Luz e Sombra

Tuesday, June 28, 2005

“A oeste nada de novo” por Erich Maria Remarque

Vou eu com o desígnio de comprar determinado livro no alfarrabista cá de Braga e já sei que venho com uma saca cheia deles, quase todos por 1€, como foi o caso.

Não conhecia Remarque e o que me motivou a ler foi um simples pormenor: o de Hitler ter mandado queimar todos os exemplares de “a oeste nada de novo” quando chegou ao poder.

Percebe-se porquê logo no início, “É cómico como os males do mundo vêm tão frequentemente de pessoas pequenas. São muito mais enérgicas e insuportáveis que as pessoas altas. Sempre procurei não fazer parte de destacamentos comandados por chefes de pequena estatura; são uns patifes a maior parte das vezes.”

Paul Baumer é um jovem de 18 anos que é alistado, juntamente com os seus amigos, na infantaria do exército alemão durante a primeira guerra mundial. Rapidamente descobrem os horrores, o sangue, a carnificina, a dor, o desespero, a fome, a miséria, a morte… da batalha. Paul vê os companheiros desaparecerem um a um, conhece a amargura e desespero dos hospitais de guerra que tornam os soldados inaptos e aleijados para toda a vida. Mas mais terrível que isto será mesmo as cicatrizes psicológicas e espirituais, a loucura, a alienação e a insanidade (“Houve mesmo um que tentou cavar, continuamente, o solo com as mãos, os pés e a boca, para lá se enterrar.”) que a guerra acarreta aos jovens guerreiros. Paul vê-se subitamente num combate que nem ele mesmo compreende (“Vejo que os povos são atirados uns contra os outros e se matam sem nada dizerem, sem nada saberem, loucamente, docilmente, inocentemente.”)

“A oeste nada de novo” não é um clássico de guerra mas sim um clássico de anti-guerra.

“… reconhecemos que não é o espírito que deve preponderar, mas sim a escova do calçado, que não é o pensamento, mas o «sistema», que não é a liberdade, mas a domesticação.”
Como seria possível sobreviver nestas condições?

Friday, June 24, 2005

Anos da Luz by Dasha

Mais um contributo da nossa querida Dasha, aqui vai, desta vez um poema

Anos da luz...
Sem dormir, sem cantar, sem amar
Baixo capuz
E sussuro sem som: és capaz...

Sol a morrer
Muitos anos perdendo a cor
Podes viver
Mas não crias a luz, só a dor...

Sopro da luz
Esperei muitos anos por ti
Eras a cruz
Mas contigo amar aprendi

Eras o som
Das passadas no velho jardim
Eras o dom
Que sem ter encontrado, perdi...

"Animal Farm" by George Orwell

Li "Animal Farm" em inglês. A razão foi muito simples: aumentar o vocabulário e domínio da língua inglesa para o exame que estava a chegar (correu bem!). Infelizmente tenho muito o hábito de só ler livros em português e todos sabemos o quanto se pode perder nas traduções!

No início estava a ler "Animal Farm" como uma simples fábula, sem saber muito sobre o seu verdadeiro significado. Após as primeiras 20 páginas sabia-me a pouco! Queria tirar muito mais do livro do que o que estava a obter, espremê-lo até ao tutano. Comecei a fazer pesquisas na internet, a examinar toda a simbologia das personagens, e foi então que todo um admirável mundo novo se abriu para mim.

"Animal Farm" é a história do Estalinismo e da Revolução Russa. Orwell, numa alegoria, utiliza os animais para representar pessoas iminentes da Rússia 1917/1939. Vejamos alguns exemplos,

Mr. Jones, dono da “Manor Farm” representa Czar Nicholas II, ambos perdem o controlo do que administram, Mr Jones é expulso da “Manor Farm” numa alegoria a Czar que perde o domínio da Rússia;

Ironicamente, “livres e iguais” os animais procuram um líder;

Os porcos são os mais brilhantes e trava-se uma disputa entre Snowball (Trotsky) e Napoleon (Stalin);

Napoleon (Stalin) luta com Snowball (Trotsky) e acaba por expulsá-lo da Manor Farm;

Alguns animais:

Squealer – porco que transmite as decisões de Napoleon e com persuasão convence todos os outros animais que Napoleon está certo! Simboliza a máquina de propaganda de Stalin

Boxer – Cavalo que nunca duvida ou põe em causa as ordens e decisões de Napoleon, para ele Napoleon tem sempre razão e o seu lema é “ I´ll work harder”. Representa os proletariados, mais fáceis de convencer, sem grandes capacidades intelectuais...

