Luz e Sombra

Wednesday, May 25, 2005

DP2: Pressão... (Parte II), por Perséphone

Ora viva,

Eu sei que já vos disse, mas nunca é demais salientar, estou maravilhado com o vosso empenho... e criatividade!
A vossa resposta tem sido impagável, e os vossos textos deixam adivinhar dias melhores para as 'letras' portuguesas.
Cada um de nós é único e irrepetível. E isso é transparente nos vossos textos.

Segue a resposta ao DP2 por parte da Perséphone. Não resisto à inconfidência de exprimir toda a minha satisfação por receber uma resposta desta nossa amiga. É sempre motivador contemplar os valores seguros que crescem e se desdobram em palavras por este e outros blogs.

uma enorme e animada saudação para todos vós,

Der Uberlende

Pressão... (Parte II)

Sinto a dor que só aqueles que se precipitam na Morte sentem. Caio nas areias do esquecimento. Não sei quem sou, não me lembro do meu nome, não sei nem de onde venho. Não vejo nada. Não sei onde repouso. Onde é que eu estou? Onde é que vim parar?! … Não entres em pânico! … Parece que afinal sempre há “vida” deste lado… Nunca esperei que fosse assim… Contava que após o premir do gatilho a consciência se dissipasse. A dor encontrasse leito. E o corpo descanso. Os conceitos permanecem, as preocupações também. Ou pelo menos a consciência de que as tinha. O raciocino vive ainda. A memória da minha voz e da minha imagem estão ainda guardadas nas gavetas de madeira grosseiras e lascadas, que por tantos anos me dediquei a manter limpas e organizadas, livres de sentimentos forjados. Os rancores e os ódios, ainda que por vezes exagerados, foram sempre difíceis de limpar. Foi, muitas vezes nos olhos mel de Elisa que descansei os meus, lassos de fadiga e alquebrados de cansaço.
Fazes-me falta Lisinha. Quero lá saber das pontadas lancinantes que me atingem a fronte. Sempre fui capaz de me soerguer sobre dores de ímpeto físico. Agora as emocionais… as que me atingem pungentes no peito… dessas sempre tive dificuldade em recuperar… Mas porque raios ainda me sinto?! É isto a tão afamada Morte? Na minha visão ateísta do Mundo, sempre acreditei que quando se morre, se morre. Será que sempre existe um castigo para os que partem antes do tempo? Nunca acreditei nessas tretas de Purgatório, Paraíso ou Inferno, quem diz ter medo de lá ir parar é porque nunca olhou com olhos de ver a realidade em que vive. No Inferno já nós vivemos. Pelo menos eu.Bem… de qualquer das formas não me posso considerar um desses casos em que por fatalidade do destino temos a infelicidade de sermos reduzidos a nacos de carne duros e putrefactos. Não parti antes do tempo. Parti na hora exacta. Se esta foi a minha vontade, então não deveria ter sido de nenhuma outra forma. Sempre exaltei a independência do Homem, se não pude viver segundo a minha vontade, pelo menos morro pelas minhas próprias mãos. Quando premi o gatilho não estava sob o efeito de narcóticos, não foi uma decisão impensada, muito pelo contrário, o dedo nem tão pouco tremeu. Para mim a imortalidade do Ser revela-se no acto solene de entrega à terra, de entrega ao Mundo. Já tinham sido muitas as vezes que tinha discutido o assunto com a Elisa, ela ouvia-me e confortava-me sempre sem nunca me lançar olhares de recriminação ou miados de gozo, agora que penso nisso e que a imagem dela me transporta novamente para tempos distantes, chego à conclusão de que era precisamente isso que me fazia continuar. O seu carinho sempre me impediu de a abandonar. E agora… Agora que ela, que sempre me segurou por tantos anos se foi… fui votado a permanente desalento. Depois que o puto fanhoso do “tunning”, a arrastou pelo asfalto sem vacilar ao volante, e sem sequer me dirigir um pedido de desculpas ainda que não sentido, que me sinto incrivelmente só. Sinto-me pois… Vazio… Os meus desvarios já não soam a revolta, soam a desânimo e abandono. Preciso descansar… Realmente estes processos de transição são sempre complicados, quer sejam em vida, quer sejam na morte. Morrer é doloroso. Quem pensa o contrário que se desengane.
Será que a minha pequena Elisa passou pelo mesmo? … Será que sentiu as mesmas mazelas que sinto? Como as saudades pesam. Imagino-lhe o corpo sempre quente, e o pêlo cheiroso macio e deixo-me adormecer. Se me entregar ao silêncio, as dores adormecem.





