... fora de tempo... e então?!?! :) DP2: Pressão... (Parte II) por Secret
Olá a todos!
'Poizé', se pensavam que já tinhamos fechado a loja desenganem-se!
E eis que ainda surge mais uma participante com um texto de tirar a respiração!
Apresento-vos uma cara amiga, a Secret
sem mais tecladas desnecessárias
cumprimentos entusiastas
Der Uberlende
Pressão... (Parte II)
Irra! Porque é que na porcaria dos meus 51 anos nunca fui capaz de terminar nada?
E agora tropeço nisto que cai e rola. As mãos também já não têm a mesma firmeza… e não me deveria ter levantado tão rápido… mas um gajo ainda se assusta, caramba!
O que terá sido agora? Ultimamente este prédio, onde nunca se passa nada, está mais agitado do que nunca no não se passa nada para além da feira do costume.
Nestas horas é que eu desejava que a garrafa não tivesse fim. Ou que tivesse tido o bom senso de comprar outra… Sim, beber por beber que fosse o bastante para nada ouvir, para passar àquela fase de inconsciência que faz desta feira uma memória sonora longínqua. O som que embala o meu semi-sono.
Ou então, desejava não ter bebido, de todo; não ter este gosto de cortiça na boca, que antes só aparecia no dia seguinte «cabrões de adulteradores de álcool, já nem se pode confiar no veneno!» Ou talvez este seja o dia seguinte do dia de ontem; não ter esta puta dor de cabeça que faz com que as escadas imundas do prédio ondulem como dejectos inquietos à beira-mar.
E pensar que escolhi o último andar porque havia elevador… e paguei mais até! A caixa estava lá, está lá o corpo e a porta, só lhe falta espírito que o mova. Se calhar também lhe fazia bem um trago de álcool.
Continuo escada abaixo e a bebé persegue-me aos berros, ao colo generoso da mãe. Reparo pela primeira vez que a miúda pode não beber whisky mas tem bom gosto na garrafa.
A velhota que chamou a polícia lá contínua a ladainha «Ai meu Deus, oh meu Deus!…» Enganou-se. Geralmente o segundo grito é «Deus me valha» e esqueceu-se de concluir que «é o fim do mundo!» Se calhar porque é só o meu fim.
Chego por fim à porta do prédio, ou ao palco do primeiro acto, sei lá! A arena está montada. Posso ver o círculo de pessoas que se acotovelam inquietas, satisfeitas por algo acontecer.
Olho para o puto do estacionamento. Deve estar desolado por não ter descoberto forma de cobrar dinheiro aos curiosos que vieram em busca do espectáculo. O puto que todos os dias me leva as moedas por um estacionamento que não falta. Mesmo quando arrumo o carro na minha garagem. «Tem direito!», explica-me, enquanto me estende a palma da mão, de linhas negras do sujo que já não cabe nas unhas. E se aquela rua é a rua do seu direito seria de toda a justiça que os curiosos estivessem a pagar.
A multidão abre-se à minha passagem. Estranho a minha importância súbita, logo eu que nunca fui nada naquela rua, naquela praça, naquele prédio. Até a Elisa era a Gata do último andar e eu «o tipo que vive com a gata».
Se calhar afastam-se porque se apercebem da minha irritação. Não, descubro que não!
Esqueci-me da merda da caçadeira e aqui estou eu, no meio da confusão, que não percebo, armado! Sempre é melhor do que o «armado em estúpido», do costume.
De qualquer modo descobri a origem da confusão entre gritos estridentes que me apertam ainda mais o crânio, nesta dor travo de álcool rasco, meia ressaca, meia bebedeira inútil, e entre as personagens da rua que acho que estão sempre lá. Estão quando passo à noite, de dia, de manhã… se calhar os cromos são todos iguais e fazem turnos à minha espera… e eu pensava que eram os mesmos.
No meio da arena não há touro, embora haja argolas. Diante de mim está o pirata que matou Elisa. O estrondo que se ouviu foi o do carro que se acabou no muro do prédio, não sem antes mastigar duas motos velhas, como tudo ali. Se é que é um carro aquela coisa arrastada até ao chão, cheia de paneleirices e a emitir um barulho de motor de rega da quinta da avó Ana nos Agostos da minha infância. As cenas de que um tipo se lembra nestas horas. Aquele motor/despertador que me custou uns tabefes no dia em que por meu esforçado engenho não mais despertou.
