto muitos dos seus amigos e conhecidos já tinham partido, ou iam partir brevemente, alguns no mesmo navio em que ele também era suposto embarcar, a caminho de Lourenço Marques. Sabia o que isso significaria. A morte, ou a mutilação, se não fosse do corpo, pelo menos da alma, em todo o caso o fim de algo. O fim de uma juventude da qual não estava pronto a abdicar.
“Querida mãe, perdoa-me por te abandonar. Toma conta do pai, ele vai precisar muito do teu apoio. Não te posso dizer para onde vou, mas fica certa de que estarei bem e de que tu estarás no meu pensamento, sempre. Quando puder mando notícias. Teu filho, Jorge.”
Tinha tudo planeado, até um certo ponto. Um amigo de confiança tinha combinado com um camionista simpatizante de esquerda levá-lo até França, escondido no meio da carga. Depois, era o desconhecido. Onde iria, como sobreviveria, não fazia ideia, mas contava com a ajuda de outros portugueses exilados que sabia ir encontrar. Partiria cedo, antes do sol nascer. Olhou para o quarto, cheio de recordações. A um canto, a bola de futebol, vazia de tantos pontapés que sofrera na sua meninice. A fotografia da festa de fim de curso, colada na parede, tirada nas escadas do Técnico. Célia radiante, com a sua adorada saia vermelha… Puxou devagarinho a fotografia, e guardou-a dentro do único livro que ia levar, “Guerra e Paz”. Com o peito oprimido de tanta ansiedade, ligou o rádio, e deitou-se de costas na cama, esperando que as vozes do aparelho se sobrepusessem à voz do desespero que acordava dentro de si. A canção de Paulo de Carvalho tocava. «E depois do adeus…»
Começou a escrever as cartas depois de jantar. Tinha sido uma refeição silenciosa. A mãe mal tocara na comida, e Jorge pensou ver algumas lágrimas misturarem-se com a sopa, que ela mexia interminavelmente com a colher, sem nunca a levar à boca. O pai tentara puxar assunto. «Acho que o Benfica ainda pode ganhar o campeonato.» «Sim. Mas o Eusébio já não anda a jogar assim muito bem…» Calaram-se, porque o nome Eusébio lembrava ultramar, palavra proibida nessa noite.
“Querido Pai,” escrevia Jorge mais tarde, “desculpa. Não vou poder estar aqui para ir contigo à Luz ver o nosso Glorioso. Não sei quanto tempo vou estar fora. Perdoa-me por não te ter dito nada, mas como deves imaginar não podia.” Parou, pensando no que o pai ia dizer quando as primeiras perguntas fossem feitas, no Ministério. Sentiu o aguilhão da culpa ao pensar que o pai podia perder o cargo de Director-geral, ou até passar uma noite na prisão, ou… «Mas Jorge, tu queres ser um bom soldado?», a voz de Célia na sua cabeça. «Amor, não é assim. Se eu for chamado, é eu ou eles, entendes? Não tem nada a ver com ideologia!» Eu ou eles… Eu aqui contigo, ou eles…
“Meu amor… Amo-te com toda a minha alma. Partir foi a única solução que encontrei, para que não seja nem eu, nem eles. Mas tenho medo que nós sejamos sacrificados no meio disto tudo… Eu parto, amor, mas uma parte de mim fica contigo, enredada para sempre nos teus cabelos macios, presa ao brilho dos teus olhos, para ter a certeza que continuas a sorrir mesmo sem me teres ao teu lado. Vamos voltar a ver-nos, prometo-te. E teremos os filhos com que sonhámos, e a vida que merecemos ter.” A mão tremia-lhe. Sentia-se cobarde, a fugir, enquanto muitos dos seus amigos e conhecidos já tinham partido, ou iam partir brevemente, alguns no mesmo navio em que ele também era suposto embarcar, a caminho de Lourenço Marques. Sabia o que isso significaria. A morte, ou a mutilação, se não fosse do corpo, pelo menos da alma, em todo o caso o fim de algo. O fim de uma juventude da qual não estava pronto a abdicar.
“Querida mãe, perdoa-me por te abandonar. Toma conta do pai, ele vai precisar muito do teu apoio. Não te posso dizer para onde vou, mas fica certa de que estarei bem e de que tu estarás no meu pensamento, sempre. Quando puder mando notícias. Teu filho, Jorge.”