(...)

E muita mais simbologia impregna todo o livro. Temos até a Igreja representada pelo Corvo... Isto foi só um cheirinho!

No final, os porcos tornam-se indistinguíveis dos humanos e o sistema que volta a vigorar é o totalitarismo.

O poder corrompe qualquer um, não somos de confiança, os mais fortes explorarão sempre os mais fracos acabando com todos os seus sonhos...

Este livro marcou-me profundamente!

Wednesday, June 22, 2005

DBI - Regras; por Dasha

Ora viva,

Entra em cena a Dasha!
Aqui vai a resposta dela ao DBI

... e só falta uma semana p encerrar o prazo de todos os prazos...

boas escritas,

D.U.



-As regras é que não há regras, percebes?- Fernanda estava ficar impaciente, tentando explicar a ideia – Entramos, escolhemos o alvo e avançamos!

Estavam sentadas no carro, no estacionamento do centro comercial a discutir já há algum tempo. Estava ficar muito tarde ao ponto de últimos visitantes de cinemas já terem saído. Quase não restavam carros no estacionamento.

-Então e depois? – perguntou a Paula. Depois do turno de dia e três horas do sono sentia se incapaz em alinhar no que quer que fosse.

-Depois nada! Depois vamos embora, importa é o processo, não o final! – Fernanda sorriu e engatou a marcha atrás

-Ok...- num tom indeciso concordou a Paula. Não queria discutir, nem tinha alternativas a propor. Sabia que não queria ficar em casa sozinha, sabia que não conseguia dormir, por mais cansada que se sentisse, e passava a noite a vaguear, tentando não acordar o irmão e a mãe. Não lhe apetecia sair... Estava farta de ver o sofrimento e a dor. Estava farta de si própria. Mas sabia que a Fernanda andou a planear esta saída durante toda a semana, não queria desaponta-la.

Sorriu a imaginar a Fernanda no seu apartamento espaçoso com a vista para o mar a planear esta saída, com todos os pormenores como costume, no meio de seus hamsters e iguana. “Somos tão diferentes... O momento alto do dia dela é a alimentação de seus bichos, o meu é saber que não morreu ninguém na minha ala...” pensou, mas apagou logo o pensamento. Era demasiado derrotista. Esta noite tinha que ser especial.

O carro deslocava-se silenciosamente pelo corredor do estacionamento e as mulheres continuavam a conversa...

“Isto não é vida... Pareço um zombie...”. A Mafalda estava a procura da sua mala para se ir embora. Já era muito tarde, o supermercado já tinha fechado há muito tempo, mas, como sempre, alguém a convenceu ficar até mais tarde. “Dormir, dormir.... não quero mais nada! Estúpida! Deixei-me convencer outra vez!”. Finalmente encontrou a mala. Nem se lembrava de tê-la enfiado em cima de cacifos. Apressadamente desligou as luzes e pôs-se a correr. Já não havia autocarros, tinha que ir a pé. Não era muito longe, mas no estado em que estava qualquer distância lhe parecia excessiva. Para piorar as coisas era final de outono com aquela chuva miudinha e persistente que molha-nos até os ossos. Saiu a correr da porta de serviço, acenou ao segurança e pôs-se a correr pela rua escura e silenciosa... Percorreu a estrada ao longo do edifício do supermercado, virou a esquina e... sentiu uma escuridão a cobri-la, uma dor aguda e deixou de sentir...

-Como te pudeste esquecer de ligar as luzes! Olha o que fizeste! O que fazemos agora!??? – As mãos da Paula tremiam enquanto apalpava o pescoço da rapariga estendida no chão a procura da pulsação.

Suspirou de alívio quando sentiu que a rapariga estava viva e a respirar. - Liga 112, temos que leva-la para hospital! – já estava sentada no chão ao pé do corpo estendido, tendo enfiado o seu casaco debaixo da cabeça da moça.

- Ohhh... – a voz da Fernanda tremia - tens a certeza que ela está viva?

O pavor que tinha da morte incapacitava-a. Paula não respondeu, agarrou no telemóvel e marcou o número...

Estavam paradas a entrada de urgências a espera de notícias. Um polícia tirou-lhes os dados pessoais e pediu para esperar.

- Eu sou enfermeira! Deixe me passar! Posso ajudar! – discutia a Paula com o segurança, mas este estava implacável:

-A paciente está em coma! Náo pode ajudar em nada! Tem que esperar até que vem o médico...

