Luz e Sombra

Sunday, October 30, 2005

DP2 - Extensão do prazo...

... se houver massa crítica suficiente a querer responder!

Quanta gente ainda quer participar?
Vá, respondam lá....

Caso se justifique, fica alargado o prazo de resposta ao DP2 - Cristais até dia 17 de Novembro, 2ªf.


... agora toca a escrever!

Der Uber

DP2 - Cristal, by Stela

A Angela tinha os olhos castanhos escuros, fazendo com que mal se distinguisse a pupila da íris do olho. Entrou pela primeira vez na loja num sábado à tarde particularmente chuvoso, em que a maior parte das pessoas preferira ficar em casa. O Outono tinha feito recentemente a sua chegada inevitável. O Sol, que brilhara tão arrogantemente todo o Verão, incendiando aqui e ali matas inteiras, parecia agora tímido e arrependido, de tão débil que era a sua luz. Quando a campainha da porta soou, mestre Fausto não ergueu a cabeça do que estava a fazer. Acabara de receber uma encomenda particularmente importante, e afadigava-se a desempacotá-la para a examinar convenientemente. Ouviu a porta fechar, e passinhos miúdos. «Se precisar de alguma coisa, espere só 5 minutinhos, está bem?», disse, sem erguer os olhos. «Sim senhor, era para lhe perguntar se pode reparar o meu cisne…» Fausto olhou em frente, mas não viu ninguém em toda a loja. De repente apercebeu-se de que a voz miudinha vinha de trás do balcão onde estava a trabalhar. Ali, muito composta, estava a menina mais pequena que Fausto alguma vez vira. «Cisne? Mostra-me lá…», disse com um sorriso. Angela retirou do bolso um embrulho castanho. «Mas não diga nada à minha mãe», disse num sussurro, «é que… parti-o…» e os dois olhos castanhos como bolotas desviaram-se para o chão, procurando esconder a vergonha de ter feito tal coisa.
As mãos experientes do mestre Fausto abriram o embrulho e admiraram o pequeno cisne de cristal, decapitado. Os dois pedaços em que se partira complementavam-se perfeitamente, era apenas necessário aplicar uma cola especial com muito cuidado e o cisne ficaria como novo. Angela olhava-o agora com olhos suplicantes. «Não te preocupes, isto é um instante! A tua mãe nem vai perceber!», disse-lhe, tranquilizante. Virou costas ao balcão e dirigiu-se à sala das traseiras da loja, onde tinha o seu arsenal de utensílios para melhor cuidar, avaliar, restaurar todas as figuras de cristal que lhe vinham parar à mão. Colocou o cisne partido debaixo da lupa para poder aplicar cuidadosamente a cola. Reparou que Angela o tinha seguido. «Entao? Receosa?... Olha que pior do que está não fica de certeza…» disse-lhe Fausto rindo. «Não… é que é uma coisa tão frágil e tão bonita… Parecia-me que se iria partir em trinta mil bocadinhos… Mas afinal foi só em dois.», disse Angela, parecendo recordar o susto que apanhara quando vira o pequeno cisne voar para o chão. «Ah, não te preocupes… Este cristal é de uma excelente qualidade, por isso não se estilhaça assim tão facilmente. Além disso, sabes que o cisne é uma das formas que o deus grego Zeus pode assumir? Portanto, já vês, não era assim qualquer coisinha que o deitaria abaixo!», reconfortou-a Fausto.
Angela sorriu e olhou em volta. Abrindo os olhos e a boca de espanto, disse «Uau!», quando viu a magnifica colecção de Fausto, normalmente afastada dos olhos dos clientes. Cirandou pela oficina, e às tantas os seus olhos pareceram fixar-se numa figura em especial, com umas asas do cristal mais transparente que vira. «Que animal é aquele atrás deste elefante?», perguntou. «Parece que brilha de forma diferente…». A voz de Fausto soou repentinamente ríspida. «Menina, já tenho aqui o cisne pronto. Acho que é altura de o devolveres à tua mãe.» Angela anuiu com a cabeça, um pouco amedrontada, e voltou à parte pública da loja. «Quanto lhe devo?», inquiriu numa vozinha ainda mais tímida. «Nada, não te preocupes, é por conta da casa» disse Fausto, sorrindo novamente. Disseram adeus, e Angela saiu para o frio mais uma vez.

