DP2: Pressão... (Parte II), por Inês em NY
Ora viva,
Mais um dia, mais duas respostas ao DP2
A primeira é da minha amiga Inês em NY.
É-me de facto extremamente gratificante verificar a vossa disponibilidade para participar!
Bem hajam!
Der uberlende
Pressão... (ParteII)
Tudo vermelho, tudo branco, finalmente, tudo negro...
A campainha da porta desperta-me do estado de profunda ausência. A porta, essa barreira que me separa do mundo insensível, indiferente, incomparavelmente injusto, é o meu escudo que me protege deles, mas não de mim. Desta vez, sei-o, não posso ignorar. Esperar que se cansem de tocar e que se vão embora. Lentamente levanto-me e abro a porta. A polícia, claro…
Querem saber o que aconteceu. A vizinhança por trás da autoridade, com as costas quentes, por assim dizer, espreita pela esquina do patamar. A curiosidade mórbida que as levou até lá, desta vez, não vai ser satisfeita. “Matei o mundo. Acabei com tudo.”, “Vamos ter que dar uma vista de olhos!”. Malditos procedimentos, protocolos, predeterminações, procurações. Depois de se certificarem que não havia corpos por identificar ou marcar a giz, apenas uma televisão destruída, tornaram-se um pouco menos ameaçadores. Ainda desconfiados, segue-se uma noite de perguntas inúteis e papeladas. No final, é hora de ir trabalhar – piloto automático on.
…
Click! A fechadura, de novo… Cá estou eu, no meu mundo seguro. Seguro?! Claro que não! Sem Elisa, sem televisão, o que faço eu agora?... Resta-me a bebida. Bebo directamente da garrafa, enquanto me sento no sofá. Admiro, agora, o estrago. O cheiro a pólvora ainda empesta já viciado ar deste minúsculo espaço que chamo de meu.
Finalmente, decido-me, pego no paralelepípedo com um enorme buraco no meio e carrego-o ao colo, pela escada do prédio. Parece que carrego o mundo nas minhas mãos, o mundo fétido e podre. Degrau a degrau, afundo-me nas profundezas deste Inferno. O primeiro patamar chega, 4° andar, oiço a bebé da vizinha e adivinho-a a espreitar pelo óculo. O som que rapidamente se afasta denuncia o medo e a súbita necessidade que proteger o seu rebento. Esse pequeno, minúsculo, grandioso ser que encerra na sua inocência toda a potencialidade para o mal.
Continuo a descer, sinto-me cada vez mais pesado, 2° andar, a velhota reza pela porta entreaberta, pedindo protecção. Protecção de quem?, pergunto-me, e para quem? Presumo que pede ao seu Deus que a proteja do mal que este velho louco lhe poderá infligir. Sem cinismo, desejaria que pedisse protecção para todos nós – de nós mesmos.
A cada passo, sinto a pele a rasgar-se nos estilhaços, a transpiração a levar tudo da minha alma. Já não transporto o mundo asqueroso ao meu colo. Eu sou esse mesmo mundo. Arrasto-me mais um pouco, tentando não perder o equilíbrio. Finalmente, chego à rua. O grande contentor de lixo, que se encontra à porta do prédio, está cheio. Além de cheio, está rodeado de sacos de plástico mal fechados, de onde saem todos os despojos da existência humana. Caio de joelhos e deposito o monstro ferido no local onde pertence. Sem forças, deixo-me ficar prostrado…
De repente, uma gota de água cai no meu pescoço. Em menos de 5 segundos, abate-se uma tempestade como nunca vi nestes 51 anos. Deixo-me molhar, deixo que a chuva leve tudo. Deixo que penetre nas minhas feridas que, em breve, começam a arder. Chego a um estado de dormência em que já não me sinto molhado. Não sinto o frio. Não sinto as feridas.
Dou por mim, novamente em casa, e abro todas as janelas. Demoro ainda algum tempo para o conseguir, uma vez que todas, excepto a da cozinha, se mantinham fechadas há vários anos. Agora posso sentar-me no sofá e assistir a este espectáculo da primeira fila. Enfim fecho os olhos completamente, as pálpebras juntam-se como por magia e adormeço profundamente.
Acordo com o sol na cara. Não sei quanto tempo passou. Apenas sei que a primeira coisa que vejo é um gato com cerca de 3 meses sentado no chão a olhar para mim. É o Tomé…
24 de Maio de 2005,
Inês em NY
Mais um dia, mais duas respostas ao DP2
A primeira é da minha amiga Inês em NY.
É-me de facto extremamente gratificante verificar a vossa disponibilidade para participar!
Bem hajam!
Der uberlende
Pressão... (ParteII)
Tudo vermelho, tudo branco, finalmente, tudo negro...
A campainha da porta desperta-me do estado de profunda ausência. A porta, essa barreira que me separa do mundo insensível, indiferente, incomparavelmente injusto, é o meu escudo que me protege deles, mas não de mim. Desta vez, sei-o, não posso ignorar. Esperar que se cansem de tocar e que se vão embora. Lentamente levanto-me e abro a porta. A polícia, claro…
Querem saber o que aconteceu. A vizinhança por trás da autoridade, com as costas quentes, por assim dizer, espreita pela esquina do patamar. A curiosidade mórbida que as levou até lá, desta vez, não vai ser satisfeita. “Matei o mundo. Acabei com tudo.”, “Vamos ter que dar uma vista de olhos!”. Malditos procedimentos, protocolos, predeterminações, procurações. Depois de se certificarem que não havia corpos por identificar ou marcar a giz, apenas uma televisão destruída, tornaram-se um pouco menos ameaçadores. Ainda desconfiados, segue-se uma noite de perguntas inúteis e papeladas. No final, é hora de ir trabalhar – piloto automático on.