Ele sentiu os sintomas característicos de uma crise próxima: pernas inchadas, doridas e quando se deitava a dor aumentava alternando-se com cãimbras. Já sofria da tromboflebite há alguns anos e desistiu de curá-la. Só se lembrava do problema quando sentia aproximação de uma crise... Uma pancada e uma dor aguda: “Começou...”.

Sentiu como em nevoeiro a namorada enfiá-lo no carro e arrancar para as urgências com os quatro piscas ligados. Desta vez não conseguia desligar, só sentia dor...

As duas camas estavam na sala de cuidados intensivos. Os seus ocupantes estavam ligados as máquinas e não estava mais ninguém na sala. Reinava o silêncio... Com passos apressados entrou uma enfermeira velhinha, verificou a leitura nos visores de máquinas, parou por momentos e abriu um bocadinho a janela para a rua: “O tempo finalmente está aquecer, ao menos fica um bocadinho arejado”. Voltou a olhar para as caras de pessoas deitadas. Uma chamava-lhe uma atenção especial, era uma rapariga jovem, de 23 anos, extremamente bonita. Sentia muita pena dela e costumava visita-la de vez em quando. Ninguém vinha ter com a rapariga e a enfermeira sentia uma certa obrigação de acompanha-la.

O outro ocupante era um homem na casa dos cinquenta. A enfermeira pouco sabia a respeito do homem. No início tinha visitas de uma moça novita. Pensava que era uma filha, mas com o passar do tempo a moça aparecia cada vez com menor frequência até que deixou de aparecer na altura de Natal e nunca mais a viram. “Não, os filhos não são assim. Embora quem entende estes jovens de hoje?”

Parou por mais uns momentos pensativa e saiu silenciosamente do quarto...

A Mafalda abriu os olhos e sentiu uma brisa fresca do mar a acariciar-lhe a cara.... Respirou fundo e fechou novamente os olhos: “Só mais 5 minutinhos... só mais um bocadinho” pensou automaticamente, mas de repente apercebeu-se de que não tinha sono, que estava sentir-se leve e revigorada. Era uma sensação tão boa e inesperada que sorriu e abriu os olhos. Olhou a volta sem perceber onde estava: parecia um quarto de hospital, cheio de máquinas, soro ligado a sua mão, outra cama com um homem adormecido e com outras máquinas ligadas a ele, igualmente como a ela. A janela estava entreaberta e via um ramo de árvore cheio de botões e folhas novas, um sol primaveril e um céu azul. Não se lembrava de como tinha lá parado, mas, por incrível que pareça, sentia-se tão feliz, tão descansada que pouco lhe importava... Fechou novamente os olhos e sentiu um suspiro profundo da cama de lado...

João sentia-se vivo e morto ao mesmo tempo. As vezes deixava de sentir o que quer que seja, outras vezes a dor voltava. Não conseguia mexer-se, nem falar. Estava mergulhado num sonho doloroso e infinito. Hoje a dor era especialmente insuportável. Os pesadelos já deixaram de o atormentar há muito tempo, ele só queria por o fim a isto. Suspirou... Doía, mas sentiu que consegue abrir os olhos. Viu a luz do dia após muitos meses da escuridão. “Isto ou é fim, ou é início?” Não sabia bem qual dos dois queria mais, só queria que a dor parasse... Ao lado dele estava uma cama com uma rapariga bonita a olhar para ele com uns olhos enormes. Parecia que estava muito surpreendida. Ele sorriu-lhe e percebeu: “Isto é o fim”. Sentiu alívio e curiosidade ao mesmo tempo. Queria saber o que está do outro lado. Será que estará lá a Tal, pela qual ele procurou toda a vida, mas nunca encontrou, coleccionando os divórcios? Sabia que sim. Sorriu e abriu os lábios ressequidos: “Olá... Ainda bem que te vi antes de ir. Já sei como Ela é. Já sei o que procurar. Sê feliz!”. Sorriu, e fechou os olhos. Adormeceu... A dor tinha passado...

A Mafalda ficou a olha para o homem, que acordou tão de repente, falou para ela e adormeceu outra vez. De repente a sala encheu-se de médicos e enfermeiros que levaram o homem para fora. Só ficou uma enfermeira velhinha na sala, aproximou-se da Mafalda e afagou-lhe a cara sorrindo:

-Acordaste filha? Já não era sem tempo! Agora vais ficar bem!

-O que aconteceu ao homem?- Mafalda sentiu a sua voz estranha, rouca. Parecia que não era dela.

-Ele já não vivia. Estava em constante sofrimento. A lei não permite matar os pacientes, mas ele não tinha remédio. Iria morrer de qualquer forma. –a velhinha fez um ar triste, mas parecia mais contente com o acordar da Mafalda do que com o homem.

