DBI: "A melhor altura da tua vida" por Shakti
Olá a todos,
Espero que estejam a aproveitar o fim de semana prolongado da melhor maneira,
Aqui vai a resposta da Shakti ao nosso DBI
(ela não deu um título ao texto dela, fui eu que inventei este. Shakti, se discordares diz que eu apago ou mudo)
... e já lá vão 3 textos! :))
boas escritas,
D.U.
A melhor altura da tua vida
De olhos fechados assiste com minúcia ao desfile das imagens que passam sem cessar na sua frente, como uma película projectada, enquanto a respiração tranquila e monótona a acompanha neste ritual quase diário.
Vê nitidamente Ricardo, seu namorado desde a infância, o início de um relacionamento pleno de doçura e inocência de duas crianças vizinhas da mesma aldeia que brincam juntas no recreio da escola primária, quando este já lhe levantava o vestido de chita para lhe espreitar os culotes. Esboça um leve sorriso. Irónico.
Ela, extremamente feminina, olhos claros, tez branca, cabelo dourado, modos finos, de bom trato, vestida pelos trapos que a mãe lhe confeccionava em casa, fitas a condizer a segurar os cachos seara, até o bibe da escola tinha fita, filha única de um casamento que outrora havia sido feliz mas que com o tempo caíra na indiferença. Na escola distinguia-se pelo traje imaculadamente limpo, lindo, original, com cor, bom corte, com uma classe discreta, muito peculiar, e por ser filha do presidente do clube recreativo e também da junta de freguesia, um senhor educado e pacato, respeitado por todos.
Os pais haviam escolhido viver naquela terreola do interior quando souberam que ela iria chegar, para lhe dar a qualidade de vida que a grande cidade onde viviam não oferecia. Depressa se arranjou uma tranferência para o pai, antes funcionário público numa câmara municipal; a mãe, modista favorita das senhoras de alta sociedade que não conheciam estilistas de jeito no país que lhes chegasse aos calcanhares, passou apenas a costurar para a sua maior estrela: a filha.
Ricardo tinha uns olhos enormes da cor do mar que quando a fitavam a faziam ruborizar em dois segundos. Era filho do único mecânico daquele lugar de fim de mundo, que à custa desse monopólio usufruía do que mais apreciava: dinheiro e miúdas de tenra idade, gosto que lhe era sobejamente conhecido por toda a aldeia e arredores, até pela mãe de Ricardo, sua segunda mulher, que “acompanhava” impávida e serena a leviandade delirante do marido porque o nível de vida que lhe proporcionava, a ela que era doméstica, e ao filho, não tinha preço. Já bem bastava o dinheiro que todos os meses aquela cabra da ex-mulher lhe exigia para os gémeos. Pfff... uma ordinária que emprenhou antes de casar, que nem um ano esteve casada com ele e que fugiu com outro para a Alemanha. Às tantas os gémeos nem sequer são filhos dele. É muito estúpido o meu João, dizia em tom alarve.
No dia que fez 15 anos o seu pai ofereceu-lhe uma máquina de escrever, a mãe preparou uma festinha para os coleguinhas da escola, mas Ricardo era o seu único amigo e era Ricardo que ela procurava com os olhos, era com ele que queria estar e deleitar-se por entre o milheiral onde pela primeira vez havia descoberto as delícias carnais, com as suas entranhas dadas totalmente um ao outro numa conquista infindável, irrepetível, incomensurável.
Tornara-se uma adolescente interessante e agora o que a distinguia na escola secundária eram as suas brilhantes notas e o estilo muito coquete. O pai estimulava-a intelectualmente aguçando-lhe a curiosidade, induzindo-a a ler, a descobrir, a problematizar, a escrever, a recitar poesia e a não desistir da catequese e das aulas de natação que tinha desde os cinco anos na piscina municipal da vila mais abaixo. A mãe, apesar das cada vez mais frequentes dores nas costas, continuava a costurar para ela, alimentando a vaidade inconsciente de a menina mais linda da aldeia ser a sua.
Todas as pessoas da terra olhavam quando passava, a sua figura era alvo dos mais diversos comentários em surdina, observações de respeito, inveja, cobiça, indiferença, mas acima de tudo de desejo.