A segunda vez que Angela entrou na loja foi 7 anos mais tarde. O calor de Agosto fazia da loja mais uma vez um local protector, fresco por causa da penumbra onde os cristais brilhavam. Fausto não reconheceu a jovem de t-shirt de alças preta e calças de ganga senão pelo boneco de cristal que lhe trazia – o cisne, outra vez quebrado. «Finalmente, a cola que lhe pôs há anos cedeu… Desta vez a culpa não foi minha, foi do meu irmãozinho… É tão traquinas como eu era!», disse Angela a rir. Fausto riu-se também calorosamente, e olhou pela segunda vez para aquele cisne torturado por crianças brincalhonas. «Desta vez vai ser mais difícil… A sua mãe devia guardar isto noutro sítio, senão da próxima vez não há mestre Fausto que lhe valha…». E deslocou-se para a oficina. Angela seguiu-o, como fizera 7 anos antes. «Já me tinha esquecido… Tem aqui um verdadeiro tesouro, mestre Fausto», disse. «Aposto que estas prateleiras guardam segredos do arco da velha!». Mas Fausto não respondeu, ocupado com a reparação do velho cisne. «É curioso…», disse Angela poucos momentos depois. «O meu avô também tinha uma paixão enorme por cristais. Talvez o conheça. Victor de Chambourcy?».
Fausto ficou estático. «Sim, conheço», respondeu de forma seca. Angela continuou a falar. «O meu avo falou-me de um cristal especial… pensei que o mestre seria a melhor pessoa para me dizer se tal cristal existe de facto ou não. Aparentemente, o meu avô acreditava que o cristal estava amaldiçoado. A Aqueronte?...», inquiriu.
«Duvido que Victor de Chambourcy falasse desse cristal a seja quem for… muito menos à sua neta. O Conde era um homem extremamente zeloso para com a sua família, e esse cristal de que me fala é tudo menos um objecto seguro. Por isso lhe digo que é melhor ir-se embora e não me procurar mais!», afirmou Fausto, olhando com suspeita para Angela. Mas desta vez a rapariga não arredou pé. De mãos nos bolsos e olhar provocador, disse: «Oh, o avozinho falou, sim. Não havia nada que ele não me dissesse. Quanto ao zelo familiar do meu avô, eu se fosse a si, não tinha tanta certeza…» Aproximou-se de Fausto, olhando-o directamente. «Onde está o cristal?», perguntou.
«O que é que aconteceu ao Conde?! O que é que fizeste ao Conde? Ele nunca iria mencionar a Aqueronte, se não fosse ameaçado…», balbuciou o mestre, mãos suando, com o cisne ainda entre elas. «Digamos que ele sofreu… », disse Angela, olhando para o cisne nas mãos trémulas de Fausto, «… um acidente. Ou dois».
Os olhos de Fausto luziram de compreensão, e o cisne caiu-lhe das mãos, estilhaçando-se de vez no chão da oficina. «Como?... Como?!», exclamou horrorizado. «Ninguém mais devia ter esse poder… Pensámos que estava tudo acabado, tudo!».
Angela riu-se, e por uns momentos podia ter voltado a ser uma simples rapariga de 14 anos. Mas quando olhou para Fausto, tinha olhos empedernidos, vazios de humanidade. «O primeiro erro foi o mesmo de sempre… A curiosidade. O meu querido avô quis continuar a investigar sobre estes cristais amaldiçoados e finalmente conseguiu descobrir os rituais que permitiam a captura de determinadas energias nos elementos do cristal. Daí a perceber como capturar a energia espiritual de alguém dentro de um cristal, foi um passo pequeno. Pena que na sua ânsia de descobrir se o processo funcionava, tenha usado a minha mãe como cobaia. Foi o seu segundo erro… Sim, ele disse que tinha sido um acidente… Não me leve a mal, ela não está mal como bailarina, mas continuo a achar que o meu avô faz um cisne de primeira!» Parecia agora ligeiramente aborrecida. «Vou repetir mais uma vez. Onde está a Aqueronte? Se não respondes rápido, podes substituir o meu querido avô nas brincadeiras do meu irmão… Ele tem mesmo mãos de manteiga!», disse ela, franzindo o sobrolho.b
Fausto fechou os olhos, anuindo. «Não fazia ideia… Assim seja… espero que te arrependas e te apercebas de que o poder destes cristais não é para ser usado no mundo de hoje.» Puxou do molho de chaves que trazia à cintura e abriu uma das gavetas de um armário alto de carvalho.
Tirou de lá de dentro um pequeno embrulho, e retirou o pano que o protegia. As asas da Aqueronte brilharam, mais uma vez livres. Evitando olhar o cristal de frente, estendeu-o a Angela, que o recebeu também baixando os olhos. «Bom, velhote, o nosso negócio termina aqui. Foi um prazer não te ter como bibelot…» Virou costas e ia a sair da oficina quando ouviu palavras familiares, embora para qualquer outra pessoa pudessem parecer apenas sussurros numa língua desconhecida. Encarou de novo o mestre Fausto e viu-o de joelhos, com uma mão em cima do pano de onde retirara a Aqueronte. Agora via claramente traçado no pano o selo usado para efectuar a captura de energias em cristal. Nos seus olhos um misto de medo e incredulidade, a última coisa que ouviu foi mestre Fausto a dizer «A curiosidade matou o gato…».
À frente de Fausto restava agora apenas o cristal, tilintando no chão. Rapidamente, cobriu-o com o pano antigo, e voltou a guardá-lo na mesma gaveta. Parecendo dez anos mais velho, Fausto arrastou as pernas cansadas até à porta da loja, e virou a tabuleta de forma a que se visse do lado de fora «Fechado». Por hoje era tudo…

Thursday, October 27, 2005

DT Outubro - Geração Popstar; por booklover

THE ORDINARY BOYS (Morrissey)
Ordinary boys, happy knowing nothing
happy being no one, but themselves
Ordinary girls, supermarket clothes
who think it's very clever to be cruel to you
for you were so different
you stood all alone
and you know
that it had to be so
avoiding ordinary boys
happy going nowhere, just around here
in their rattling cars
and ordinary girls
never seeing further
than the cold, small streets
that trap them
but you were so different
you had to say no
when those empty fools
tried to change you, and claim you
for the lair of their ordinary world
where they feel so lucky
so lucky, so lucky
with their lives laid out before them
they're so lucky, so lucky
so lucky, so lucky


Geração Popstar

Atenção texto extremamente subjectivo e opinativo que pode chocar alguém. Se és uma popstar não leias!!!