“Ele não morreu, ele escolheu um destino melhor... Estava tão feliz quando foi...” – Mafalda sentiu-se cansada e fechou os olhos.

O sol primaveril aquecia o ar. As regras é que não há regras...


21 de Junho de 2005,

Dasha

Sunday, June 19, 2005

Desafio BI - Avião; por Der Uberlende

Ora viva,

Embora já tivesse publicado uma versão do DBI, não resisti a escrever uma nova. Não tinha minimamente planeado fazê-lo, foi apenas um impulso de escrita que andava aqui a sussurrar, nem era para ser um DBI, mas conforme a estória ia maturando achei que até se encaixava bem :)

boa semana a todos,

D.U.


Avião.

Rodo o pescoço, lenda e despreocupadamente, até escutar aquele som reconfortante e que tanto me alivia. >rrack<. Ahhh, o sonoro estalar das vértebras cervicais rasgam-me as preocupações em mil milhões de pequenos estilhaços, que se esfumam no ar tépido do cockpit como pequenas traças libertas de um antigo armário de roupa, há muitos anos fechado...
Olho à minha volta e, com a displicência que só a pós-adolescência conhece, conduzo o meu olhar sobranceiro perante aquele estranho grupo de gente que se dispersa pelos assentos a meia lotação. Parece que a viagem vai ser animada, a avaliar pela cara mesmerizada dos meus companheiros de jornada.
Aproveito que já levantámos voo e saco o leitor de mp3 da mochila. Primo no botão de ‘random’ e desafio o destino a brincar comigo. A coisa começa bem. Aos primeiros acordes do tema “Inocent Child” dos Arcana já começo a adormecer a área pensante do meu neo-córtex, permitindo que as sensações, apenas as sensações, me inundem o corpo e que o tremor da euforia do início da viagem se vá escapando pelos meus poros.

“In the Nursery – Woman”. Reparo nela, sentada intranquila a um canto. Como podia não reparar? Tremendamente sexy, com o seu top de lycra vermelho escuro, onde descaradamente exibia a expressão “Be My Valentine”. Vê-se que tem gosto em mostrar o peito deliciosamente torneado, um busto digno de um quadro de Modigliani. O cabelo escuro e encaracolado foi recolhido com um lápis, mas no entanto, sobram 2 ou 3 caracóis rebeldes que descem para beijar a sua face de pele cremosa e imaculada. Mas o seu olhar verte insegurança, deixando escapar uma lágrima dissimulada por entre as pestanas cobertas de rímel e forçadamente reviradas. Está impaciente, espera que ninguém note aquela lágrima traidora. Olha compulsivamente para o relógio, mordisca os lábios carnudos e vermelhos e parece ansiar desesperadamente pelo sossego que tarda em chegar. Repentinamente olha para mim, e repara que estou de mirada fixa nela. Mostra-se agradada... e num gesto de timidez assustada esboça um sorriso fugidio e volteia o olhar para o outro lado, em busca de um pensamento que a reconforte e lhe devolva o descanso que lhe parece fugir por entre um suspiro e um ajeitar da saia...

“Anathema – A Natural Disaster”. Oiço-a a chamar a hospedeira, num tom de voz rouco do tabaco e do álcool, assaz impertinente, como quem demonstra, de um modo algo arrogante, que tem direito a ser atendida sempre que assim o desejar. Não consigo perceber o que ela pede, mas 1 minuto depois vejo a hospedeira a trazer-lhe o que parece um gin tónico, com uma estreita rodela de limão a oferecer cor a um cenário ‘noir’ quase tétrico. Terá sido uma mulher bonita, não do tipo da rapariga do top vermelho que me deixou de água na boca, mas algo mais 'Catherine Deneuve', a vibrar elegância e sensualidade elitista por onde quer que passasse. Não deverá ter mais que uns 40 anos, mas as olheiras marcadas e o olhar vazio e frio sugerem que parou no tempo, que algo morreu nela e que nunca mais a vida voltou aqueles olhos cinzentos como o mar de Inverno. O cabelo castanho-alourado, carregado de nuances e outros truques de cosmética quotidiana apresenta-se esquizoidemente estático, não se desgrenhando um fio que seja. Hirto e rígido como a sua dona, que a única coisa pela qual parece ter afecto é o seu tubo extensível de transporte de papeis de grandes dimensões, deixando adivinhar talvez pinturas, ou projectos de arquitectura, ou um poster para apresentar num congresso técnico, sei lá. Só sei que a mão que pacientemente afaga tubo parece ter pertencido outrora a uma mulher de corpo inteiro.

