DP2: Pressão... (Parte II), por Der Uberlende
Pressão.... (Parte II)
Era Primavera. O Sol brilhava quente numa daquelas tardes divinais de Março. É assim que a velhota se lembra do dia em que aquele casal chegou ao prédio... Já passou tanto tempo...20 anos?!? Lembrava-se como se fosse ontem. “Chegou o casal de engenheiros”, dizia ela. Eram os meninos dos olhos dela, “gente bonita” num prédio enfadonho, fruto da explosão de ganância e mau gosto que espalhou betão pela cidade. A velhota que sempre morou ali (talvez desde o início dos tempos...), descrevia o casal com acuidade:
“Ela era muito vistosa, uma mulher mexida e desinibida. Por onde passava levantava poeira, parecia que tinha o Diabo no corpo, mas era muito boa rapariga, benza-a Deus... Já ele... parecia que nunca estava cá! Era ‘bom dia - boa noite’ e pouco mais, sempre carrancudo e sisudo, parecia que toda a gente lhe devia e ninguém lhe pagava. Aquilo foi uma questão de tempo, sabe... feitios muito diferentes. Ela, uma moça de genica, ele um homem demasiado recatado, e... aqui entre nós... não devia dar ‘conta do recado’. Não tardou 3 anos que ela o deixou, trocou-o por outro mais à laia dela. Olhe, fez bem a pobre rapariga, por muito que ele fosse bem parecido, não lhe dava a atenção que uma moça daquelas precisa...”
Elsa, é o nome da bebé da vizinha do lado. Uma menina linda, faz hoje 5 mesitos. A Elsa vive num mundo muito limitado, entre o berço, o parque e os braços da mãe. Tem problemas de saúde algo graves, parece que nasceu com uma deficiência cardíaca congénita, além de ser extremamente alérgica. Uma vez por outra, era ela um bebé de semanas, deparava-se com a Elisa sentada no parapeito da janela a olhar para ela. Era apenas uma questão de minutos ou segundos até a mãe vir a correr a gritar “raio da gata, a andar daqui p’ra fora, que ainda me faz mal à menina”. A mãe da Elsa detestava gatos, ainda mais os siameses. “Dizem que até se viram aos donos e lhes podem cegar d’uma vista”, dizia ela. Isso para uma siamesa de gema, caprichosa e elegante como a Elisa era apenas um desvario de gente pouco interessante.
Toda a gente assoma à janela assim que escuta o lamento das sirenes dos bombeiros e da polícia. Alguns esfregam as mãos de contentamento pelo espectáculo gratuito, outros elaboram fantásticas teorias sobre o acontecido mesmo antes de saber a quem aconteceu o quê. A velhota grita para que sejam mais lestos, pois “certamente foi uma desgraça, ai minha nossa senhora, ai que foi aqui uma grande desgraça...!”
Arrombam a porta. Espreitam para dentro da sala de onde ventilava fumo. Deparam-se com uma televisão espatifada, um post-it amarelo sobre a mesa e um trilho de roupas que segue até à janela. Da TV pouco resta. No post-it lê-se “A Fine Day To Exit”. Na janela vê-se um casal de gatos a roçarem-se um no outro, uma siamesa e um gato preto meio escanzelado que parece sorrir.