Ao longo do nosso percurso escolar deparamo-nos em todas as turmas com os clubes das “betas” ou “vip´s” ou como hoje lhes chamam (denominação impingida pelos “Moranguitos com Açúcar”) as “popstars”.
Estas agremiações mantêm sempre as mesmas linhas gerais de carácter, apenas o look varia com as tendências da moda.
Neste momento, uma Popstar apresenta-se ordinariamente com franja e cabelo esticado, argolas nas orelhas (a sua origem remonta aos brindes dos pacotes de Matutano), botas obrigatoriamente bicudas, bolsa do tamanho do telemóvel 3G, unhas pintadas e levemente compridas, óculos escuros gigantes e finalmente, pormenor indispensável, peito firme e bem arreganhado para cima (se o peito for pequeno usam-se pequenos truques).
Este é o look que está a dar, claro que as betas de uns anos atrás aparentavam estilos diferentes…
Aspectos psicológicos? Uma VIP, logo pela manhã, quando te apresentas a uma aula das 8:00 com os olhos inchados e vermelhos e o cabelo meio despenteado, olha-te com um ar de desprezo de cima abaixo para conseguir registar se o cinto que trouxeste ontem é o mesmo que trazes hoje, nenhum pormenor é deixado ao acaso… se as meias que calças-te ainda de olhos fechados não condizerem com o resto da roupa estás tramada! Na sala de aula juntam-se nas filas de trás para poderem cochichar à vontade sobre os outros. Por vezes traem-se umas às outras mas acabam por fazer as pazes. Os rapazes mais bonitos e abastados, plaboys da noite, (geralmente andam com os botões da camisa desapertados até meio da barriga) não lhes escapam, é-lhes feita marcação cerrada. Geralmente entendem-se: plaboy com popstar dá resultado! Os plaboys não falam com todas as raparigas da turma, só com as popstars e se estiveres ao lado delas, chegam ao cúmulo de as cumprimentarem e deixarem-te de fora. Intelectos tristemente vazios e fúteis. Um bacalhoeiro de Popstars identifica-se a longas distâncias, estão sempre às gargalhar forçadamente alto, com gritinhos e guinchos histéricos pelo meio. São tão felizes, tão felizes, tão felizes… Se te metes com elas estás fodida(o). Gozam de grande poder e estrelato na turma e num piscar de olhos conseguem pôr toda a gente contra ti. Conduta típica é organizarem saídas ao cinema ou festas de anos, bastante alto, para tu as ouvires a convidarem toda a gente menos tu, tomá lá para aprenderes: ou te comportas com um cão a fazer e pensar tudo o que elas querem ou arriscas-te a teres a tua própria personalidade e ficas sozinha(o).
Toda a gente já foi vitima destes grupinhos maquiavélicos mas as adolescentes de 13, 14, 15 anos… são quem mais sofrem. À procura do grupo de pares, com as caras em erupção borbulhosa, sentem-se diferentes e sofrem silenciosamente, porque se recusam a serem árvores de natal, enfeitadas com todos os quincarelhos inimagináveis, nem querem gozar com a rapariga ranhosa da turma porque sentem a injustiça, não querem ser cruéis, mas também querem ser aceites.

Texto dedicado à prima teen R., tímida, insegura e cheia de dúvidas…
Porque não és diferente de ninguém, apenas igual a ti própria…

Sunday, October 23, 2005

J.M.

Para mim J.M. era um louco, sempre disposto a provocar-me, a desafiar todos os meus limites, a testar a minha paciência e resistência, a exigir-me o conhecimento de coisas novas, a fazer guerrilhas intelectuais comigo, doido varrido, desejoso de sugar a vida até ao âmago da sua existência. Para ele o conhecimento era tudo, lia cerca de quatro horas diárias ou mais, espicaçava-me, não com a intenção de me inferiorizar mas de o acompanhar na aventura louca do conhecimento… Todos os livros que lia passavam para mim com resumos e questões, provocador inato gozava-me a moleza física. Ardia de vida, exalava folia, contagiava com um humor acutilante e sarcástico… Descuidado no aspecto, para ele os amigos eram tudo, mais os livros e o desporto. Zombava dos professores, a escola dizia-o - atrofiava-lhe a criatividade - a vida de que precisava estava cá fora, na natureza, nas pessoas, nos animais… Amante das horas vagas, do silêncio e da companhia. Embora não o desejasse era o centro das atenções em todos os círculos sociais, tinha o poder de magnetizar as pessoas com a sua graça, sabedoria e perícia. Um dia fartou-se da rotina, começou a sentir-se agrilhoado em todo o seu potencial, queria mais, muito mais da vida e não uma existência trivial e ordinária. Pegou na mochila e partiu rumo ao desconhecido.

Saturday, October 22, 2005

DT Outubro - Boleia; por Der Uberlende

Ora viva,

Aqui vai o meu contributo para o Desafio Temático de Outubro - egoísmo, ignorância, maldade.

boas escritas

Der Uber.