Tinha tudo planeado, até um certo ponto. Um amigo de confiança tinha combinado com um camionista simpatizante de esquerda levá-lo até França, escondido no meio da carga. Depois, era o desconhecido. Onde iria, como sobreviveria, não fazia ideia, mas contava com a ajuda de outros portugueses exilados que sabia ir encontrar. Partiria cedo, antes do sol nascer. Olhou para o quarto, cheio de recordações. A um canto, a bola de futebol, vazia de tantos pontapés que sofrera na sua meninice. A fotografia da festa de fim de curso, colada na parede, tirada nas escadas do Técnico. Célia radiante, com a sua adorada saia vermelha… Puxou devagarinho a fotografia, e guardou-a dentro do único livro que ia levar, “Guerra e Paz”. Com o peito oprimido de tanta ansiedade, ligou o rádio, e deitou-se de costas na cama, esperando que as vozes do aparelho se sobrepusessem à voz do desespero que acordava dentro de si. A canção de Paulo de Carvalho tocava. «E depois do adeus…»
10 Comments:
Stela, li este texto com um nózinho na garganta de quem viveu bem perto dessa realidade que retratas. Era assim, sim. Muitos não foram salvos de embarcar ou de fugir pela canção-senha do 25 de Abril.
O teu texto está muito bem escrito e aquele a quem o dedicas ficaria orgulhoso se o lesse. Beijinho grande.
By Anonymous, at 11:48 PM
Não sei se já te disse que adoro o ritmo da tua escrita!? ;)
Por ti, para ti e vinda de ti,
Viva a Liberdade!!
Hoje Portugal está em todo o lado onde houver uma alma que ouse SER!
By Der Überlebende, at 2:27 AM
Eu, que vivi esses tempos com os olhos abertos... e que falhei por dias a última incorporação antes de Abril de 74; eu, que presumo saber alinhar duas palavras que passem o testemunho da minha vida... Eu, cara amiga, não sei se teria sido capaz de verter com a tua mestria e a tua emoção esse momento que acabas de ilustrar.
Fico-te grato pela evocação que, transcendente, abarca tantos de nós tão calados.
Beijos.
By Jorge Castro (OrCa), at 4:16 PM
Espectacular texto. A memória da guerra no ultramar é terrível. Ainda bem que muitos já não tiveram de ir.
By wind, at 4:59 PM
O Avô L. iria ficar muito orgulhoso, sim senhora. Parabéns pelo texto, mais uma vez escrito com grande maturidade. Prometes-me que nunca vais deixar de escrever, tá? Não deixes que a preguiça te ataque! Empurra, empurra, insiste, insiste... ;)
By Anonymous, at 5:34 PM
Ana, (ou Stela) a tua mãe já me dá volta à cabeça.
Acabei de ler o texto da tua irmã com a lágrima ao canto do olho (não o digas a minguém) e acabo agora por parecer uma carpideira das antigas ao ler o teu texto.
Fico feliz porque alguém soube passar o testemunho... obrigado a ti e especialmente à tua mãe.
Abraços.
By José Gomes, at 9:06 PM
...a outra mana "com dedos" prás letras e a ficcionar uma época que não viveu mas que sabe como "funcionava".
Um conto com final feliz de um Portugal...infeliz. Parabéns!
Beijo e intés!!
By bertus, at 10:17 PM
olá Ana (Stela)
Não deixa de ser curioso o facto de ter sido da RRenascença que saíu a primeira senha -- á epoca não se ouvi outra estação entre a meia noite e as duas da manhã. O programa era dirigido pelo Jose Manuel Nunes -- eu ouvi o »Depois do adeus» também ouvi o «Grandola» e deitei-me com os anjos. Fazia lá ideia da preparação do golpe, apesar de já ter "borregado" o 16 de Março! -- e quando o Verão aqueceu, a antena acabou por ser deitada abaixo!
Bjs
By JPD, at 10:55 PM
Hoje é um dia grande repleto de recordações.
Apenas um obrigado, para as três.
blogquisto
By Anonymous, at 11:46 PM
Que linda dedicatória!
Quando salto do colectivo p'ras minhas memórias familiares, é inevitavel lamentar a ida do meu avô antes de te podido ver recompensadas as sanções, que o filho, meu pai, dele contava.
E tenho tb um tio que não tendo voltado da Guiné, se senta à mesa connosco todos os Natais...
Bom. A ideia era deixar parabéns e kisses
By mjm, at 12:00 AM
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