Luz e Sombra

Saturday, April 23, 2005

Lavender by Silent Child

Ao tentar retirar a chave da mochila, quase a deixou cair. Sentia-se ansiosa. Abriu a porta, pousou a mochila, despiu o blazer e trocou os sapatos por uns chinelos confortáveis. Assim ficava melhor... Após uma ida rápida à casa de banho, bebeu um refrescante copo de água na cozinha e foi esticar-se um pouco no sofá da sala. Estava de volta ao seu refúgio, na solitude que não mais conseguia suportar mas a qual, na verdade, também não queria quebrar. Era como se não tivesse direito a estar de outra forma. Sempre se sentira estranha perante os outros e nos últimos tempos tornara-se ainda mais difícil encarar tanta mentira, maldade, mesquinhez, perversidade e estupidez à sua volta. Não se achava melhor que os outros mas não entendia como é que tanta gente só via para uma pseudo-imagem, para parecer qualquer coisa mesmo não havendo nada de interessante lá dentro. Já não sabia mais o que fazer. O trabalho tornara-se uma seca que tinha o condão de lhe permitir sobreviver. Sobreviver... era isso que ia fazendo. Mas era isso que queria perpetuar? Pergunta com resposta dúbia. Ao recostar-se mais no sofá macio, parecia diluir-se na sombra em que se tornara a sua existência. Olhou para a mesinha em frente. Lá estava uma revista semi-aberta e uma pilha de 5 livros, todos começados mas nenhum terminado. Desde muito nova que devorava livros e música, diga-se. Ao lembrar-se disso ligou o cd que ouvira de manhã: “I hurt myself today, to see if I still fell, I focus on the pain, the only thing that’s real...” Trent Reznor lancinava docemente a sua mente sensível expondo-lhe uma realidade que a atormentava de forma quase brutal e irascível. Ao lado dos livros viu a caixa de valiums e o copo de whisky de malte que detestava e não conseguira deglutir. Arregaçou uma manga e ao olhar as cicatrizes que se cruzavam salientes, apeteceu-lhe ter só mais uma, sangrar um bocadinho talvez a aliviasse um pouco. Aquela pressão insinuava acentuar-se e não lhe dar tréguas. Tentou pensar em algo agradável mas só lhe ocorreram coisas tristes, aborrecidas, coisas que não gostava ou que não devia de ter feito. Sentia-se irremediavelmente perdida, qual náufraga desesperada no turbilhão centrífugo da sua incomensurável desilusão. Face às pessoas, à família, aos supostos amigos, à vida. Não era assim que queria sentir-se mas era assim que não conseguia deixar de se sentir. Pegou na tesoura afiada que tinha por perto e a tentação foi demasiado grande e intensa... quis gritar mas nenhum som saiu, quis chorar mas os seus olhos estavam secos, quis voar alto mas em lugar de asas parecia ter pesadas âncoras que a fundeavam na espessa cortina negra que a aprisionava. Num ínfimo relance, percebeu que era isso que mais desejava, libertar-se, nem que tivesse que morrer... só que sabia que a morte não era o fim e achava que nada resolvia. Já não sabia o que fazer. Ardia de saudades da mãe. Se ela ao menos estivesse ali, saberia o que dizer-lhe. Quase sem se dar conta adormeceu. E logo lhe passaram mil e uma cenas pela cabeça. Rapidamente entrou num sono profundo, tal era o cansaço que trazia consigo. A certa altura ouviu claramente: “Voltaremos a reunir-nos. Mas, ainda não é o tempo certo. Estarei contigo mesmo quando não me vires. Eu sei que queres viver.” Acordou assustada de rompante! Afinal ainda tinha lágrimas... que corriam abundantes pela sua face suave e bonita. Os olhos brilhavam, o coração batia rapidamente e saltou ainda mais quando escutou a campainha. Levantou-se e quando abriu a porta viu apenas uma revista no chão, voltada para baixo. Pegou nela, voltou-a e uma frase chamou-lhe a atenção: “O Desafio da Vida”. Avidamente abriu a revista onde calhou e um título despertou-lhe vivido interesse: “A importância de decidir!” Reagiu com ímpeto. Nesse instante decidiu Viver!

by SilentChild

4 Comments:

  • “Tu, que tanto falas em escolher, escolhe! Mas atenção: quando no caminho se apresentam duas opções de vida, não podes escolher as duas ao mesmo tempo. Quando há uma escolha, tens mesmo que escolher!”

    http://www.biosofia.net/biosofia21/bio21_04_desafio_vida.asp

    By Blogger Der Überlebende, at 7:58 PM  

  • "A maioria das pessoas, sendo-lhes dada a escolher entre mudar e provar que não é necessário, escolherão a segunda opção"
    John Galbraith

    By Blogger Eduarda Sousa, at 8:19 PM  

  • silent child, gostei muito. é tudo tao verdade! a flagelaçao própria é tao real! e as mensagens dos mortos, e a magia que nos ronda em tempos de desespero. muito bonito o teu texto, um rebuscar de beleza e esperança no meio dos pantanos da vida.

    By Blogger aquelabruxa, at 11:07 AM  

  • Agradeço os comentários, especialmente a aquelabruxa pela sua sensibilidade e por nos recordar que a magia está em tudo, em todos, em qualquer lado. Afinal, magia é energia em movimento, não é?
    A tristeza ajuda-nos a encontrar a verdadeira alegria, não a devevemos tornear mas sim atravessar e abraçar. Lá, do outro lado, tudo parece + límpido, belo e terno. Ainda que sejamos tocados por brevíssimos segundos, é essa a incomparável magia da alegria ao alcance de quem não recua nem finge perante a dor. E é essa magia que nos permite avançar :)

    By Anonymous Anonymous, at 9:36 PM  

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