Boleia

De certeza que já vos aconteceu... irem a andar descansados da vossa vida e, subitamente, sentirem um enorme calafrio espinha abaixo. Sabem o que é? Eu também não sabia, ou melhor, julgava que sabia. Seria uma corrente de ar, uma gripezita a pegar, falta de sono, um pressentimento...
Um dia, há já vários anos atrás, descobri tudo, o que queria saber e o que desejava nunca ter conhecido.
Estávamos no primeiro ano da década de 80, num Portugal ignorante e desorientado que não sabia o que fazer com o bebé da democracia que agora lhe berrava aos ouvidos com fome. Eu já tinha experimentado de tudo quanto o PREC tinha para oferecer, desde a aventura fácil com as subalternas da repartição até às novas alternativas para inebriar a mente e confundir os sentidos. Sexo, drogas e rock & roll, yeah, era isso mesmo. Curtir os Stones, Genesis, Floyd, o Zeca e os cantares do Rancho folclórico de Arganil, isso é que era vida. Os russos tinham a sua olimpíada, onde passeavam o fervor soviete pelas pistas e estádios livres de americanos capitalistas. Nesse ano o mundo perderia o Sartre, o Vinícius, o Piaget, o Lennon e o Hitchcock. Nós por cá descobríamos uma nova receita de borrego assado quando o nosso então Primeiro Ministro caia das alturas sobre os céus de Camarate. Também morreria o Caetano, mas não seria a última vez que os Portugueses teriam que aturar um Marcelo com queda para falar na TV. Algures nos mares do sul nascia uma estranha nova nação chamada Vanuatu, e no Brasil nasciam dois monstros do princípio do Séc. XXI: o PT de Lulla da Silva e a Gisele Bündchen. Em Portugal haveria de nascer muita gente da qual eu nunca iria ouvir falar.

Era madrugada de dia 12 de Novembro, e a tenaz da ressaca ainda me recordava uma piela em nome de um general romano que supostamente cortou a capa em dois para abrigar um pedinte. Eram 6 horas da madrugada quando saia da casa de uns amigos lá para os lados de Sesimbra. Esperava-me uma viagem tranquila, umas curvitas para sair da vila e uma longa recta até chegar à ponte rebaptizada que era então a única a atravessar o Tejo dos lisboetas. A cabeça cambaleava e os olhos ameaçavam fechar. Piscava-os numa tentativa vã de comunicar em morse o que a boca já não tinha coragem de proferir: estou morto de sono. Tinha andado poucos quilómetros quando fui surpreendido por uma luz forte que me fez guinar o carro para a berma. Travei a fundo, ao mesmo tempo que o despertar violento da iminência de acidente me lembrava as palavras do filósofo. Eu era de facto mortal.