Dentro daquele corpo, onde as formas se adivinhavam generosas, ela sentia-se a ferver, a líbido saía-lhe por todos os poros da pele, era incontornável. Talvez por isso, poucos anos mais tarde, tenha cometido a maior atrocidade da vida, um erro irreversível, com danos de dimensões irreparáveis. Movida pela luxúria e pelo poder da manipulação que as hormonas tinham sobre si, entrega o seu indomável desejo à mercê de um homem mais velho e durante alguns meses rende-se ao imenso desvario daqueles encontros fortuitos, mais por vício do que por desmesurado prazer. Ricardo nota-a diferente, mais esquiva, menos entusiasmada, mas na sua pureza e devoção inabaláveis não questiona, até que, por mero acaso, depara-se inadvertidamente com o casal de amantes clandestinos entregues ao desfrute. O mundo fugiu-lhe dos pés, era cruel demais para ser verdade: a mulher da sua vida com o seu próprio pai!
A sua existência parou. Tudo o que agora vê é humilhação e desgosto estampados na cara dos pais, cabisbaixos, atordoados pela vergonha enquanto partem os três silenciosos de carro atafulhado sob os olhares apedrejadores de toda a aldeia. Assassina! O Ricardo matou-se por tua causa, sua puta! Os gritos ainda ecoam na cabeça, até hoje.
Deitada na cadeira reclinável daquela clínica cara onde faz tratamento de quimioterapia, pergunta-se se está a ser castigada pelo passado negro e mordaz que escolheu. Do mecânico soube que depois de ficar sem o Ricardo e, obviamente, sem a mulher, mudou-se também e refez a vida com outra da qual se divorciou pouco tempo depois. Continuava a conhecer-se-lhe o gosto por miúdas novas, parece que de momento vive com uma cabeleireira de 19 anos.
Os únicos amigos que tem são irracionais. Quatro. A capacidade para se relacionar com alguém fora do âmbito profissional é totalmente nula, nada mais restou senão entregar-se de corpo e alma ao trabalho e mesmo sem traçar grandes objectivos tornou-se numa profissional de sucesso, consagrada e admirada. Tudo o que tem na vida é dinheiro, muito dinheiro que não compra paz nem afasta fantasmas. O cancro descoberto há cerca de dois anos já o sente a consumi-la há catorze.
A enfermeira Paula aproxima-se com o intuito de preparar a cadeira ao lado onde se deitará a “companheira de doença” com a qual troca conversas de há oito meses para cá. Ser curioso aquela jovem enfermeira de olhar só e sorriso raro. Se há dias em que, bem disposta, fala pelos cotovelos e conta as peripécias do irmão de seis anos e da mãe com quem vive, outros há em que insiste na sisudez do rosto e em manter uma distância gélida e obstinada com todos os que a rodeiam.
Mafalda chega, tranquila, de passos firmes, linda, mesmo se um único fio de cabelo, de uma beleza exótica, incomparável, intocável. A doença havia sido descoberta num rastreio semestral imposto a todos os funcionários da grande superfície onde trabalhava. Não fosse o seguro de saúde pago pela mesma e nunca poderia tratar-se naquele lugar. Nas mãos traz um saco com uma pequena caixa de gelado com colher anexada à tampa, é para ti Fernanda, toma, para recordares os dias quentes derretidos no sabor dos gelados da tua infância, contaste-me que tinhas sido muito feliz, disseste-me que foi a melhor altura da tua vida, lembras-te?, Fernanda sorri, agradece o mimo, estende o braço e aperta as mãos de Mafalda.
9 de Junho de 2005
Shakti
Espero que estejam a aproveitar o fim de semana prolongado da melhor maneira,
Aqui vai a resposta da Shakti ao nosso DBI
(ela não deu um título ao texto dela, fui eu que inventei este. Shakti, se discordares diz que eu apago ou mudo)
... e já lá vão 3 textos! :))
boas escritas,
D.U.
A melhor altura da tua vida
De olhos fechados assiste com minúcia ao desfile das imagens que passam sem cessar na sua frente, como uma película projectada, enquanto a respiração tranquila e monótona a acompanha neste ritual quase diário.
Vê nitidamente Ricardo, seu namorado desde a infância, o início de um relacionamento pleno de doçura e inocência de duas crianças vizinhas da mesma aldeia que brincam juntas no recreio da escola primária, quando este já lhe levantava o vestido de chita para lhe espreitar os culotes. Esboça um leve sorriso. Irónico.