O pirata já perdeu o boné ridículo, Elisa. Hoje há feira por aqui. É a feira do acerta no pirata. Sim, porque mesmo o sangue que o lava e a posição prostrada do seu braço partido não evitam os golpes de sorte de quem o apanha. Não evitam o lavar da raiva e a ira das noites de corridas sob a janela de um quarto de dormir, não evitam o vingar dos sustos das crianças e das carcaças das motas que nada valem do pouco que valiam.
O pirata tem uma figura patética fora da sua arma potente que se esvaiu contra o muro.
Não Elisa! Não me fales agora. Que mania a tua! Nunca me respondeste às perguntas, mas falas sempre quando não te quero ouvir. Até depois de morta! Não te ouço Elisa, não faço o que queres. Não Elisa, ele está aqui! Este é o meu momento.
Levanto a arma.
Não Elisa, sou eu quem domina agora. Que diferença faz trocar o nosso andar por uma cela? Que diferença faz se já não estás aqui, se já não é o nosso andar?
… … …
… … …
Depois de tudo ainda tropeço no teu prato aqui no chão. Se estivesses aqui passarias agora junto às minhas pernas para que eu te fizesse uma festa, como o meu prémio por ter feito o que querias. Sim, aí entre as orelhas… onde mais?
Fiz o que querias, é sempre assim não é? Agora queria ouvir-te, mas não me falas… já sei! Se calhar nem me voltas a falar, partiste.
Estou de volta ao sofá mas não ligo o automático. Hoje passou-se algo, sim. Ouviram-me. Ouviram-me quando de caçadeira em punho gritei que parassem! Só por ti, Elisa, eu protegeria aquele carrasco de braço partido. Ainda bem que a polícia chegou. Já me tremiam as pernas e os dedos na arma. Tremiam do álcool, ou da minha coragem súbita, ou somente da vontade abafada de meter um chumbo no corpo que protegia.
Mas hoje terminei algo. Fui inepto, eu sei. Mas o miúdo das linhas negras da palma da mão serviu para algo.
Não dei os tiros à televisão, como me preparava para fazer, antes de começar a confusão. Também não dei os tiros ao puto do tunning do braço partido. Mas livrei-me da televisão de qualquer modo! E esse era o meu primeiro objectivo. Acabaram-se as cabras que parecem pessoas e as pessoas que parecem… acabaram-se!
A televisão já não ocupa espaço aqui. Dei umas moedas ao miúdo para que aceitasse a televisão. Aceitou as moedas e a televisão, sem discutir! Sem dizer que tinha direito a mais. Talvez porque eu ainda tivesse a caçadeira…
Ai Elisa, ainda bem que a confusão aconteceu!
Queres saber um segredo? Desta vez não venceste tu e a tua vontade. Não fiz o que querias… O resultado foi o mesmo, eu sei. Mas não foi a tua vontade.
Sabes? É que à última da hora quando ía levantar a arma para o pirata lembrei-me de que os cartuchos caíram dos canos quando a confusão estalou e a caçadeira ainda estava aberta… rolaram para ali para baixo do armário onde já não reina a televisão.
Hoje enganei-te Elisa! Hoje estive à altura da gata astuta que sempre foste…
29 de Maio de 2005,
secret
'Poizé', se pensavam que já tinhamos fechado a loja desenganem-se!
E eis que ainda surge mais uma participante com um texto de tirar a respiração!
Apresento-vos uma cara amiga, a Secret
sem mais tecladas desnecessárias
cumprimentos entusiastas
Der Uberlende
Pressão... (Parte II)
Irra! Porque é que na porcaria dos meus 51 anos nunca fui capaz de terminar nada?
E agora tropeço nisto que cai e rola. As mãos também já não têm a mesma firmeza… e não me deveria ter levantado tão rápido… mas um gajo ainda se assusta, caramba!
O que terá sido agora? Ultimamente este prédio, onde nunca se passa nada, está mais agitado do que nunca no não se passa nada para além da feira do costume.