Recompus-me calmamente. Peguei no volante, dei um toque no acelerador e preparava-me para engatar a marcha quando senti um enorme calafrio e olhei pelo retrovisor. No banco de trás do meu carro, antes deserto, estava agora uma jovem magra e sorridente, tez morena e cabelo liso, que me pedia lume com a maior das tranquilidades.
- Quem é você??!?!? – disse eu num tom apavorado enquanto a garganta secava e me virava apavorado para trás.
- Sou a tua boleia. Deste-me cabo do carro agora levas-me para casa ! Dás-me lume?
- Mas como é que entrou no carro? Não me lembro de ter...-
- ... deixado ninguém entrar? Eu até me espanto que já estejas acordado, tal o bafo a pinga que vai para ai.-
- Mas o que foi que aconteceu afinal? E quem diabo és tu???-
- Sou a tua ‘pendura’, já te disse. Vinhas em contramão e fizeste-me sair da estrada. Bati com o carro num pinheiro e fiquei sem saber o que fazer. Até que reparei que estavas ainda aqui e decidi que me irias levar de volta à casa do meu namorado. Não quero ficar sozinha esta noite depois do que me fizeste.-
- Ok, ok, peço-te imensa desculpa.... mas estás bem? É preciso ir ao hospital ou...-
- Não, não vale a pena irmos para hospital nenhum. Anda lá, e vê lá se te despachas com o bendito lume!-
- Mas não preferes passar para o banco da frente?-
- Não, gosto que sejas o meu chauffer. Tens pinta de ‘marialva’ e não me apetece que te ponhas com tentativas de apalpanços.-
- Mas o que dizes tu? Não sabes nada...-
-... sobre ti? Ah, és tão transparente! Topa-se logo que és do tipo dado a brincadeiras, e por hoje já brincaste o suficiente. Agora guia, e tira-nos daqui.
- Pronto pá, também não é preciso pores-te com tretas e insultos. Mas não queres ir dar uma olhada no carro antes?-
- Não merda, anda lá com isso! E essa porra do isqueiro vem ou não?!?!?
- Calma, ‘tá aqui! Vamos lá então... Como te chamas?
- Maria.
- Simplesmente?
- Isso é alguma das tuas piadinhas? Não, Maria de Jesus.
- Meu Deus – disse com um sorriso idiota e inevitavelmente engatarão – Não sabia que levava aqui a Nossa Senhora! Hehe
Ela inclinou a cabeça para o lado, puxou profundamente por uma passa e libertou o fumo com lânguida lentidão. Olhou para os meus olhos no retrovisor e disse.
- Por acaso vês algum halo?
O mais surpreendente é que vi mesmo uma auréola verde bafienta a cobrir-lhe o alto da cabeça. Mas que bomba, aquela jeropiga....
- Então Maria, também vinhas da festa?
- Se podes chamar festa ao que faço, sim, vinha da festa.
- E o que fazes?
- Sou puta. Mas ‘tás com azar, já acabou a hora de expediente e fechou a loja.
- A sério?!? Isto é, ... desculpa, não queria ser intrometido, mas também não é preciso ‘tares a gozar com a minha cara. Não queres que faça mas conversa eu calo-me, mas respostas dessas dispenso.
- Não acreditas, hein?-
- É pá, deixa lá isso. Levo-te para casa e depois ligas-me amanhã a dizer a que oficina foi parar o teu carro.-
- O tipo não acredita, olha-me só... É uma profissão como qualquer outra. E tu, deves ser menino de escritório, todo ‘boneco’ de gravatinha, a andar a papar dactilógrafas na casa de banho da repartição... És tão puta como eu, só não cobras dinheiro, antes queres fazeres uns favorezitos a promover as tipas do que aceitares uma milena pelos teus serviços de boi de cobertura.-
- Oi, calminha ai com a conversa. Tu não me conheces de lado nenhum!
- Não? Tens a certeza?-
- Que queres dizer com isso???-
- A minha cara não te é familiar?-
- Ah?-
- Olha lá bem! –
Travei a fundo. Aquela brincadeira estava a ir longe de mais! Mas o que vinha a ser aquilo, uma gaja marada enfiou-se à socapa no meu carro enquanto eu recuperava do susto do quase-acidente e agora punha-se com merdas de me conhecer?!?... Virei-me para trás para lhe dizer das boas
- Ouve lá ó cabr...-
Desapareceu! Sem eu conseguir perceber o que acontecera, ela já não estava lá! Desapertei o cinto e enfiei-me entre os bancos para poder ver melhor. Esfumou-se. Teria sido tudo um sonho? Bem, a pinga estava boa e a noite ia longa. Coisas estranhas acontecem nas nossas cabeças. Volto para o meu posto de condutor e preparo-me para seguir viagem.
Mas está tudo calmo de mais. Não se ouve nada. Nem o barulho do vento a sussurrar na folhagem dos pinheiros. Nada. O meu estômago embrulha-se e a boca encortiça. Os olhos abrem-se desmedidamente e as palmas das mãos suam. De repente viro-me para a direita, e vejo-a sentada ao meu lado, no ‘lugar do morto’. Esta absolutamente estática. Congelam-me as veias e empalideço de horror. Estendo a mão para lhe tocar no ombro, mas a pele antes morena era agora cinzenta-esverdeada, encarquilhada e coberta de muco. Sem saber o que fazer, toco-lhe no ombro sinto-a fria como pedra. Retrai-o a mão bruscamente e grito. Lentamente, ela vira-se para mim, rodando o pescoço numa sequência de gemidos silenciosos e estalidos secos.
- E agora, já me reconheces? –
Onde antes estavam olhos viam-se cavados buracos que emitiam uma luminosidade verde e demoníaca. Os meus intestinos cederam, e desfiz-me ali mesmo num frémito de pânico e terror.
- O que és?! O que queres de mim!??! –
- Não te preocupaste com isso enquanto me fodias na casa de banho. Nem te ralaste quando o meu namorado entrou e me viu de perna aberta a levar contigo. Levantaste as calças e desapareceste como se não fosse nada contigo. Ele levou-me dali calmamente e meteu-me no carro. E ali naquele ponto da estrada onde me apanhaste, levou-me para a mata e espancou-me até à morte.
- Mas o que dizes tu? Isso é mentira, eu... -
- CALA-TE! Hoje é dia de pagares. Hoje é o dia da puta receber o que deve!
Desmaiei. Não sei o que se passou a seguir.

Quando acordei estava sozinho numa cama. Tentei mexer-me mas não consegui. Chamei por ajuda e lá apareceu uma enfermeira.
- Onde estou, onde estou eu?!!?? –
- Ora viva! Que bela surpresa!
- Que surpresa?-
- O Sr. finalmente acordou! Sabe quanto tempo se passou?-
- Tempo? De que fala a Sr.ª... o que é que me está a dizer!??!-
- Há uns 20 anos atrás foi dado como morto num acidente de automóvel. Aparentemente despistou-se sozinho quando vinha de uma festa ou lá o que era –
- Mas isso foi ontem! ‘Tá a gozar com a minha cara!??-
- Não, não estou. FNão morreu mas entrou em coma. Infelizmente, sabemos que o acidente o deixou tetraplégico.
- Como assim?? Onde está a minha mulher?-
- O Sr. não tem família conhecida. Aliás, já não há propriamente amigos a aparecerem aos domingos para o ver. Sabe, é o drama dos comas prolongados... é uma tristeza. Agora tenho que sair, mas volto já.-
- Srª enfermeira, não se vá embora, por favor! –
- Tenho que ir avisar os médicos que acordou. Mas se precisar de alguma coisa chame por mim –
- Como se chama? –
- Maria. Simplesmente Maria. -


22 de Outubro de 2005-10-22
Der Überlende

Friday, October 21, 2005

DT Outubro - Egoísmo: Equilíbrio; por Vera Fonseca

Equilíbrio

É infindável o abismo
Que se expande entre nós.
Tão perto, mas tão longe...
Não ouço a tua voz,
Não a quero ouvir,
Quero sorrir, fugir da tua maldade,
Mostrar a tua ignorância,
Evidenciar o teu egoísmo,
Quebrar este paralelismo,
Antagónico,
Que é o teu ser e o meu...

Pensas que és tu que vives,
Que és tu que sabes,
Por mostrares viver,
E dizeres saber,
Mas ignoras,
A evidência para além do evidente...

