Carta ao sonho desfeito; Por Kleine Cassiel
Ora viva!
Partilho convosco este texto inquietante e merecedor de reflexão da Kleine Cassiel
Espero que vos toque profundamente como tocou a mim,
continuem a excelente produção literária!
um abraço,
Der Uberlende
Carta ao sonho desfeito
Termino esta fase e começo outra amanhã...porque será que nem sei se é mesmo isto que eu quero? Maus cheiros, carne putrefacta, suja, odores e mais odores, gritos, choros, lamurias, sorrisos tristes, carregados de mil e uma palavras sem as dizer...... Afinal do que estou à espera? Foi para isso que me preparei durante 4 anos, em completa dedicação, não fiz tantas outras coisas, não podia mesmo que quisesse e as conhecesse, mas nem tive hipótese de escolha, essa estava feita quando me pus a pé desde o Rossio até àquela que foi minha diária na Praça de Espanha por longas quase 5mil horas de cadeira e mesa e papeis...a pé fui e vim...quase sem sentir os dedos, as partes várias dos meus pés...mas estava feito, papeis preenchidos e pouco tempo depois a confirmação...tinha entrado...e agora... muitos papeis e acetados copiados nos intervalos, em vez de me ir divertir e brincar com a vida, como os outros faziam....para aprender a ser aquilo que já sabem...
Hoje é o amanhã, 7 e picos e já lá estou frente ao elevador. Muitos dias foram assim: 7 e picos e eu em frente ao elevador que me levava ao 7 andar, aquele serviço de anjos “azarados”, que me preencheram a vida e me deram luz à vida, emocional e profissional....mas , dizes tu, anjo eu que acompanho-vos pelo caminho das nuvens, em direcção ao azul, esse que não sabemos onde é o limite e onde nos guarda a ultima morada do físico – a nossa alma???
Sabes, vais saber que nem sempre é assim....eu soube pela primeira vez quando numa tarde que se prolongava para o dia seguinte, porque nessa altura fazia muitas vezes mais horas, sim , deveria ser para diversão, nem outra razão podia existir..........................
.............................soube que afinal não era nada nisto que eu acreditava e não era nada isto que me servia para continuar a respirar. Tive a certeza absoluta de uma coisa...não iria mais pensar no meu Deus terreno e Celestial, não iria mais dirigir-lhe o pensamento, não iria mais agradecer-lhe a vida. Afinal Ele roubava vidas tão inocentes, tão puras, tão escassas de vivência terrestre...afinal Ele era um monstro! Porque naquele dia , um dia de Outubro de há 14 anos atrás, recebi um desses anjinhos “azarados”, com 18 meses de vida, que em breve teria uma caixa para “dormir”, não a caixa do seu berço, mas uma caixa fria, sem a mãe por perto, e iria dormir, dormir, dormir, até deixar de o ser....e começou comigo, quando a mãe, tão nova e de longe, me disse que não iria acompanhar a filha no internamento, e eu me zanguei com ela, e ao fim de algumas horas ela me trouxe uma flor, da rua, do quiosque ali perto, e não pediu desculpa, mas falou-me de outras coisas simples da vida, que ela queria continuar a ter, e por isso não ficaria ali connosco as duas, eu e a sua filhota......
Começou comigo aquele fim de tarde horrível, quando eu não fui capaz de colocar uma veia para o soro, nem nos pézinhos da “minha menina” e o choro dela me tirava do meu estado racional, e lhe quis dar leite, no biberão, e ela recusava.....recusava tudo, menos o meu colo, mas eu não vi isso na altura, só vi o horror daquela carinha linda, que depois dos primeiros tratamentos não iria mais ser linda..........só vi que não era justo para ela este caminho tão curto, só vi a minha frustração de nada ser-me possível fazer para não haver mais lagrimas...e ao fim de muito tempo, já todos os outros meninos e a minha colega, descansavam um pouco e eu com a Madalena passámos a ser as duas a chorar. Ela ao meu colo...........
Hoje, choro, também choro com eles, os meus doentinhos, mas choro por Ele também, que não os consegue ajudar. Penso que se Ele me deixar, eu darei a minha mão e tudo o que tenho, ou penso ter, para .......aquilo que tu sabes, e que eu deixei de ser capaz de dizer, porque são tantas as coisas que se sentem que não há palavras nem nada, a não ser viver e assistir ao viver e deixar de viver de quem me rodeia..