Acordo tomado pela dormência e pelos suores gelados que me descem a espinha e me banham já a roupa. Não sei quanto tempo passou, mas não me parece ter sido muito, sinto-me exausto e saturado tal e qual como quando me entreguei. Isto só pode ser um pesadelo. Será que uma pessoa já não pode morrer em paz?
As dores não demoram a regressar, e ainda que esmorecidas incomodam e levam-me a contorcer de mau estar. Se a memória não me atraiçoa, ouço o que me parece ser uma maçaneta a rodar. Abro os olhos com pesar. À minha frente uma mesinha branca de plástico que tendo em conta o uso que aparenta se encontra incrivelmente limpa, suporta o que me parece ser a merenda do meio-dia. Perfilados sobre a bandeja estavão a canja, o peixe e as batatas cozidos seguidos da bela da maçã assada. Já não percebo nada. Para quem morreu este é um cenário em tudo bizarro. Será que ainda estou a alucinar? Será mais uma etapa do desfalecimento do Homem? Não entendo. Apercebo-me de repente da senhora fardada de branco que se encontra perto da entrada fitando-me de sorriso nos lábios. Não a conheço. Só após ela se sentar com todos os devidos cuidados aos pés da cama e de me dar os parabéns por ser tão grande lutador e ter finalmente acordado do coma é que começo a perceber
as circunstâncias em que me encontro. Ela conta-me como fui encontrado no chão da minha sala, por trás do sofá, voltado para a janela da varanda. Conta-me da fé dos que me socorreram tinham em que me iria salvar e demonstra-se entusiasta das tecnologias que me ampararam da Morte. Sem esperar resposta, saiu do quarto com o mesmo sorriso estúpido nos lábios com que entrou e desejou-me bom apetite. Bom apetite uma ova minha vaca de merda!! O meu sangue fervilha de raiva!! Juro que sinto as bolhas de sangue em ebulição, a arrebentar e a queimar-me as veias! Tudo o que quero é sair daqui pelo meu próprio pé, ver-me livre da piedade e preocupação compradas desta gente! Hei-de sair daqui pelo meu próprio pé e pela minha própria mão hei-de pôr fim à minha vida! Sim, à MINHA vida. Custa-vos assim tanto aceitar que quero realmente morrer?
Eu sei que consigo ser dissimulado… Aprendi com o passar dos anos o ofício da hipocrisia e do cinismo. Sou capaz de manipular. E por isso, manipulo. Só a minha Elisa me sabia desmentir. Se os Homens tivessem a astúcia da minha querida Elisa, nunca conseguiria levar a cabo o meu plano. Como tudo como deve ser, não deixo migalha no prato. Asseguro-me de que toda a gente acredita que desejo restabelecer-me na vida. Não dou mostras de depressão, de desânimo ou do que quer que seja. Mantenho-me à superfície tal como me mantive todos estes anos. Não choro nem rio. Aparento equilibrado e a minha saúde apresenta-se estável.
Deixam-me regressar a casa passada uma semana. Jurei a mim mesmo no dia em que acordei que regressaria a casa pelo meu próprio pé. Assim é. Sem malas nem bagagem, apercebo-me pelo caminho que o aperto que me sufocava o peito sempre que trilhava o caminho da rotina não me asfixia mais. Sinto-me decidido como nunca antes me havia sentido. Não tenho dúvidas quanto ao que estou prestes a fazer. Sinto-me imparável. Capaz de tudo para atingir o meu fim. Não é em casa que vou encontrar os meios para a minha partida. Mudo a minha rota, e sigo direcção ao outro lado da cidade, cruzo praças e deixo as pegadas da que será a minha última caminhada na Terra manchando o caminho dos que se
cruzam por acaso no meu destino.
Entro sem medo na casa que fora dos meus pais, aqueles que sempre fizeram questão de me cuspir para a cara o desgosto e a desonra que trazia à família, sem nunca me explicarem o porquê. Lamento mais a morte do periquito da vizinha que a deles, casal de velhacos sovinas e brejeiros. Escancaro a velha porta de madeira já enfraquecida pelo tempo de um simples pontapé. O cheiro a mofo entranha-se-me nas narinas. Depois de dar umas voltas pela divisão encontro finalmente o que quero dentro de uma caixa fechada a cadeado num armário que as felizes das traças já trataram de arruinar. Deixo a casa mais pobre à medida que me afasto das imediações.
Já está tarde. A Lua já se adivinha no céu. Não faz mal. Até calha bem. Sempre fui mais de noites que de dias. Regresso a casa. Posiciono-me no exacto lugar em que me encontraram da primeira vez, voltado para a grande janela da varanda, lado a lado com a tigela e com a almofada preferida da Elisa.
Esta é a minha última oportunidade, recuso-me a desperdiçá-la. Limpo com calma a pistola, afinal não quero ser relembrado como alguém com fraco sentido de higiene. Levo o cano à boca e com calma posiciono-o bem na direcção do céu-da-boca.


