Mortalidade, por Isabel Maia
É com muita alegria que recebo mais um texto para o blog vindo directamente de Isabel Maia. O nosso obrigado!
Por vezes, ecoam em mim uma série de questões. Questões já colocadas por muitos outros antes de mim e, certamente, a colocar por muitos depois de mim. São as questões que nos arrebatam, que nos acordam de um sono ténue e frágil. Quem sou eu? O que sou eu? Parecem perguntas absurdas. Em última análise é comum pensar-se que, pelo menos, se não se sabe quem somos, sabe-se o que somos. Mas não acredito. A proximidade perigosa com que lidamos a propósito do nosso Eu, dificultaria toda e qualquer tarefa de busca séria…
Às vezes, as noites alargam-se, aqui, no escritório e as perguntas enroscam-se-me nos pés. Que forma de ser, esta, a minha!!..Aborrece-me ser eu própria…às vezes. Aborreço-me de ser eu. Tantas perguntas e depois o desafio/vazio de não lhes encontrar resposta.
Enquanto tudo dorme, toca muito baixinho Kitaro e o pau de incenso com aroma de chá verde, já acabou. A atmosfera é, simultaneamente, densa e suave. Não sei porquê, mas hoje sinto-me terrivelmente mortal. Sinto que o mundo era o mesmo antes de mim e será o mesmo depois de mim. Passo por aqui como uma brisa e, como uma brisa abano, levemente, quem por mim se deixa abanar. Uma brisa que abana, por instantes umas folhinhas que, rapidamente, voltam ao seu lugar. E senão tivesse passado? Terá esse breve, fugaz mover de folhas modificado alguma coisa no mundo. Não, penso. Nada se modificou. Ficou apenas em mim esse aparente banal “chocalhar” de folhas, como um rasto da minha passagem.
É assim. Sinto-me mortal, terrivelmente mortal. Definitivamente mortal.
Ainda há pouco estava lá em baixo, sentada na carpete da cave, com o meu cão. Que delícia! Quanta espontaneidade e inconsequência pode ter um cão?? É o brilho da vida, do momento, do êxtase. Enquanto eu brinco com ele, não faz perguntas tolas…não as faria, nunca. Sabe entregar-se ao sabor do momento. Sabe ser a dádiva. Que liberdade, a sua! Que inveja, a minha! Ele não hesita, não se desvia, não recua, não antecipa. Ele é. Simplesmente, é. Sem saber quem é, o que é, ele pode ser. Em toda a sua autenticidade. Não se sente mortal. Não se confronta. Não se sente cercado numa atmosfera de incenso acabado de queimar. Para ele é só um lugar quente, familiar, confortável e seguro onde pode estar. Ele é sem o saber. Eu não sei se sei quem sou. Sinto-me assim, hoje: terrivelmente mortal.
Gaia, Abril/2005
Isabel Maia
3 Comments:
Cara Isabel,
Bem vinda a este blog!
Não foi com o aroma a incenso no ar mas sim com o do café acabado de fazer que li este texto. Não tenho um cão, mas sim um gato, tambem ele um mestre da descontração e sentiencia, pois sente e pressente cada estado de espirito, cada truque da alma que usualmente me servem tão bem para dissimular o que vai cá dentro.~
Respice post te, mortalem te esse memento
Olhai à vossa volta, e recordem-se de que são mortais! (Tertuliano)
Não julgues (erradamente) o impacto e beleza do teu texto pelo número de comentários! Por vezes as palavras são tão fortes e sábias que podem intimidar o leitor a participar activamente na degustação da mesma
agradecidamente,
Der Uberlende
By Der Überlebende, at 12:54 AM
Olá Isabel,
Tu podes ser mortal, mas o teu texto e os teus pensamentos, como tu própria disseste, sao imortais. Já foram pensados por muitos e por muitos ainda serao. Estes pensamentos vagueiam há muito tempo pelo espaço, desde que foram pensados pela primeira vez, e serao captados por outros seres pensantes, sabe-se lá quando, sabe-se lá como. Talvez também tu tenhas encontrado estes pensamentos perdidos no tempo e no espaço, os quais haviam sido originalmente pensados por outro ser mortal como tu, e agora os passes à eternidade... talvez nao sejas assim tao mortal!
Beijinho!
By aquelabruxa, at 10:10 AM
«Quem sou eu?» não sei, tenho medo de te dizer e talvez por isso me esconda sobre máscaras...
Também eu muitas vezes me aborreço de ser eu, que não sei quem sou verdadeiramente, mas apenas sei que desejo ser diferente...
Também eu me vejo muitas vezes com uma caneca de chá preto, a ouvir qualquer música suave e com o Piloto deitado ao meu lado... Também eu desejava que algo de mim continuasse aqui pelo mundo, que soubessem que eu existi, que consegui fazer alguma coisa de imortal mas depois reparo na minha insignificância e impotência, um grão de poeira neste imenso universo...
E o Piloto ao meu lado tão calmo e tranquilo enquanto eu corroio interiormente!
beijinho
By Eduarda Sousa, at 4:09 PM
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