27 de Abril de 2005,
Kleine Cassiel
Partilho convosco este texto inquietante e merecedor de reflexão da Kleine Cassiel
Espero que vos toque profundamente como tocou a mim,
continuem a excelente produção literária!
um abraço,
Der Uberlende
Carta ao sonho desfeito
Termino esta fase e começo outra amanhã...porque será que nem sei se é mesmo isto que eu quero? Maus cheiros, carne putrefacta, suja, odores e mais odores, gritos, choros, lamurias, sorrisos tristes, carregados de mil e uma palavras sem as dizer...... Afinal do que estou à espera? Foi para isso que me preparei durante 4 anos, em completa dedicação, não fiz tantas outras coisas, não podia mesmo que quisesse e as conhecesse, mas nem tive hipótese de escolha, essa estava feita quando me pus a pé desde o Rossio até àquela que foi minha diária na Praça de Espanha por longas quase 5mil horas de cadeira e mesa e papeis...a pé fui e vim...quase sem sentir os dedos, as partes várias dos meus pés...mas estava feito, papeis preenchidos e pouco tempo depois a confirmação...tinha entrado...e agora... muitos papeis e acetados copiados nos intervalos, em vez de me ir divertir e brincar com a vida, como os outros faziam....para aprender a ser aquilo que já sabem...
Hoje é o amanhã, 7 e picos e já lá estou frente ao elevador. Muitos dias foram assim: 7 e picos e eu em frente ao elevador que me levava ao 7 andar, aquele serviço de anjos “azarados”, que me preencheram a vida e me deram luz à vida, emocional e profissional....mas , dizes tu, anjo eu que acompanho-vos pelo caminho das nuvens, em direcção ao azul, esse que não sabemos onde é o limite e onde nos guarda a ultima morada do físico – a nossa alma???
Sabes, vais saber que nem sempre é assim....eu soube pela primeira vez quando numa tarde que se prolongava para o dia seguinte, porque nessa altura fazia muitas vezes mais horas, sim , deveria ser para diversão, nem outra razão podia existir..........................
.............................soube que afinal não era nada nisto que eu acreditava e não era nada isto que me servia para continuar a respirar. Tive a certeza absoluta de uma coisa...não iria mais pensar no meu Deus terreno e Celestial, não iria mais dirigir-lhe o pensamento, não iria mais agradecer-lhe a vida. Afinal Ele roubava vidas tão inocentes, tão puras, tão escassas de vivência terrestre...afinal Ele era um monstro! Porque naquele dia , um dia de Outubro de há 14 anos atrás, recebi um desses anjinhos “azarados”, com 18 meses de vida, que em breve teria uma caixa para “dormir”, não a caixa do seu berço, mas uma caixa fria, sem a mãe por perto, e iria dormir, dormir, dormir, até deixar de o ser....e começou comigo, quando a mãe, tão nova e de longe, me disse que não iria acompanhar a filha no internamento, e eu me zanguei com ela, e ao fim de algumas horas ela me trouxe uma flor, da rua, do quiosque ali perto, e não pediu desculpa, mas falou-me de outras coisas simples da vida, que ela queria continuar a ter, e por isso não ficaria ali connosco as duas, eu e a sua filhota......
Começou comigo aquele fim de tarde horrível, quando eu não fui capaz de colocar uma veia para o soro, nem nos pézinhos da “minha menina” e o choro dela me tirava do meu estado racional, e lhe quis dar leite, no biberão, e ela recusava.....recusava tudo, menos o meu colo, mas eu não vi isso na altura, só vi o horror daquela carinha linda, que depois dos primeiros tratamentos não iria mais ser linda..........só vi que não era justo para ela este caminho tão curto, só vi a minha frustração de nada ser-me possível fazer para não haver mais lagrimas...e ao fim de muito tempo, já todos os outros meninos e a minha colega, descansavam um pouco e eu com a Madalena passámos a ser as duas a chorar. Ela ao meu colo...........
Hoje, choro, também choro com eles, os meus doentinhos, mas choro por Ele também, que não os consegue ajudar. Penso que se Ele me deixar, eu darei a minha mão e tudo o que tenho, ou penso ter, para .......aquilo que tu sabes, e que eu deixei de ser capaz de dizer, porque são tantas as coisas que se sentem que não há palavras nem nada, a não ser viver e assistir ao viver e deixar de viver de quem me rodeia..
27 de Abril de 2005,
Kleine Cassiel
2 Comments:
São raras as pessoas que sabem, a sério, que viver não é flutuar sobre os dramas dos outros nem fingir que a morte e a dor não existem. Mais raros ainda, são os que aceitam a missão de levar quem sofre até à outra margem, enquanto lhes absorvem metade da dor pelo caminho. O anjo desta história é ela.
By Anonymous, at 2:40 PM
A impotência de querer ajudar e nada conseguir fazer. A revolta para com Ele que nada faz para ajudar os meninos doentes. As longas noites de estudo e dedicação para adquirirmos os conhecimentos teóricos que de quase nada nos servirão para enfrentar a Dor que nos espera… a fragilidade da vida humana. Frustação.
By Eduarda Sousa, at 2:25 PM
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