Nestas horas é que eu desejava que a garrafa não tivesse fim. Ou que tivesse tido o bom senso de comprar outra… Sim, beber por beber que fosse o bastante para nada ouvir, para passar àquela fase de inconsciência que faz desta feira uma memória sonora longínqua. O som que embala o meu semi-sono.
Ou então, desejava não ter bebido, de todo; não ter este gosto de cortiça na boca, que antes só aparecia no dia seguinte «cabrões de adulteradores de álcool, já nem se pode confiar no veneno!» Ou talvez este seja o dia seguinte do dia de ontem; não ter esta puta dor de cabeça que faz com que as escadas imundas do prédio ondulem como dejectos inquietos à beira-mar.
E pensar que escolhi o último andar porque havia elevador… e paguei mais até! A caixa estava lá, está lá o corpo e a porta, só lhe falta espírito que o mova. Se calhar também lhe fazia bem um trago de álcool.
Continuo escada abaixo e a bebé persegue-me aos berros, ao colo generoso da mãe. Reparo pela primeira vez que a miúda pode não beber whisky mas tem bom gosto na garrafa.
A velhota que chamou a polícia lá contínua a ladainha «Ai meu Deus, oh meu Deus!…» Enganou-se. Geralmente o segundo grito é «Deus me valha» e esqueceu-se de concluir que «é o fim do mundo!» Se calhar porque é só o meu fim.
Chego por fim à porta do prédio, ou ao palco do primeiro acto, sei lá! A arena está montada. Posso ver o círculo de pessoas que se acotovelam inquietas, satisfeitas por algo acontecer.
Olho para o puto do estacionamento. Deve estar desolado por não ter descoberto forma de cobrar dinheiro aos curiosos que vieram em busca do espectáculo. O puto que todos os dias me leva as moedas por um estacionamento que não falta. Mesmo quando arrumo o carro na minha garagem. «Tem direito!», explica-me, enquanto me estende a palma da mão, de linhas negras do sujo que já não cabe nas unhas. E se aquela rua é a rua do seu direito seria de toda a justiça que os curiosos estivessem a pagar.
A multidão abre-se à minha passagem. Estranho a minha importância súbita, logo eu que nunca fui nada naquela rua, naquela praça, naquele prédio. Até a Elisa era a Gata do último andar e eu «o tipo que vive com a gata».
Se calhar afastam-se porque se apercebem da minha irritação. Não, descubro que não!
Esqueci-me da merda da caçadeira e aqui estou eu, no meio da confusão, que não percebo, armado! Sempre é melhor do que o «armado em estúpido», do costume.
De qualquer modo descobri a origem da confusão entre gritos estridentes que me apertam ainda mais o crânio, nesta dor travo de álcool rasco, meia ressaca, meia bebedeira inútil, e entre as personagens da rua que acho que estão sempre lá. Estão quando passo à noite, de dia, de manhã… se calhar os cromos são todos iguais e fazem turnos à minha espera… e eu pensava que eram os mesmos.
No meio da arena não há touro, embora haja argolas. Diante de mim está o pirata que matou Elisa. O estrondo que se ouviu foi o do carro que se acabou no muro do prédio, não sem antes mastigar duas motos velhas, como tudo ali. Se é que é um carro aquela coisa arrastada até ao chão, cheia de paneleirices e a emitir um barulho de motor de rega da quinta da avó Ana nos Agostos da minha infância. As cenas de que um tipo se lembra nestas horas. Aquele motor/despertador que me custou uns tabefes no dia em que por meu esforçado engenho não mais despertou.
O pirata já perdeu o boné ridículo, Elisa. Hoje há feira por aqui. É a feira do acerta no pirata. Sim, porque mesmo o sangue que o lava e a posição prostrada do seu braço partido não evitam os golpes de sorte de quem o apanha. Não evitam o lavar da raiva e a ira das noites de corridas sob a janela de um quarto de dormir, não evitam o vingar dos sustos das crianças e das carcaças das motas que nada valem do pouco que valiam.
O pirata tem uma figura patética fora da sua arma potente que se esvaiu contra o muro.