Tu não vives,
Não deixas viver,
Aprisionas o teu ser,
Num remoinho rotineiro
De prazer.

Dizes saber,
Ser experiente e culto,
Mas o que sabes?
Que sabes tu do que é importante?
Que sabes da vida?
Do ser, do sofrer,
Do mundo e do seu sentido?
Da virtude e do altruísmo,
Daquilo que nos faz viver,
Ou morrer?
Não sabes, nem um pouco,
Porque nunca tiveste de saber...

Eu talvez não saiba,
Não Tudo...

Seria talvez irónico
Poder afirmar isto,
Mas tu, qual ser real
Ou platónico,
Ensinas-me a perceber...

No teu mundo,
És só tu,
Enrolado na tua ignorância,
Afirmas viver e aprender.

No meu, porém,
Existe sempre alguém,
Que com bondade,
Me demonstra a sua maldade,
E reduz a minha ignorância,
Fazendo de mim alguém melhor.

O Universo é polarizado,
Tudo o que é mau é também bom,
E equilibrado...

Na minha calma,
Por vezes hiatos de euforia
Recordam-me quem sou,
São o meu guia.

Perfeita Utopia...
O egoísmo de alguém tornar-me altruísta,
A sua maldade ensinar-me a bondade,
E a sua ignorância...
... Mostrar-me o caminho para a iluminação.

Vera

Monday, October 17, 2005

Food for Thought - Excerto de Rilke, selecção de sweetserenity

“Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-me a mim. Já perguntou a outros. Enviou-os a revistas. Comparou-os com outros poemas, e sente-se incomodado quando alguns editores rejeitam o seu esforço. Ora, (uma vez que me permite o conselho) peço-lhe que desista de tudo isso. Está a olhar à sua volta e acima de tudo não o deve fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo ou ajudá-lo, ninguém. Existe apenas um único caminho. Olhe para dentro de si. Procure a razão que o impele a escrever; descubra se essas raízes estão profundamente implantadas no mais recôndito do seu coração, pergunte-se a si próprio se morreria caso fosse impedido de escrever. Isto, acima de tudo – questione-se no silêncio mais profundo da noite: tenho que escrever? Procure a resposta no mais profundo do seu ser. E caso esta seja afirmativa, se responder a esta simples pergunta com um forte e decidido – Sim, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade; a sua vida, mesmo nas suas horas mais insignificantes e ligeiras deve ser um sinal desta necessidade e um testemunho dela própria. Então comungue com a Natureza. Depois tente, tal como o primeiro ser humano, dizer o que vê e sente e ama e perde. Não escreva poemas de amor: evite de início aquelas formas demasiado fáceis e os lugares comuns; são os mais difíceis, pois exigem um poder enorme e completamente maduro para dar algo de si, quando a boa ou até mesmo excelente tradição nos ocorre em quantidade. Assim, poupe-se a esses temas gerais e procure aqueles que a vida do dia a dia lhe oferece: descreva os seus desgostos e desejos, os pensamentos que lhe ocorrem e as suas crenças nalgum tipo de beleza – descreva tudo isto com ternura e humilde sinceridade e utilize para se expressar as coisas que o rodeiam, as imagens dos seis sonhos e os objectos da sua memória. Se a sua vida lhe parece pobre não a culpe; culpe-se a si próprio, convença-se de que não é poeta o suficiente para perceber as suas riquezas, pois para o criador não existe pobreza nem lugares pobres e indiferentes. E, mesmo que encontrasse nalguma prisão, cujas paredes impedissem que qualquer som do mundo chegasse ais seus sentidos - não teria então ainda a sua infância, esse precioso e real bem, essa caixa de tesouro das memórias? Volte a sua atenção para ela. Tente extrair as sensações adormecidas desse amplo passado; a sua personalidade crescerá mais firme, a sua solidão diminuirá e tornar-se-à um passado turvo que o som dos outros que passam não poderá perturbar. E, se deste regresso a si próprio, desta absorção no seu próprio mundo, os versos nascerem, então não lhe ocorrerá perguntar aos outros se são bons versos. Nem tentará despertar o interesse de uma qualquer revista para os seus poemas: pois reconhecerá neles o seu poder natural, um fragmento e uma voz da sua vida. Uma obra de arte é boa se nascei da necessidade. Nesta natureza da sua origem se baseia o seu julgamento: não existe qualquer outro. Portanto, meu caro senhor, não sei que conselho lhe posso dar a não ser este: mergulhe em si próprio e reste as profundezas onde a sua vida encontra as suas raízes; e na sua fonte encontrará a resposta à pergunta se tem de criar. Aceite-a tal como é, sem se questionar. Talvez sinta o chamamento do artista. Então, aceite o destino que lhe está reservado e carregue-o, no seu fardo e na sua grandeza, sem nunca perguntar que recompensas poderão vir do exterior. Para o criador tem de existir um mundo próprio e descobrir tudo em si próprio e na Natureza à qual se ligou.
Mas talvez após esta descida ao seu eu e à sua solidão interior tenha de desistir de ser poeta; (é suficiente, como já disse, sentir que poderia viver sem escrever; então não deve mesmo tentar). Mas mesmo assim esta procura interior que lhe peço não terá sido em vão. A sua vida encontrará o seu próprio rumo a partir daqui e que seja boa, rica e longa é o que eu lhe desejo mais do que posso dizer.”

Rainer Maria Rilke, in “Cartas a um Jovem Poeta” (excerto da primeira carta)

Sunday, October 16, 2005

and now for something completely different...