Ela, extremamente feminina, olhos claros, tez branca, cabelo dourado, modos finos, de bom trato, vestida pelos trapos que a mãe lhe confeccionava em casa, fitas a condizer a segurar os cachos seara, até o bibe da escola tinha fita, filha única de um casamento que outrora havia sido feliz mas que com o tempo caíra na indiferença. Na escola distinguia-se pelo traje imaculadamente limpo, lindo, original, com cor, bom corte, com uma classe discreta, muito peculiar, e por ser filha do presidente do clube recreativo e também da junta de freguesia, um senhor educado e pacato, respeitado por todos.
Os pais haviam escolhido viver naquela terreola do interior quando souberam que ela iria chegar, para lhe dar a qualidade de vida que a grande cidade onde viviam não oferecia. Depressa se arranjou uma tranferência para o pai, antes funcionário público numa câmara municipal; a mãe, modista favorita das senhoras de alta sociedade que não conheciam estilistas de jeito no país que lhes chegasse aos calcanhares, passou apenas a costurar para a sua maior estrela: a filha.
Ricardo tinha uns olhos enormes da cor do mar que quando a fitavam a faziam ruborizar em dois segundos. Era filho do único mecânico daquele lugar de fim de mundo, que à custa desse monopólio usufruía do que mais apreciava: dinheiro e miúdas de tenra idade, gosto que lhe era sobejamente conhecido por toda a aldeia e arredores, até pela mãe de Ricardo, sua segunda mulher, que “acompanhava” impávida e serena a leviandade delirante do marido porque o nível de vida que lhe proporcionava, a ela que era doméstica, e ao filho, não tinha preço. Já bem bastava o dinheiro que todos os meses aquela cabra da ex-mulher lhe exigia para os gémeos. Pfff... uma ordinária que emprenhou antes de casar, que nem um ano esteve casada com ele e que fugiu com outro para a Alemanha. Às tantas os gémeos nem sequer são filhos dele. É muito estúpido o meu João, dizia em tom alarve.
No dia que fez 15 anos o seu pai ofereceu-lhe uma máquina de escrever, a mãe preparou uma festinha para os coleguinhas da escola, mas Ricardo era o seu único amigo e era Ricardo que ela procurava com os olhos, era com ele que queria estar e deleitar-se por entre o milheiral onde pela primeira vez havia descoberto as delícias carnais, com as suas entranhas dadas totalmente um ao outro numa conquista infindável, irrepetível, incomensurável.
Tornara-se uma adolescente interessante e agora o que a distinguia na escola secundária eram as suas brilhantes notas e o estilo muito coquete. O pai estimulava-a intelectualmente aguçando-lhe a curiosidade, induzindo-a a ler, a descobrir, a problematizar, a escrever, a recitar poesia e a não desistir da catequese e das aulas de natação que tinha desde os cinco anos na piscina municipal da vila mais abaixo. A mãe, apesar das cada vez mais frequentes dores nas costas, continuava a costurar para ela, alimentando a vaidade inconsciente de a menina mais linda da aldeia ser a sua.
Todas as pessoas da terra olhavam quando passava, a sua figura era alvo dos mais diversos comentários em surdina, observações de respeito, inveja, cobiça, indiferença, mas acima de tudo de desejo.
Dentro daquele corpo, onde as formas se adivinhavam generosas, ela sentia-se a ferver, a líbido saía-lhe por todos os poros da pele, era incontornável. Talvez por isso, poucos anos mais tarde, tenha cometido a maior atrocidade da vida, um erro irreversível, com danos de dimensões irreparáveis. Movida pela luxúria e pelo poder da manipulação que as hormonas tinham sobre si, entrega o seu indomável desejo à mercê de um homem mais velho e durante alguns meses rende-se ao imenso desvario daqueles encontros fortuitos, mais por vício do que por desmesurado prazer. Ricardo nota-a diferente, mais esquiva, menos entusiasmada, mas na sua pureza e devoção inabaláveis não questiona, até que, por mero acaso, depara-se inadvertidamente com o casal de amantes clandestinos entregues ao desfrute. O mundo fugiu-lhe dos pés, era cruel demais para ser verdade: a mulher da sua vida com o seu próprio pai!