Não Elisa! Não me fales agora. Que mania a tua! Nunca me respondeste às perguntas, mas falas sempre quando não te quero ouvir. Até depois de morta! Não te ouço Elisa, não faço o que queres. Não Elisa, ele está aqui! Este é o meu momento.
Levanto a arma.
Não Elisa, sou eu quem domina agora. Que diferença faz trocar o nosso andar por uma cela? Que diferença faz se já não estás aqui, se já não é o nosso andar?
… … …
… … …
Depois de tudo ainda tropeço no teu prato aqui no chão. Se estivesses aqui passarias agora junto às minhas pernas para que eu te fizesse uma festa, como o meu prémio por ter feito o que querias. Sim, aí entre as orelhas… onde mais?
Fiz o que querias, é sempre assim não é? Agora queria ouvir-te, mas não me falas… já sei! Se calhar nem me voltas a falar, partiste.
Estou de volta ao sofá mas não ligo o automático. Hoje passou-se algo, sim. Ouviram-me. Ouviram-me quando de caçadeira em punho gritei que parassem! Só por ti, Elisa, eu protegeria aquele carrasco de braço partido. Ainda bem que a polícia chegou. Já me tremiam as pernas e os dedos na arma. Tremiam do álcool, ou da minha coragem súbita, ou somente da vontade abafada de meter um chumbo no corpo que protegia.
Mas hoje terminei algo. Fui inepto, eu sei. Mas o miúdo das linhas negras da palma da mão serviu para algo.
Não dei os tiros à televisão, como me preparava para fazer, antes de começar a confusão. Também não dei os tiros ao puto do tunning do braço partido. Mas livrei-me da televisão de qualquer modo! E esse era o meu primeiro objectivo. Acabaram-se as cabras que parecem pessoas e as pessoas que parecem… acabaram-se!
A televisão já não ocupa espaço aqui. Dei umas moedas ao miúdo para que aceitasse a televisão. Aceitou as moedas e a televisão, sem discutir! Sem dizer que tinha direito a mais. Talvez porque eu ainda tivesse a caçadeira…
Ai Elisa, ainda bem que a confusão aconteceu!
Queres saber um segredo? Desta vez não venceste tu e a tua vontade. Não fiz o que querias… O resultado foi o mesmo, eu sei. Mas não foi a tua vontade.
Sabes? É que à última da hora quando ía levantar a arma para o pirata lembrei-me de que os cartuchos caíram dos canos quando a confusão estalou e a caçadeira ainda estava aberta… rolaram para ali para baixo do armário onde já não reina a televisão.
Hoje enganei-te Elisa! Hoje estive à altura da gata astuta que sempre foste…
29 de Maio de 2005,
secret
5 Comments:
Secret, este texto está mesmo à altura do que esperava de ti :D Gostei imenso... acho que vou apagar o comentário com os votos porque tenho que repensar, agora que surgiram novos textos cuja qualidade não fica nada abaixo dos anteriores! Beijo doce*
By rita, at 5:05 PM
Ui, que bela alternativa!! Parabéns, Secret, e obrigada Der Uberlende por não seres como as repartições públicas portuguesas (e holandesas, tb, já agora!) em que os prazos são mesmo para quem está do lado errado do balcão.
By smallworld, at 5:15 PM
gostei, gostei :) a descriçao do ambiente é tao minuciosa que consegui imaginar tudo
[peço desculpa mas hoje estou terrivelmente inapta para comentarios minimamente inteligentes ou interessantes] so posso dizer que gostei muito :)
beijo*
By Perséfone, at 8:38 PM
Também gostei muito, veio atrasado mas é indispensável. Muito bem escrito e muito imaginativo. parabéns. beijinho
By Eduarda Sousa, at 11:28 AM
Muito bem escrito, muito intenso. Apresentaste um mundo interior riquíssimo. Fez-me lembrar aqueles personagens do Lobo Antunes, que se debatem em diálogos interiores cheios de culpa, memórias e conflito. Gostei muito de teres transformado a Elisa no "diabinho" da consciência da personagem principal, na "voz" que ele ouve e que o tenta obrigar a ceder à raiva. Parabéns.
By Anonymous, at 11:46 AM
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