Ora viva

Quem é que me explica como é que se faz para colocar temas de mp3 disponíveis para escuta aqui no blog, via windows media player ou similar?...

já que isto tá dificil para escrever pode ser que vos vá dando música! :)

blessed be

Der Uber

Friday, October 14, 2005

O Luz e Sombra estará a morrer?

Sunday, October 09, 2005

DP2 - Cristal; por PiP

E eis que surge a primeira resposta à 3ª edição do Desafio Parte 2 (DP2)
Srs e Sras, deixo-vos com a PiP

desejos de uma óptima semana,

Der U.



Cristal - Parte II

Ângela chegara à aldeia no Verão anterior, a pé, vestida singela e pobremente com uma única sacola a tiracolo. De onde vinha, nunca ninguém soube nem ninguém perguntou, ou, se o fez, não se sabia a resposta. Apareceu na aldeia num dia de feira e foi logo aí que começou a falar com as pessoas da terra. Fez perguntas, ouviu histórias, acalmou crianças impacientes que berravam pelas mães, e ofereceu ajuda a quem parecia precisar. Esta era uma novidade na aldeia. Muito raramente apareciam forasteiros e esta rapariga, de idade indefinida, esperta e viva, que apareceu sozinha, era motivo para especial curiosidade. Muito se falou, mas as perguntas directas foram evitadas e as suas ajudas sempre prontas, bem recebidas.
Ninguém sabia onde Ângela passava a noite, mas com o passar do tempo, a população foi-se habituando a vê-la na rua, logo de manhã, sempre com um sorriso simpático, ainda que algo misterioso. Ângela passava ao dia a prestar os seus serviços a quem lhe desse comida em troca do seu trabalho, e cedo se descobriu que aquela rapariga era uma excelente contadora de histórias. Nos dias de festa do fim do Verão, lá estava ela, ao entardecer, rodeada de crianças, velhos e adultos, a contar mais uma história maravilhosa, no largo da aldeia.
Com a chegada das primeiras chuvas algumas pessoas pensaram se não poderiam dar abrigo àquela desconhecida que já era como se ali tivesse nascido. A partir daí, Ângela teve sempre um pequeno quarto à sua espera, na casa de uma das famílias as aldeia. Mas nem todas as noites lá dormia.

Num destes primeiros dias de Novembro, numa manhã em que não chovia, Ângela foi bater à porta do Mestre Fausto. Já tinha ouvido algumas histórias sobre este homem na aldeia, mas nunca tinha trocado nenhuma palavra com o velho. Seria por isso estranho que o fosse visitar, mas ninguém por ali estava naquela manhã, para se questionar.
O Mestre abriu a porta e desta vez usava o seu rosto de esfinge, talvez tocado pelas dores de ossos que esta altura do ano traz aos mais velhos. No entanto, não escondeu uma expressão de surpresa ao ver Ângela, mas chegou-se para trás para a deixar entrar.
Ângela entrou rapidamente e lançou um olhar rápido à sala escura. As paredes cobertas de prateleiras cheias de relíquias inesperadas e algumas muito curvadas, sob o peso de centenas de livros. Depois do rápido reconhecimento da sala, que não era tão pequena quanto isso, mas cheia de coisas, tomou a liberdade de se sentar num banco de madeira baixo, que estava encostado à parede, sob uma janela.

De início nenhum dos dois falou e nem sequer parecia necessário, ou lógico, dizer alguma coisa. Por fim, Ângela rompeu o silêncio:
- Mestre Fausto, eu sou a Ângela. Fale-me, por favor, da sua colecção de bonecos de cristal.
O velho Mestre teria achado a frase impertinente, se tivesse vindo de outra pessoa qualquer. Mas, estranhamente, sentiu-se bem perante a visão de falar dos seus cristais àquela criatura estranha e inocente, mas que parecia tão segura de si. Já sabia o pouco que havia a saber sobre ela, pelas poucas pessoas com quem falava e que geralmente o punham ao corrente das novidades da vida da pequena aldeia.
- Muito bem, - disse, sentando-se numa cadeira de pau, no centro da sala – traz-me esse cavalo da prateleira ao teu lado.
E assim começou uma série de conversas entre Ângela e o sábio Mestre, qual deles melhor contador de histórias fantásticas, reais ou mais fantasiosas. Ângela passou a ir visitar o Mestre Fausto quando podia e passavam grandes serões os dois, ele a falar, ela a aprender e a questionar, com os olhos a brilhar como os bonecos de cristal à luz das velas.