…
Click! A fechadura, de novo… Cá estou eu, no meu mundo seguro. Seguro?! Claro que não! Sem Elisa, sem televisão, o que faço eu agora?... Resta-me a bebida. Bebo directamente da garrafa, enquanto me sento no sofá. Admiro, agora, o estrago. O cheiro a pólvora ainda empesta já viciado ar deste minúsculo espaço que chamo de meu.
Finalmente, decido-me, pego no paralelepípedo com um enorme buraco no meio e carrego-o ao colo, pela escada do prédio. Parece que carrego o mundo nas minhas mãos, o mundo fétido e podre. Degrau a degrau, afundo-me nas profundezas deste Inferno. O primeiro patamar chega, 4° andar, oiço a bebé da vizinha e adivinho-a a espreitar pelo óculo. O som que rapidamente se afasta denuncia o medo e a súbita necessidade que proteger o seu rebento. Esse pequeno, minúsculo, grandioso ser que encerra na sua inocência toda a potencialidade para o mal.
Continuo a descer, sinto-me cada vez mais pesado, 2° andar, a velhota reza pela porta entreaberta, pedindo protecção. Protecção de quem?, pergunto-me, e para quem? Presumo que pede ao seu Deus que a proteja do mal que este velho louco lhe poderá infligir. Sem cinismo, desejaria que pedisse protecção para todos nós – de nós mesmos.
A cada passo, sinto a pele a rasgar-se nos estilhaços, a transpiração a levar tudo da minha alma. Já não transporto o mundo asqueroso ao meu colo. Eu sou esse mesmo mundo. Arrasto-me mais um pouco, tentando não perder o equilíbrio. Finalmente, chego à rua. O grande contentor de lixo, que se encontra à porta do prédio, está cheio. Além de cheio, está rodeado de sacos de plástico mal fechados, de onde saem todos os despojos da existência humana. Caio de joelhos e deposito o monstro ferido no local onde pertence. Sem forças, deixo-me ficar prostrado…
De repente, uma gota de água cai no meu pescoço. Em menos de 5 segundos, abate-se uma tempestade como nunca vi nestes 51 anos. Deixo-me molhar, deixo que a chuva leve tudo. Deixo que penetre nas minhas feridas que, em breve, começam a arder. Chego a um estado de dormência em que já não me sinto molhado. Não sinto o frio. Não sinto as feridas.
Dou por mim, novamente em casa, e abro todas as janelas. Demoro ainda algum tempo para o conseguir, uma vez que todas, excepto a da cozinha, se mantinham fechadas há vários anos. Agora posso sentar-me no sofá e assistir a este espectáculo da primeira fila. Enfim fecho os olhos completamente, as pálpebras juntam-se como por magia e adormeço profundamente.
Acordo com o sol na cara. Não sei quanto tempo passou. Apenas sei que a primeira coisa que vejo é um gato com cerca de 3 meses sentado no chão a olhar para mim. É o Tomé…
24 de Maio de 2005,
Inês em NY
4 Comments:
Acordo com o sol na cara. Não sei quanto tempo passou. Apenas sei que a primeira coisa que vejo é um gato com cerca de 3 meses sentado no chão a olhar para mim. É o Tomé…
Esta e' a versao correcta do ultimo paragrafo. Por lapsos de copy/paste, parece que a ultima frase foi cortada. Enquanto os escritores residentes nao tiverem oportunidade de corrigir, fica nos comentarios mesmo...
Espero que gostem!
(Aos escritores residentes - claro podem apagar este comentario, quando ja nao for relevante... :))
By Inês, at 4:30 PM
Com toda a sinceridade e sem menosprezar o texto, preferia sem "É o Tomé...". Adoro finais em aberto e essa pequena frase já dá algumas informações e, na minha opinião, ficaria melhor sem. De qualquer das maneiras o texto está muito bem escrito como todos os outros que já foram aqui publicados. Gosto muito da chuva. Acredito mesmo que a água possa lavar a alma. É também uma espécie de meditação. Pelo menos para mim os efeitos são parecidos. A chuva arrasta o lixo e deixa-nos mais leves e penso que o personagem estava mesmo a precisar de descontrair um pouco :)
Beijo*
By SweetSerenity, at 9:08 PM
Gostei do fim, da chuva, mas achei que o caminho entre sair e chegar a casa ficou um bocado "esticado", com demasiados pormenores pelo meio, mas talvez seja esta a ideia.
By Dasha, at 7:02 PM
Adorei o "monstro ferido", o peso do mundo ao colo dele – é uma boa hiperbole. Gostei muito da descida do teu homem: também é metafórica, parece-me, uma descida aos Infernos. E páras cinematograficamente em cada um dos andares para nos dares uma prespectiva das personagens secundárias que lá vivem. Muito bem escrito, muito fluído, mantiveste impecávelmente o espaço interior da personagem inicial.
Podias, quanto a mim, ter sido mais arrojada no final. Está fixe, mas o resto do texto está tão bom que senti falta de um final mais arrojado, não necessariamente suicída ou homicida.
Muitos parabéns. Grande talento.
By Anonymous, at 10:17 PM
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