“Switchblade Symphony – Invisible”. Levanto-me para ir até à casa de banho. Não é nenhum compromisso fisiológico que me chama, mas sim a necessidade de banhar a minha face em água fria, tentar despertar um pouco da sonolência que tem vindo a ganhar terreno na última hora. À saída, no corredor, esbarro-me com uma rapariga gordita que se atrapalhou quando o seu casaco de malha se prendeu ao braço de uma cadeira que fazia fronteira com o corredor central. Fiz-lhe cair os óculos e a carteira que ela própria ia pisando. Quando se levantou, virou-se para mim de rompante parecendo que me ia devorar por inteiro, num único pedaço! Pedi-lhe de pronto muitas desculpas, embora me sentisse alheio aquele show que ela própria teria montado. Ajudei-a a apanhar os seus pertences, entre os quais um cartão de enfermeira. Tentei aproveitar essa ‘deixa’ para meter conversa e apaziguar a furiosa senhorita. Apressadamente, lancei a boçal observação “A senhora é enfermeira? É sempre bom ter uma num avião...”. Com um ar meio irritado, e tentando rapidamente envergar o seu melhor sorriso coloquial, acenou com a cabeça e olhou-me com estranha demora bem fundo nos meus olhos. Sorri de volta e, ao verificar que não estava seguro de querer seguir aquela conversa, acenei com um disparo de sobrancelhas e sorri mais um pouco. Ela respondeu-me apenas “felizmente para si, espero nunca vir a ter que o tratar...”, e num relance lento de quem sabe que a conversa acabou de morrer, pegou nas suas coisas, pôs os óculos na cabeça e dirigiu-se para a casa de banho onde eu me refrescara 2 minutos antes.

“David Bowie & Trent Reznor – Hearts Filthy Lesson”. Estava quase a cair na dormência da languidez mórbida da espera... quando uma discussão em crescendo vinda de dois bancos à minha frente me desperta. Um casal discutia acesamente, embora ele, nitidamente mais velho do que a sirigaita empiriquitada que lhe espetava o indicador na face, tentasse fazer de conta que nada se passava, retorcendo a boca e afagando a testa enrugada com a mão rude e maltratada. O monstrinho verde do ciúme tinha arranjado ali com que se entreter. Aparentemente, o homem foi apanhado a olhar para rapariga do top vermelho (e quem seria eu para o censurar...), o que muito desagradou à sua companheira, também ela muito vistosa, até berrante diria mesmo, com o seu cabelo preto pintado com nuances vermelhas garridas e os seus 3 piercings faciais distribuídos pelo lábio inferior, narina esquerda e sobrancelha pintada de vermelho-fogo. Já para não falar nas fiadas de argolinhas e estrelas que tinha nas orelhas. Lembrei-me logo daquela piadola tão típica e óbvia que toda a gente faz quando conhece alguém com piercings: “como é que fazes para passar no detector de metais do aeroporto?”. Aparentemente isso não fora problema para ela. A discussão parece conhecer um súbito travão quando o homem se vira para ela de rompante e lhe diz “Vê lá se queres apanhar nas trombas! Pára lá de me azucrinar mulher! Não te queixaste assim tanto quando comecei a olhar para ti quando ia buscar a ‘outra’ ao salão...”. Ela calou-se de imediato e franziu o sobrolho. Parece que os seus argumentos teriam acabado de cair ao chão...

“This Mortal Coil – Song to the Siren”. O som característico da campainha que avisa para recolocar os cintos de segurança interrompe a minha meditação. Estava a esquematizar mentalmente como iriam ser estes 7 dias de férias. Não que isso fosse deveras importante, pois uma das vantagens de viajar sozinho é que podemos adaptar os planos e os cenários aos desejos e impulsos do momento. Dentro de poucos minutos iremos aterrar, e daí ... a aventura!

“New Order – True Faith”. Aproximo-me do carrossel das bagagens, e recolho as minhas 2 mochilas. Enquanto caminho para a saída reencontro a enfermeira, acompanhada de uma senhora mais velha que só pode ser a sua mãe, pois os traços faciais são cópia fiel uma da outra, apenas desfasadas no tempo. Com elas segue um miúdo mais novito que transborda felicidade por ter finalmente os pés de novo em terra firme. Num gesto brusco e de rompante, a mulher do gin tónico passa por nós, deixando no ar um aroma saturado a perfume e a ‘Café Creme Noir’. Atinge-me com o seu tubo extensível mas nem repara. Segue caminho absorta e determinada.

