E pronto: Apenas para desenjoar das férias de blog... 500 modestas palavras, de D.I.
Lupa (requiem à natureza)
Na linha do horizonte, as estepes cerealíferas repousam na cortina nocturna de silêncio que desce sobre o Alentejo. Um ouriço-cacheiro, à beira da estrada, aventura-se a atravessá-la. A luz repentina de uns faróis de automóvel reflecte-se no seu olhar.
A Terra geme e estremece.
Neste mesmo instante, uma sirene de ambulância irrompe pelo centro nevrálgico do meu peito. Atravessa avenidas congestionadas pelo tráfego. Rasga pelo meio duas filas compactas de automóveis, abafa ruídos de buzinas irascíveis carregadas de doses sub-letais de adrenalina. As agulhas de chuva ácida são trazidas pelo vento e colidem violentamente com os edifícios e as viaturas, corroem as chapas, queimam estátuas, alcatrão e cimento. A sirene invade a sonolência de um autocarro onde se amontoam os olhares vincados de cansaço. Uma boca acorre sôfrega à fissura de uma janela, aspirando não mais que os monóxidos polvilhados por milhares de escapes em pára-arranca.
Como uma flecha em fogo, a ambulância passa e um estranho velho fita o rasto de luz com um olhar enigmático, poético, triste. Mas como biólogo, diziam, eu vivia alheio a este mundo.
Neste momento, uma dor aguda nas cervicais avisa-me que estou desde manhã agarrado à lupa binocular Zeiss. O relógio do telemóvel mostra 20:23h e um assombro no estômago relembra-me o jejum desde o almoço, onde vagamente degluti um salgado e um néctar.
Sinto, porém, que ainda tenho energia para triar esta última amostra. No campo focal, vou manuseando com a pinça vários grupos de artrópodes, na sua maioria uma diversidade impressionante de insectos.
Quem sente, como eu sentia, pavor de insectos, não pode nunca fazer a ínfima ideia do que eles realmente são. Podem acreditar, a entomofobia não é mais que uma cortina a vedar-nos a visão mais sublime da natureza. Olhar os insectos com outros olhos, é isso que eu faço. Dedico-me ao seu estudo, observo-os minuciosamente, identifico e separo inúmeras famílias, de carochas, besouros e escaravelhos, moscas, moscardos e mosquitos, abelhas, vespas, formigas e abelhões, gafanhotos, percevejos, cigarras e pulgões, enfim, uma imensidão de famílias de uma imensidão de ordens.
Os insectos são paixão. Eram…
Não apenas pela sua estética, mas também pela perfeita adaptação à vida que lhes compete viver, como autênticos pilares da natureza. Não pensem que é uma metáfora ou uma hipérbole. Eles desempenham, de facto, um papel imprescindível no mesmo planeta onde nós, Homens, caminhamos arrogantes e desprevenidos, sem olhar para o solo que nos sustenta.
Termino a amostra. Desligo a luz do iluminador e cubro com um pano a lupa. Antes de sair, o meu olhar demora-se na bancada que ocupei durante tantos anos. Hoje, a lupa faz-me lembrar os móveis cobertos com lençóis brancos numa casa vazia. Fecho a porta, abandonando a sala escura atrás de mim.
Normalmente, amanhã voltaria. Mas penso que a intrépida ambulância não chegará a tempo. Porquê salvar quem descobriu nada haver em que acreditar?
A Terra geme e estremece.
Amanhece um ouriço morto na estrada.
Era uma fêmea, grávida. Com a extinção no olhar.
Na linha do horizonte, as estepes cerealíferas repousam na cortina nocturna de silêncio que desce sobre o Alentejo. Um ouriço-cacheiro, à beira da estrada, aventura-se a atravessá-la. A luz repentina de uns faróis de automóvel reflecte-se no seu olhar.
A Terra geme e estremece.
Neste mesmo instante, uma sirene de ambulância irrompe pelo centro nevrálgico do meu peito. Atravessa avenidas congestionadas pelo tráfego. Rasga pelo meio duas filas compactas de automóveis, abafa ruídos de buzinas irascíveis carregadas de doses sub-letais de adrenalina. As agulhas de chuva ácida são trazidas pelo vento e colidem violentamente com os edifícios e as viaturas, corroem as chapas, queimam estátuas, alcatrão e cimento. A sirene invade a sonolência de um autocarro onde se amontoam os olhares vincados de cansaço. Uma boca acorre sôfrega à fissura de uma janela, aspirando não mais que os monóxidos polvilhados por milhares de escapes em pára-arranca.