BANG!




25 de Maio de 2005,

Perséphone

9 Comments:

  • This comment has been removed by a blog administrator.

    By Blogger Der Überlebende, at 12:15 PM  

  • Tá corrigido o erro, vou ler aogra o texto!

    By Blogger Eduarda Sousa, at 12:53 PM  

  • ora bem.. parece que nem lendo o texto duas vezes consegui emendar os erros todos... tem ali um que me torna digna de um valente slap sem dó nem piedade... "Perfilados sobre a bandeja estÃO a canja, o peixe e as batatas cozidos seguidos da bela da maçã assada."
    ai.. vi outra coisa.. :S
    "Conta-me da fé de que os que me socorreram tinham em que me iria salvar..." e agora.. com licensa... *escapa-se de fininho*

    brigada :)*

    By Blogger Perséfone, at 2:36 PM  

  • Um texto que me deixou sem fôlego tamanha a nudez da fragilidade humana aqui exposta cruamente. É demasiado violento e belo. Arrebatador! Parabéns, digno de uma verdadeira escritora :)

    beijito!

    By Blogger Eduarda Sousa, at 2:46 PM  

  • Por muito que te custa acreditar, as tuas palavras são preciosas. Escreves bem, sim. E este texto é uma mostra disso. Está fabuloso. Achei o personagem em certos aspectos parecido contigo, mas o escritor deixa sempre um pouco de si nos seus escritos, não é verdade? Não sei que mais hei-de dizer. Está bastante explícito o carácter da personagem e a situação. Tal como a booklover, adorei a nudez.
    Beijo*

    By Blogger SweetSerenity, at 2:58 PM  

  • Que saudades tinha de "ler", minha cara P.!
    Em relação às gralhas, quem escreve como tu pode dar errus hortugráphicos ou gramadicaes há vomtade que não faz qualquer diferença! ;)

    um beijo de alegria por te voltar a ler,

    D.U.

    By Blogger Der Überlebende, at 4:52 PM  

  • Já dizia o Seinfeld: aqueles que se tentam suicidar e não conseguem, apenas descobriram outra coisa na vida para a qual não prestam... Eu sei, é muito mauzinho... Ihihih. Piadas à parte, gosto muito da tua versão, também. Tem pormenores muito interessantes, como o da higiene, no final. :) Ai, tanta escolha!!! Não me apetece votar, com tantos textos de qualidade, pá! beijinhos

    By Blogger smallworld, at 11:17 PM  

  • Tomarei a liberdade de compara-la ao Dostoevsky no seu estilo de escrita e descrição de mente da personagem... É um elogio, embora acho a escrita dele muito pesada e não faz o meu gosto. Tal como a morte recorrente da personagem principal: morte física, psicologica e novamente física. É morte demais para uma pessoa.

    By Blogger Dasha, at 7:22 PM  

  • Gostei muito da crueza do teu texto. Do despojamento. Acho que está mesmo muito bom. Conseguiste continuar uma personagem que já era credível, dando-lhe ainda mais dimensão dramática e aspereza. Não é só um homenzinho solitário e bonzinho. É um gajo que odeia, um misantropo desiludido, não tem vergonha de dizer que desistiu de viver. A tua vida, o teu corpo, podem ser a tua única e mais valiosa propriedade privada. Como dizia o Rámon Sampedro, o galego que esteve 28 anos à espera de morrer, negar o direito à morte num país que defende a propriedade privada é, no mínimo, uma hipocrisia enorme.
    Muitos parabéns.

    PS- Está um bocadinho Dostoyevsky-zado, sim senhora! Na desilusão, no ressentimento, na auto-análise, no despojamento. Esta Dasha tem olho para a coisa...

    By Anonymous Anonymous, at 2:02 PM  

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