“Craig Armstrong & Liz Fraser – This Love”. No átrio onde se encontram os que chegam e os que esperam vi o a mulher dos piercings a acenar fervorosamente e a puxar o homem pelo braço. Este abre o rosto e sorri com gargalhada com a chegada de dois homens jovens que juraria serem gémeos. Todos se abraçam e trocam beijos nos primeiros minutos, mas depressa os rapazes lançam olhares desconfiados e inquietos à espampanante criatura que o ‘velhote’ trouxe consigo. Desligo-me da cena e encaminho-me para os táxis. Assim que levanto a mão para requisitar o meu transporte oiço uma voz atrás de mim a perguntar-me “Olá! Uma vez que também estou sozinha, importa-se que divida um táxi consigo?”. O lápis ainda lhe prendia o cabelo, mas os seus olhos agora brilhavam com serenidade e renovado fulgor.


19 de Junho de 2005,

Der Uberlende

Saturday, June 18, 2005

Leituras para o Verão 2005

Depois da redbackspider me 'despentear' resolvi escrever...

Estive a vasculhar as minhas prateleiras e fiz uma selecção dos livros que gostaria de ler este Verão.
Deixem-me dizer-vos que os meus planos nunca, ou muito raramente, se cumprem :)

Em primeiro lugar porque desde há uns tempos para cá que ando a ler muito vagarosamente, a mastigar todas as frases e palavras, pausadamente, ao contrário do ano passado que era uma leitora veloz e insaciável.
Deve ser da idade… a paciência está-me a chegar, os ombros pesam de responsabilidades, a calma bate-me à porta…

Em segundo porque os meus desejos literários mudam muito rapidamente e parte da minha lista de amanhã para as leituras deste Verão poderia ser completamente diferente!

Em terceiro porque é cada livro que me indica sempre qual o seguinte a ler!
Por exemplo, depois de ler ‘O Discípulo do Apicultor’ pode-me dar para ler só livros sobre abelhas…
Oh well, a serenidade nas leituras chegou mas a imprevisibilidade não!

Por isso esta lista para além de provisória quase de certeza que vai sofrer muitas alterações!

Teatro Grego - Esquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes
Ofício de Viver - Cesare Pavese
O Camarada - Cesare Pavese
A Queda - Albert Camus
Narciso e Goldmundo - Herman Hess
Pigmaleão - Bernard Shaw
Servidão Humana - Somerset Maugham
A besta humana - Emílio Zola
Lições do Abismo - Daniel Sampaio
O Discípulo do Apicultor - Sara George
Esteiros - Soeiro Pereira Gomes
Psicopatologia da vida quotidiana - Freud
Delfim - José Cardoso Pires

E as vossas leituras? O que pretendem ler nos próximos tempos? O que estão a ler agora?
Já leram algum destes livros aqui referidos?