Como uma flecha em fogo, a ambulância passa e um estranho velho fita o rasto de luz com um olhar enigmático, poético, triste. Mas como biólogo, diziam, eu vivia alheio a este mundo.
Neste momento, uma dor aguda nas cervicais avisa-me que estou desde manhã agarrado à lupa binocular Zeiss. O relógio do telemóvel mostra 20:23h e um assombro no estômago relembra-me o jejum desde o almoço, onde vagamente degluti um salgado e um néctar.
Sinto, porém, que ainda tenho energia para triar esta última amostra. No campo focal, vou manuseando com a pinça vários grupos de artrópodes, na sua maioria uma diversidade impressionante de insectos.
Quem sente, como eu sentia, pavor de insectos, não pode nunca fazer a ínfima ideia do que eles realmente são. Podem acreditar, a entomofobia não é mais que uma cortina a vedar-nos a visão mais sublime da natureza. Olhar os insectos com outros olhos, é isso que eu faço. Dedico-me ao seu estudo, observo-os minuciosamente, identifico e separo inúmeras famílias, de carochas, besouros e escaravelhos, moscas, moscardos e mosquitos, abelhas, vespas, formigas e abelhões, gafanhotos, percevejos, cigarras e pulgões, enfim, uma imensidão de famílias de uma imensidão de ordens.
Os insectos são paixão. Eram…
Não apenas pela sua estética, mas também pela perfeita adaptação à vida que lhes compete viver, como autênticos pilares da natureza. Não pensem que é uma metáfora ou uma hipérbole. Eles desempenham, de facto, um papel imprescindível no mesmo planeta onde nós, Homens, caminhamos arrogantes e desprevenidos, sem olhar para o solo que nos sustenta.
Termino a amostra. Desligo a luz do iluminador e cubro com um pano a lupa. Antes de sair, o meu olhar demora-se na bancada que ocupei durante tantos anos. Hoje, a lupa faz-me lembrar os móveis cobertos com lençóis brancos numa casa vazia. Fecho a porta, abandonando a sala escura atrás de mim.
Normalmente, amanhã voltaria. Mas penso que a intrépida ambulância não chegará a tempo. Porquê salvar quem descobriu nada haver em que acreditar?
A Terra geme e estremece.
Amanhece um ouriço morto na estrada.
Era uma fêmea, grávida. Com a extinção no olhar.
4 Comments:
Argh... Hoje digo eu... como se o dia de hoje nao fosse ja deprimente o suficiente por estar de chuva (again... sera que amanhece mesmo um novo dia ou eh sempre o mesmo?). Um texto muito poetico, belo, triste. Diria que nao importa se o mundo caminha para o abismo. Isso eh algo que nao podemos controlar. Se caminhar, caminhou. O que podemos controlar eh aquilo que fazemos com o nosso tempo aqui, e outra vez acho que nao importa se o passamos de forma "produtiva" ou nao. O que interessa eh gozar a vida, apreciar as coisas belas (mesmo onde todos veem fealdade, como no caso dos insectos). Ninguem sabe ao certo porque estamos aqui, so anyway, you might as well enjoy it... Gosto muito da forma como escreves, ler os teus textos (e de outros escritores brilhantes como tu) eh um dos meus pequenos prazeres na vida.
By smallworld, at 12:41 PM
Não acredito em ti.
O ouriço não se extinguiu, mas algo esmoreceu no coração do ouriço. O oposto da morte não é vida, mas sim (re)nascimento!!!
cá te espero de volta, meu amigo e companheiro de horas intermináveis de observação de insectos, e de lutas pela sobrevivência na autoestrada sem fim, que nos leva até onde a alma ousar explorar...
Perfer et obdura; dolor hic tibi proderit olim
um abraço,
Der Uberlende
By Der Überlebende, at 11:58 PM
Para quem ia de férias, voltaste depressa :) depois de começarmos a escrever já não conseguimos parar de o fazer. Acontece-me isso, posso achar que não tenho nada a dizer, que não tenho talento algum... mas não consigo parar, algo me chama, algo me empurra para a escrita seja em blocos, diários, guardanapos... não consigo parar... :)
Gostei verdadeiramente do teu texto, fizeste-me lembrar tardes passadas na avó devolta de um mini-microscópio de plástico a observar tudo o que vinha à mão, moscas, formigas... só nãoi acho muita piada à observação de escaravelhos, baratas...:( até me arrepio :)
Quanto ao ouriço cacheiro ele regressará, renascerá :) porque nós já não passámos sem ele!
beijinho
By Eduarda Sousa, at 12:03 PM
Ironicamente, um ouriço-caixeiro. Não dás ponto sem nó.
Óptimo texto. Parabéns.
By Anonymous, at 2:39 PM
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