A sua existência parou. Tudo o que agora vê é humilhação e desgosto estampados na cara dos pais, cabisbaixos, atordoados pela vergonha enquanto partem os três silenciosos de carro atafulhado sob os olhares apedrejadores de toda a aldeia. Assassina! O Ricardo matou-se por tua causa, sua puta! Os gritos ainda ecoam na cabeça, até hoje.
Deitada na cadeira reclinável daquela clínica cara onde faz tratamento de quimioterapia, pergunta-se se está a ser castigada pelo passado negro e mordaz que escolheu. Do mecânico soube que depois de ficar sem o Ricardo e, obviamente, sem a mulher, mudou-se também e refez a vida com outra da qual se divorciou pouco tempo depois. Continuava a conhecer-se-lhe o gosto por miúdas novas, parece que de momento vive com uma cabeleireira de 19 anos.
Os únicos amigos que tem são irracionais. Quatro. A capacidade para se relacionar com alguém fora do âmbito profissional é totalmente nula, nada mais restou senão entregar-se de corpo e alma ao trabalho e mesmo sem traçar grandes objectivos tornou-se numa profissional de sucesso, consagrada e admirada. Tudo o que tem na vida é dinheiro, muito dinheiro que não compra paz nem afasta fantasmas. O cancro descoberto há cerca de dois anos já o sente a consumi-la há catorze.
A enfermeira Paula aproxima-se com o intuito de preparar a cadeira ao lado onde se deitará a “companheira de doença” com a qual troca conversas de há oito meses para cá. Ser curioso aquela jovem enfermeira de olhar só e sorriso raro. Se há dias em que, bem disposta, fala pelos cotovelos e conta as peripécias do irmão de seis anos e da mãe com quem vive, outros há em que insiste na sisudez do rosto e em manter uma distância gélida e obstinada com todos os que a rodeiam.
Mafalda chega, tranquila, de passos firmes, linda, mesmo se um único fio de cabelo, de uma beleza exótica, incomparável, intocável. A doença havia sido descoberta num rastreio semestral imposto a todos os funcionários da grande superfície onde trabalhava. Não fosse o seguro de saúde pago pela mesma e nunca poderia tratar-se naquele lugar. Nas mãos traz um saco com uma pequena caixa de gelado com colher anexada à tampa, é para ti Fernanda, toma, para recordares os dias quentes derretidos no sabor dos gelados da tua infância, contaste-me que tinhas sido muito feliz, disseste-me que foi a melhor altura da tua vida, lembras-te?, Fernanda sorri, agradece o mimo, estende o braço e aperta as mãos de Mafalda.
9 de Junho de 2005
Shakti
4 Comments:
magnifico :D
para ser sincera, quando comecei a ler, nao tinha ainda visto a extensao do texto e pensei mesmo que fosse ser gigante porque nao me estava a aperceber que as personagens ja estavam a ser introduzidas na historia, so me apercebi mais la po meio do mecanico, dos dois filhos, da mulher cabeleireira etc
surpreendeu-me mesmo a vida das personagens estar tao interligada, e termos ficado a saber tanto sobre a vida e os habitos das mesmas.
ta fantastico, gostei mesmo muito :)
beijinho*
By Perséfone, at 4:26 PM
Bem, devo dizer que este comentário vindo de ti, Perséfone, muito me honra, pois sou fã da tua escrita e o texto que enviaste para o desafio anterior estava excepcional. A quem nos lê, perdoem-nos a troca de galhardetes mas como podem calcular não conheço a Perséfone e tinha que lhe exprimir também a minha admiração. Obrigada.
Beijinhos.
By Anonymous, at 10:38 PM
obrigada.. realmente nao ha mais palavras pra agradecer.. assumo-me como fa da maior parte dos participantes deste blog, principalmente porque acima de gostar de escrever, gosto de ler o que os outros dizem, gosto que me façam pensar e talvez por isso nao escreva, porque aliada a dificuldade de me exprimir esta o factor exposiçao que me desagrada de todo.. é como digo ha coisas que gostaria muito de fazer, mas que a minha maneira de ser nao permite, dai que goste tanto de ca vir e de viver um bocadinho mais pelas vossas palavras :)
obrigada sincero :)
Muah* beijinho*
By Perséfone, at 1:12 PM
Simplesmente fabuloso… só queria continuar a ler a história, estava já tão embalada na tua narrativa, em todo o enredo delicioso e suave que criaste! Parabéns, é um dos meus favoritos até agora!
By Eduarda Sousa, at 9:45 PM
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