Já tinha saudades de escrever um post sobre livros…

Saturday, June 11, 2005

Recomeçar, por Rosa Oliveira

Mais um texto que me preenche a alma e torna o estudo para os exames menos doloroso :)
Olhou-se no espelho e, maquinalmente, pegou no batôn, para avivar os lábios de rosa carmesim como habitualmente fazia quando saia à rua, dando-lhe a segurança enganadora, que assim atenuava a sua habitual palidez. Tinha 34 anos, mas aparentava ter mais de 40; rugas profundas à volta dos olhos, a boca emoldurada por acentuados vincos, e o corpo antecipadamente envelhecido. Era o nefasto resultado da destruição sistemática, e sem piedade, da “maldita”, a sua inseparável companheira durante dez tormentosos anos. Mas, mais que o aspecto exterior debilitado, o que lhe provocava uma interna e profunda dor era ter ficado estéril.
Reparou que os olhos de um verde desmaiado, tinham um brilho que não era habitual, um leve estremecimento de felicidade percorre-lhe todo o corpo: - Após largos meses de perseverança tinha a autorização definitiva para ir buscar os filhos adoptivos que já tinham completado três anos; um menino e uma menina gémeos, cujos pais tinham morrido de overdose, e que a Instituição, que cuidava deles, exigia que fossem adoptados juntos, e, por isso, punham muitos entraves às famílias em condições de os receber. Olhou-se com coragem de olhos nos olhos, e murmurou mentalmente: - “Apesar de tudo és uma vencedora”.
Começara aos 16 anos por experimentar o “inofensivo” haxixe, dois anos depois deixara a casa dos pais e foi viver com o namorado numa relação a três; eles e a heroína, a amante a que ambos sucumbiram, e que, diariamente, os espezinhava e maltratava, mas cuja fixação doentia era cada vez mais cruel e dolorosa, e da qual não se conseguiam libertar. Convencera-se que resvalara para a toxicodependência devido ao opressivo ambiente familiar. De uma forma sub-reptícia a ambiência da casa era-lhe há anos insuportável; não havia discussões nem maus-tratos, mas, pairava no ar, a humilhação da mãe, a saudade do pai, e a inadaptação do irmão.
Nascera no início dos anos setenta, na altura da guerra colonial, quando o pai estava destacado em Moçambique; quando regressou, já tinha dois anos. Nunca lhe prestou atenção como se fosse culpada de uma melancolia que diariamente o consumia roubando-lhe a alegria de viver. Um dia, a mãe já grávida do irmão, através de uma carta, descobriu que o pai mantinha correspondência com uma enfermeira que o tratara num hospital em Lourenço Marques quando fora ferido na guerra, por quem se apaixonara e com quem passara a viver maritalmente; e onde, de coração dilacerado, confessava que era infeliz, mas que não tinha coragem de voltar, devido às obrigações familiares, principalmente, a obrigação de acompanhar o crescimento da filha.
Entre os amigos chamava à sua casa “A Casa dos Disfarces”; a mãe disfarçava que nunca tinha lido aquela carta, mas no seu olhar estava sempre presente a traição e a desilusão que sofrera; o pai disfarçava que era feliz, embora ao seu lado vivesse permanentemente aquela mulher distante para quem, por falsa honradez, não tivera a frontalidade de voltar; o irmão, uma criança cheia de tiques, disfarçava a incompreensão perante a infelicidade dos pais; e ela, durante anos, disfarçou que não a afectava a involuntária indiferença do pai. Fazia tudo para lhe agradar, na escola esforçava-se por ter boas notas como forma de o compensar; ao princípio quando que lhe apresentava os resultados escolares na expectativa que desse conta que ela existia, tristemente constatava, que ele não reparava nem nas notas, nem nela, soltando um “Ah, sim” inexpressivo. Desistira. Entrou naquela vida desgarrada. Colou-se a ela um pegajoso e peçonhento monstro, quatro vezes mais horrendo que o de Loch Ness, porque este só surgia quando algum incauto, passeando nas suas margens, projectava os seus medos sobre as águas escuras do Lago, fazendo com que o mostrengo emergisse momentaneamente, simbolizando os seus próprios pensamentos. Aquele que a atormentava estava sempre ao seu lado, tinha quatro horrendas cabeças apontadas aos quatro pontos cardeais, estando desfocada a que estava dirigida a norte. Percebia que três delas, representavam o medo, a angústia, e a frustração, diante da infelicidade do pai, da mãe e do irmão; mas a quarta era um enigma.
Entretanto a “peçonhenta” passou a comandar a sua vontade, obrigando-a a proceder desonestamente, ficando desempregada; todos os dias, ao acordar, o seu primeiro pensamento era: -“Onde vou buscar dinheiro para comprar a dose de hoje?”. Venderam tudo, inclusivé o colchão onde dormiam; já não havia onde arranjar sustento para alimentar o vício. As dores no corpo e a dependência psíquica eram insuportáveis. Propôs aos “fornecedores” que fiassem o “pó”, que logo, logo, pagariam. Foi-lhes negado; só se também entrassem no esquema das vendas, e aliciassem outros para o consumo. Recusou, era-lhe repugnante tal ideia, vivia no entulho, mas isso não a impedia de que ainda lhe restasse alguma dignidade. Durante dois dias esteve deitada no soalho da casa sem mobílias, completamente imóvel, assolada pelas mais horríveis dores e pesadelos. Ao entardecer do terceiro dia, levantou-se, despediu-se do namorado, cujo procedimento diferira do seu, atravessou as ruas ziguezagueando como quem decifra um labirinto, e, finalmente, chegou a casa dos pais. Quando a porta se abriu e deparou com os rostos do pai, da mãe e do irmão, onde se espelhava a mais genuína expressão de boas-vindas, num ápice, vislumbrou o que representava a quarta cabeça do monstro: eram os seus próprios erros não assumidos, atribuindo à família a sua incapacidade perante as dificuldades que a vida lhe destinara. Compreendeu que só os cobardes culpam os outros dos seus próprios desmandos, percebeu que se nascemos para trilhar um Caminho, somos responsáveis por tudo que de bom e menos bom possa acontecer; que nessa caminhada interagimos com os familiares, com os amigos e com desconhecidos, mas, essa grande “viagem” até ao retorno à Origem, imersos num amor de natureza universal que é, intrinsecamente, justiça e bondade, a aprendizagem, a responsabilidade, é forçosamente individual. Quando a família a abraçou, o monstro despegou-se do seu corpo e da sua mente, estrebuchou, soltou um rugido medonho e evaporando-se no ar transmudou-se numa brilhante estrela que sempre estivera ao seu lado, norteando-lhe a vida; entendeu, que o espesso véu da ignorância sobrepondo-se á transparência da verdade, não consente que os homens se apercebam que são portadores da força formidável da Vontade.
A desintoxicação foi muito difícil e dolorosa, aproximou-se um amigo de infância que trilhara por outros caminhos, cuja constância apaixonada e contínua a cativou, acabando por se tornar seu marido. Comovia-a a atenção que todos lhe dedicavam, como a sua dor fosse a dor de todos, e o seu sucesso a todos pertencesse; emocionava-a a felicidade do irmão, a dedicação da mãe, e a atenção do pai tocava-a particularmente. Fora um cruel sofrimento para todos.
A voz confiante do marido interrompeu-lhe os pensamentos: -“Estás pronta? Sim, estou pronta”- respondeu com firmeza. Iam, finalmente, buscar os filhos adoptivos; a Estrela que sempre estivera dentro de si, brilhou mais intensamente, era como se lhe depositasse nas mãos o futuro da humanidade.


