Luz e Sombra

Thursday, April 07, 2005

O Livro Negro (Parte 1); 500 palavras para um blog (desta vez fiz batota e são 500+500... ;)

O Livro Negro (Parte 1)
Não deixou saudades a ninguém da aldeia quando finalmente abdicou desta vida terrena. Mesquinha, megera ou abutre, eram as designações mais meigas e brandas que prontamente saltavam da ponta da língua dos peões e pastores que ao entardecer queimavam conversa na incandescente ponta das periscas que estrelavam o alpendre da taberna antes de se extinguirem debaixo de uma pisadela casual ou vigorosa excreção gutural. Entre as mulheres, que com ela partilhavam a bancada de granito no tanque público onde esfregavam os lençóis de alvo linho com as gretadas e nauseantes barras de sabão azul e branco, também não se escutavam resignados lamentos (“é a vida”, “estamos entregues a Deus”, “ai eu também ando tão mal, qualquer dia vou eu”). Só as carpideiras restavam para uivar às lápides que mais um corpo fora a enterrar, outra alma foi rogar estada na celeste mansão do altíssimo, ou expiar os pecados num espumoso banho de enxofre. “Que se dane o raio da velha!”, pensava eu. Que os vermes a limpem até ao osso e que a terra não a vomite, tal era a intragável criatura. Não tinha deixado descendência. Não restava um marido, amante ou confidente para sentir a falta to seu corpo infecundo, cadavérico e canejo. Não tinha primas direitas, embora nas aldeias todas sejam primas umas das outras. Tinha um gato que a suportava ocasionalmente e um casal de melros que fazia ninho no caramanchão formado pela meia dúzia de pés de vinha morangueira que inflectiam por entre os cepos que seguravam o escaqueirado telheiro de lusalite.
Não havia vivalma que a suportasse, sempre a vociferar contra os hábitos e libertinagens de rotina de homens mulheres e crianças que tinham o malfadado azar de se atravessar à frente dela. “Ireis sofrer e apodrecer no Inferno, que Deus vos castigue a todos como mereceis!”. Esgatanhava o ar com os seus guinchos penetrantes enquanto esgrimia o seu indispensável tenebroso livro negro. Era bruta, cruel e impiedosa com os animais, excepto com o gato que ocasionalmente a suportava e com o casal de melros que fazia o ninho no topo das vides. Passava dia e noite a sussurrar rezas e esconjuros, acompanhando o ritmo da sua infeliz solidão com o tremor infindável dos seus membros e da cabeça dependurada dum pescoço fino e nodoso. Estava sempre agarrada ao seu inseparável livro negro, que a todos espetava na cara dizendo que ali estava traçado o destino de todos eles, e do dela entre eles. Não tinha deixado nada a ninguém. Nem o casebre outrora farto tinha destino ou dono.
Não resisti, e ao cair do crepúsculo, quando o cerúleo da abobada celeste me encobria os passos entrei naquela casa. Pouco ou nada lá restava, excepto duas cadeiras de ferro e formica laranja podres e bambas, dois paus de azinho por arder na lareira, uma mesa encardida e desequilibrada e o livro negro em cima dela. Antes que alguém desse pela sua falta, peguei nele e levei-o comigo para casa.

(...continua)

7 de Abril de 2005,

Der Uberlende

2 Comments:

  • Buahhhhhhhhhh, quero continuar a ler a história, escreve mais, não aguento de curiosidade de saber o que acontece a seguir...

    By Blogger Eduarda Sousa, at 3:31 PM  

  • "era uma velha, muito velha que vivia numa ilha e tinha um gato com os olhos cor de ervilha..." , nesta história quem fica mal é o gato, mas e nest? o que revelrá o livro? será que revela alguma coisa?terá o narrador a coragem ou ousadia de abrir o negro livro da negra velha?
    humm...suspense...eu aguardo o desfecho!

    By Anonymous Anonymous, at 2:27 AM  

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