Silêncio (Parte II); 500+500 palavras para um blog
Silêncio (Parte II)
Pisco os olhos com enorme dificuldade. Sou sacudido violentamente de um lado para outro pela equipa de urgências. Curioso… num momento destes só me consigo lembrar da minha velhota a olhar para a TV a ver o E.R. só pelo entretenimento, pois mal sabia ler e “a mania de só dar séries estrangeiras à hora que a gente quer descansar” (entenda-se, recuperar das tareias que o cabrão do marido lhe dava para despejar as frustrações de mais um dia a varrer ruas e a desentupir esgotos).
Num momento mágico reparo que tenho uma companhia ao meu lado. Era ela!
Enfermeira 1: Atenção aos sinais, estamos a perdê-lo!
Enfermeira 2: Doutor, rápido, a pulsação está a disparar!
Ela não se moveu. Olhava para mim e sorria, sorria calmamente, tão tranquila quanto aquela tarde no lago, tão grande como o céu que me cobria de azul anilado… Vinha agora à memória um filme que o meu primo me emprestou um mês antes de eu ter vendido o vídeo e o ouro da velhota. “As Asas do Desejo”, era esse o nome. O puto tinha adorado aquele filme, “uma obra divina” dizia ele… Só anui em ver porque ele garantiu-me que entrava o Nick Cave, a tocar num bar fumarento de Berlim Oriental. Não podia resistir…
A cena da Biblioteca ficou-me marcada para todo o sempre: Num enorme edifício sólido e cinzento como o regime dos Sovietes deambulavam dezenas de pessoas. Era a biblioteca central. Toda a gente meditava sobre algo, os pensamentos surgiam como papoilas num campo em pousio após as primeiras chuvas de Março. E foi aí que a vi pela primeira vez. Ela e outros anjos deslocavam-se tranquilamente entre os mortais, acompanhando-os nos seus sonhos, medos e momentos de humanidade. Escutavam e liam os pensamentos, amparavam os doentes, davam esperança aos desesperados, tranquilizavam as crianças que se assustavam com o lobo que perseguia Alice, davam asas à imaginação dos leitores, registavam as estórias de um ancião cansado de ser o narrador da História dos Homens…
O russo fizera um trabalho de primeira qualidade. O aço frio da navalha eslava tinha dançado alegremente no meu corpo devidamente espancado pelo meu parceiro farmacêutico de esquina. Ninguém viu nada como sempre, embora o filme tenha passado na casa de banho do bar, atascado de gentalha e putedo como sempre. Mas cada um tem a sua vida e rotina, e eu era mais um verme a soldo que tinha saltado fora do anzol.
Enfermeira 1: Estamos a perdê-lo…
Médico: Fizemos tudo o que podíamos…
Cassiel, as tuas asas sopram serenidade e paz no meu rosto esfacelado. Os teus olhos azuis e profundos como o tempo infinito conduzem-me a novas paragens. Seguro a tua mão, e sinto na face o toque dos teus cabelos dourados e rebeldes, quais serpentes de Medusa domesticadas. As velhas gregas cegas cortam o fio que ainda me prendia a alma. Agora sou livre, e tu conduzes-me para fora deste mundo, calmo e decidido. Seguimos viagem. Em silêncio.
22 de Abril de 2005,
Dedicado a Kleine Cassiel, a enfermeira-voadora
Der Uberlende
Pisco os olhos com enorme dificuldade. Sou sacudido violentamente de um lado para outro pela equipa de urgências. Curioso… num momento destes só me consigo lembrar da minha velhota a olhar para a TV a ver o E.R. só pelo entretenimento, pois mal sabia ler e “a mania de só dar séries estrangeiras à hora que a gente quer descansar” (entenda-se, recuperar das tareias que o cabrão do marido lhe dava para despejar as frustrações de mais um dia a varrer ruas e a desentupir esgotos).
Num momento mágico reparo que tenho uma companhia ao meu lado. Era ela!
Enfermeira 1: Atenção aos sinais, estamos a perdê-lo!
Enfermeira 2: Doutor, rápido, a pulsação está a disparar!