26 de Maio de 2005
Der Uberlende
Era Primavera. O Sol brilhava quente numa daquelas tardes divinais de Março. É assim que a velhota se lembra do dia em que aquele casal chegou ao prédio... Já passou tanto tempo...20 anos?!? Lembrava-se como se fosse ontem. “Chegou o casal de engenheiros”, dizia ela. Eram os meninos dos olhos dela, “gente bonita” num prédio enfadonho, fruto da explosão de ganância e mau gosto que espalhou betão pela cidade. A velhota que sempre morou ali (talvez desde o início dos tempos...), descrevia o casal com acuidade:
“Ela era muito vistosa, uma mulher mexida e desinibida. Por onde passava levantava poeira, parecia que tinha o Diabo no corpo, mas era muito boa rapariga, benza-a Deus... Já ele... parecia que nunca estava cá! Era ‘bom dia - boa noite’ e pouco mais, sempre carrancudo e sisudo, parecia que toda a gente lhe devia e ninguém lhe pagava. Aquilo foi uma questão de tempo, sabe... feitios muito diferentes. Ela, uma moça de genica, ele um homem demasiado recatado, e... aqui entre nós... não devia dar ‘conta do recado’. Não tardou 3 anos que ela o deixou, trocou-o por outro mais à laia dela. Olhe, fez bem a pobre rapariga, por muito que ele fosse bem parecido, não lhe dava a atenção que uma moça daquelas precisa...”
Elsa, é o nome da bebé da vizinha do lado. Uma menina linda, faz hoje 5 mesitos. A Elsa vive num mundo muito limitado, entre o berço, o parque e os braços da mãe. Tem problemas de saúde algo graves, parece que nasceu com uma deficiência cardíaca congénita, além de ser extremamente alérgica. Uma vez por outra, era ela um bebé de semanas, deparava-se com a Elisa sentada no parapeito da janela a olhar para ela. Era apenas uma questão de minutos ou segundos até a mãe vir a correr a gritar “raio da gata, a andar daqui p’ra fora, que ainda me faz mal à menina”. A mãe da Elsa detestava gatos, ainda mais os siameses. “Dizem que até se viram aos donos e lhes podem cegar d’uma vista”, dizia ela. Isso para uma siamesa de gema, caprichosa e elegante como a Elisa era apenas um desvario de gente pouco interessante.
Toda a gente assoma à janela assim que escuta o lamento das sirenes dos bombeiros e da polícia. Alguns esfregam as mãos de contentamento pelo espectáculo gratuito, outros elaboram fantásticas teorias sobre o acontecido mesmo antes de saber a quem aconteceu o quê. A velhota grita para que sejam mais lestos, pois “certamente foi uma desgraça, ai minha nossa senhora, ai que foi aqui uma grande desgraça...!”
Arrombam a porta. Espreitam para dentro da sala de onde ventilava fumo. Deparam-se com uma televisão espatifada, um post-it amarelo sobre a mesa e um trilho de roupas que segue até à janela. Da TV pouco resta. No post-it lê-se “A Fine Day To Exit”. Na janela vê-se um casal de gatos a roçarem-se um no outro, uma siamesa e um gato preto meio escanzelado que parece sorrir.
26 de Maio de 2005
Der Uberlende
10 Comments:
Fantástico! Simplesmente fantástico! Adorei! Não havia melhor maneira de terminar o DP2! Beijinho***
By rita, at 12:11 AM
Os nossos gatos andam a sorrir muito:) Gostei do fim, mas confesso que esperava outra coisa. Outra, porque esta parece claramente impossível na vida real, e uma conclusão feliz mas impossível para mim não é conclusão feliz (fala matemática materialista que há em mim).
Gosto da melodia das tuas frases, encaixam bem, lêm-se facilmente, fluem e consegue-se "ver" o que escreves. Tens aquele estilo "fácil" de escrever onde uma frase sai de outra, fluida e simples.
By Dasha, at 12:23 AM
Gostei muito!
O "gato preto e escanzelado" dá um "twist" benigno à história, transforma um suicídio num final feliz. E... "A fine Day to Exit"?... onde é que eu já ouvi isto?... ;-)
By Anonymous, at 12:27 AM
Poisbem,
Desta vez escolhi um fim metafórico, ou simbólico.