Passaram-se dias semanas assim, cheias das histórias das figuras de vidro, algumas mais complexas e misteriosas que outras. Percorreram as prateleiras de relíquias, uma a uma, mas houve uma que permaneceu intocada, até uma noite em que Ângela fez a pergunta:
- Mestre, pode falar-me do Tigre e do Grifo Assírio?
- Quem é que te falou deles? O que é que tu sabes?
- Então sou eu que lhe vou agora contar a minha história. O meu pai e a minha mãe eram de uma terra não muito longe daqui. Mas não eram pessoas de ficar a viver ali para sempre, queriam sair e conhecer o mundo. Acabaram por ir para a Índia... Foi lá que o meu pai fez o melhor amigo da sua vida, O senhor Jean. Apesar do nome, ele vivia na Índia desde criança e tinha uma colecção de animais de cristal verdadeiramente admirável. A maioria, ou mesmo todos, eram figurinhas vulgares de elefantes, cavalos... Mas entre eles havia um cristal especial. Chamava-se simplesmente Tigre era efectivamente uma figura de um tigre, mas mais perfeita do que o humanamente possível. Segundo Jean, aquela peça teria pertencido a um inglês, mas nunca soube como é que ele a tinha conseguido.
«O meu pai adorava aquele Tigre, mas sempre teve dificuldade em acreditar nos seus poderes, os quais o Mestre deve conhecer. Evitava olhar demoradamente para a figura só por respeito ao amigo que acreditava no mito. Mas um dia o meu pai ficou sozinho na sala de Jean, com toda a colecção à sua frente. Por mais que quisesse, não conseguia desviar os olhos do Tigre e, afinal, aqueles poderes deviam ser apenas dizeres populares. Quando Jean chegou, já o meu pai estava no chão , em transe, todo transpirado e ofegante. Depois disto nunca o meu pai foi o mesmo e acabou por pôr termo à sua vida, depois de pedir desculpa a minha mãe.»
«Eu nasci na Índia, poucos anos antes disto acontecer. Pouco me lembro, mas a minha mãe conto-me a história. Quando comecei a questionar-me mais a sério, procurei Jean. Estava velho, muito mais velho do que o meu pai seria se vivesse. Não queria contar-me nada, mas acabei por saber que o Tigre já não fazia parte da sua colecção. Também soube que agora possuía uma peça, o Grifo Assírio, com estranhos poderes.»
«Comecei a investigar o desaparecimento do Tigre e acabei aqui, agora.»

Mestre Fausto levantou-se, muito sério, e foi até à prateleira que faltava explorar. Tirou de lá uma figura maravilhosa de um tigre e entregou-a a Ângela. Tão leve e fino que era aquele cristal! E o seu brilho! Mas Ângela levantou a cabeça para o Mestre, logo que este começou a falar.
- A verdade é que o Grifo Assírio não desapareceu há muito tempo, ao contrário do que se pensa. O Conde de Chambourcy deu-mo também juntamente com a Aqueronte. – e apontou para uma grande traça, com uma caveira gravado no dorso, na prateleira do Tigre. – Acontece que o Grifo e a Aqueronte são poderosos só por si, mas quando juntos tornam-se ainda mais destrutivos. Por outro lado, levam à tortura mais profunda quem tente destruir qualquer um deles. A única solução que encontrei foi separá-los, e a maneira mais segura de garantir que não iam parar a mãos que não deviam, era confiar uma deles à alguém que conhecesse bem o seu poder.

«Quando fui à Índia, ouvi por mero acaso, a história que agora concluo ser a do teu pai. Quando a ouvi fiquei logo interessado em conhecer a pessoa que possuía tal cristal, embora ainda tenha pensado que não devia ser alguém muito cuidadoso, para ter deixado acontecer aquilo. Conheci Jean e mudei de ideias a história do amigo estava marcada em cada expressão sua e o peso da responsabilidade e da culpa vergava-o. Ofereci-lhe o Grifo mas quis aceitar. A responsabilidade por um poder daqueles era já monstruosa. Não queria mais. No entanto, odiava aquele Tigre e começou a ter uma ideia. Acabou por propor uma troca e foi isso que fizemos.»

«Como vês, a pose do poder não compensa a responsabilidade que se tem, para se impedir que aconteçam catástrofes.»
Ângela acenou, sem expressão, rodando o Tigre nas mãos e sem olhar para ele, até que o ancião lho retirou cuidadosamente e o colocou na prateleira mais alta, bem lá atrás, escondido pelos brilhos inofensivos do ganso, do lobo e da borboleta.


7 de Outubro de 2005,

PiP

Friday, October 07, 2005

"Terrores Antigos", por Janary

Aqui vai mais uma contribuição poética para o Luz e Sombra e desta vez directamente do outro lado do Atlântico (Brasil) :)

Além da barreira dos sonhos
Vejo névoas sublimes, pesadas,
De horrores obscuros,
Que nos fogem aos olhos
E com altivez descomunal,
O inominável eleva nossos
Temores ao ápice,
Os instalando cada vez mais forte,
Enraizado na mente humana,
E de nossas almas pútridas
Exalam sonhos de conquista,
Mais reais que a própria verdade,
Deixando os ainda não despertos
De mundos antigos e imemoráveis,
Presos por barreiras invisíveis,
Sufocantes e aterradoras
Com lágrimas no escuro,
A insanidade paira no ar,
Após a descoberta, de que,
Não somos nós que definimos
nossos medos...
...O medo é que nos define!

por Janary

Monday, October 03, 2005

Luz e Sombra

Ora viva

aqui vai o contributo da nossa "vizinha do lado", a Perséfone ;)

um belo e saboroso Outono para todos

Der Uberrrrr.



Às vezes
Apetece-me riscar as palavras
E rasgar as páginas
Do livro da vida
Que todos os dias escrevo
Sobre o joelho
Num esforço sobrehumano
Para que saia direito.
Tenho desgosto em não ter
Uma letra bonita
E não saber
quando fazer
ponto final. paragrafo.
Baloiço nas linhas e
nas curvas sombrias.
Faço silêncio ao fim do dia.
Mais um dia que se acaba,
Mais uma folha manchada
que se vira.
É sempre assim,
Neste eixo, neste ritmo
que a minha vida gira.


 

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