Ela não se moveu. Olhava para mim e sorria, sorria calmamente, tão tranquila quanto aquela tarde no lago, tão grande como o céu que me cobria de azul anilado… Vinha agora à memória um filme que o meu primo me emprestou um mês antes de eu ter vendido o vídeo e o ouro da velhota. “As Asas do Desejo”, era esse o nome. O puto tinha adorado aquele filme, “uma obra divina” dizia ele… Só anui em ver porque ele garantiu-me que entrava o Nick Cave, a tocar num bar fumarento de Berlim Oriental. Não podia resistir…
A cena da Biblioteca ficou-me marcada para todo o sempre: Num enorme edifício sólido e cinzento como o regime dos Sovietes deambulavam dezenas de pessoas. Era a biblioteca central. Toda a gente meditava sobre algo, os pensamentos surgiam como papoilas num campo em pousio após as primeiras chuvas de Março. E foi aí que a vi pela primeira vez. Ela e outros anjos deslocavam-se tranquilamente entre os mortais, acompanhando-os nos seus sonhos, medos e momentos de humanidade. Escutavam e liam os pensamentos, amparavam os doentes, davam esperança aos desesperados, tranquilizavam as crianças que se assustavam com o lobo que perseguia Alice, davam asas à imaginação dos leitores, registavam as estórias de um ancião cansado de ser o narrador da História dos Homens…
O russo fizera um trabalho de primeira qualidade. O aço frio da navalha eslava tinha dançado alegremente no meu corpo devidamente espancado pelo meu parceiro farmacêutico de esquina. Ninguém viu nada como sempre, embora o filme tenha passado na casa de banho do bar, atascado de gentalha e putedo como sempre. Mas cada um tem a sua vida e rotina, e eu era mais um verme a soldo que tinha saltado fora do anzol.
Enfermeira 1: Estamos a perdê-lo…
Médico: Fizemos tudo o que podíamos…
Cassiel, as tuas asas sopram serenidade e paz no meu rosto esfacelado. Os teus olhos azuis e profundos como o tempo infinito conduzem-me a novas paragens. Seguro a tua mão, e sinto na face o toque dos teus cabelos dourados e rebeldes, quais serpentes de Medusa domesticadas. As velhas gregas cegas cortam o fio que ainda me prendia a alma. Agora sou livre, e tu conduzes-me para fora deste mundo, calmo e decidido. Seguimos viagem. Em silêncio.
22 de Abril de 2005,
Dedicado a Kleine Cassiel, a enfermeira-voadora
Der Uberlende
6 Comments:
Como ja te disse, gosto muito deste final... Tranquilo, pacifico. Fico contente por ele ter perdido o medo de morrer, por ficar finalmente em paz. Tarefa dificil, no entanto, essa de ser anjo aqui na Terra.
By smallworld, at 10:42 AM
Estou sem palavras. Adorei. Transformaste um final triste num final feliz. Mágico. ***
By rita, at 11:58 AM
"As velhas gregas cegas cortam o fio que ainda me prendia a alma. Agora sou livre.."
:)
hoje nao foi um bom dia, nao sei bem como expressar a minha opiniao sobre o teu texto, muito menos como comenta-lo, mas deixou-me um cheiro a paz e um sabor doce na boca :) gostei*
By Perséfone, at 11:18 PM
Bem tenho que me reunir com os outros bloggers e começar a formar um clube de Fãs :)
Ainda não consegui perceber muito bem quem é Cassiel? penso que já a referiste num outro texto! algum arcanjo? personagem mítica?
Não esperava por este fim, esperava por algo mais triste mas não, de facto até sorri e acho que acabou bem.
Sim de facto não são personagens estereotipadas, sinto-as reais, verdadeiras, como se as tivesse a ver à frente.
beijinho
By Eduarda Sousa, at 2:16 PM
ps- não paras de me surpreender e ensinar...
By Eduarda Sousa, at 2:17 PM
Kleine Cassiel
http://www.blogger.com/profile/8563890
;)
Beitchicos
By Der Überlebende, at 12:08 AM
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