Não gosto muito de dissecar os meus próprios textos, mas só 2 reparos:
"na janela vê-se um casal de gatos". Vê-se (ve o narrador) mas não está implicito que alguma das personagens do texto os veja
"A Fine Day to Exit". É um tributo/homenagem a uma das melhores bandas de toda a historia da humanidade, os Anathema. A colagem é demasiado óbvia para quem conhece (o tema de abertura do album chama-se ..."pressure"), mas não resisti a fazê-la.
Agora digo-vos já, a minha versão não é a minha favorita... :)
votos de bons votos,
D.U.
By Der Überlebende, at 2:33 AM
Retiro o que disse sobre o fim impossível, é bem possível porque morreu tudo e transformou-se em gato!:) Segundo uma religião oriental uma pessoa quando morre transforma-se num animal dependendo de seus feitos durante a vida: boa pessoa-bom animal, má pessoa-animal mau, tipo ratazana. Não me lembro qual é religião, por isso não tenho a certeza se os gatos são sagrados nesta mesma religião, mas visto que o oriente admira os gatos, transformar-se num gato depois da morte deve ser um acontecimento muito positivo, embora entra em conflicto com os postulatos do cristianismo:) O que me falta na tua história é a ausência de nascimento de uma nova vida. Quando morre algo, nasce sempre algo, é a lei da natureza, tem que estar tudo em equilibrio ( a minha história tb está desequilibrada, porque a mim nasce muito e não modde ninguem!). MAs falta-me a sensação de nascimento na tua versão.
By Dasha, at 2:50 AM
nao tava mesmo nadinha a espera deste desenrolar ;D fizeste bem em ter optado pelo tal simbolismo final, deixa a historia em aberto, a imagem que me ficou dos gatinhos a roçarem-se à janela é tao querida.. tnho de admitir que se me colou um sorriso à cara qundo li "A Fine Day To Exit" ;D acho que chorava se os visse um dia ao vivo.. quero dizer.. ja ha certas musicas que me poem em lagrimas so de ouvir em casa.. baah enfim.. parabens :)
beijo mui sorridente ;*
By Perséfone, at 12:07 PM
Esqueci-me de dizer que gostei da parte de ser a vizinha velhota a fazer o flashback ao passado do homem, ao início de tudo. Muito inteligente! Gostei muito do salero que deste à ex-mulher dele.
By Anonymous, at 11:15 PM
Dear Der, agora me dei conta de que ainda não tinha comentado o teu texto... Culpa do c++. Os gatos são vistos na mitologia egípcia como os guardiões entre o mundo dos vivos e dos mortos (ora, claro que todos os que viram a «Múmia» sabem disto...). Eu não tenho dúvidas que os meus gatos veêm coisas que eu não vejo. They spook me, às vezes. Achei, sim, um final suave, mas ao teu estilo muito pessoal... Diferente, e sujeito à interpretação de cada um. Racionalmente, claro que ele pode ter-se atirado da janela todo nú e os dois gatos apareceram ali por acaso!!! Claro. Mas isso não tem piada nenhuma, e já nos separámos do reino do possível há muito tempo, e estamos agora no reino do «e se?». A mi me gusta.
By smallworld, at 3:31 PM
Um final em aberto.... uh :) não me surpreendeste, já todos conhecemos o teu talento, criatividade, imaginação... sorri ao ler "A fine day to exit" e até me levaste a começar a ouvir algumas músicas deste albúm! :)
Por curiosidade já tinhas escrito o final antes de lançares o desafio? ou escreves-te mais tarde?
beijinho
By Eduarda Sousa, at 11:35 AM
escrevi o final no mesmo dia em que escrevi a parte I.
Nem podia ser de outra maneira :)
Agradeço a todas (foram só meninas... :)os vossos generosos e carinhosos comentários
Espero nunca vos desiludir, embora seja 'tramado' escrever de acordo com o vosso elevado padrão de exigência
os meus sinceros agradecimentos a todos os bloggers e anónimos que por aqui tem passado e deixado a sua 'marca'
bem hajam
D.U.
By Der Überlebende, at 12:46 PM
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