por Rosa Oliveira
Maio/2005

DBI: "A melhor altura da tua vida" por Shakti

Olá a todos,

Espero que estejam a aproveitar o fim de semana prolongado da melhor maneira,
Aqui vai a resposta da Shakti ao nosso DBI
(ela não deu um título ao texto dela, fui eu que inventei este. Shakti, se discordares diz que eu apago ou mudo)

... e já lá vão 3 textos! :))


boas escritas,

D.U.



A melhor altura da tua vida

De olhos fechados assiste com minúcia ao desfile das imagens que passam sem cessar na sua frente, como uma película projectada, enquanto a respiração tranquila e monótona a acompanha neste ritual quase diário.
Vê nitidamente Ricardo, seu namorado desde a infância, o início de um relacionamento pleno de doçura e inocência de duas crianças vizinhas da mesma aldeia que brincam juntas no recreio da escola primária, quando este já lhe levantava o vestido de chita para lhe espreitar os culotes. Esboça um leve sorriso. Irónico.
Ela, extremamente feminina, olhos claros, tez branca, cabelo dourado, modos finos, de bom trato, vestida pelos trapos que a mãe lhe confeccionava em casa, fitas a condizer a segurar os cachos seara, até o bibe da escola tinha fita, filha única de um casamento que outrora havia sido feliz mas que com o tempo caíra na indiferença. Na escola distinguia-se pelo traje imaculadamente limpo, lindo, original, com cor, bom corte, com uma classe discreta, muito peculiar, e por ser filha do presidente do clube recreativo e também da junta de freguesia, um senhor educado e pacato, respeitado por todos.
Os pais haviam escolhido viver naquela terreola do interior quando souberam que ela iria chegar, para lhe dar a qualidade de vida que a grande cidade onde viviam não oferecia. Depressa se arranjou uma tranferência para o pai, antes funcionário público numa câmara municipal; a mãe, modista favorita das senhoras de alta sociedade que não conheciam estilistas de jeito no país que lhes chegasse aos calcanhares, passou apenas a costurar para a sua maior estrela: a filha.
Ricardo tinha uns olhos enormes da cor do mar que quando a fitavam a faziam ruborizar em dois segundos. Era filho do único mecânico daquele lugar de fim de mundo, que à custa desse monopólio usufruía do que mais apreciava: dinheiro e miúdas de tenra idade, gosto que lhe era sobejamente conhecido por toda a aldeia e arredores, até pela mãe de Ricardo, sua segunda mulher, que “acompanhava” impávida e serena a leviandade delirante do marido porque o nível de vida que lhe proporcionava, a ela que era doméstica, e ao filho, não tinha preço. Já bem bastava o dinheiro que todos os meses aquela cabra da ex-mulher lhe exigia para os gémeos. Pfff... uma ordinária que emprenhou antes de casar, que nem um ano esteve casada com ele e que fugiu com outro para a Alemanha. Às tantas os gémeos nem sequer são filhos dele. É muito estúpido o meu João, dizia em tom alarve.
No dia que fez 15 anos o seu pai ofereceu-lhe uma máquina de escrever, a mãe preparou uma festinha para os coleguinhas da escola, mas Ricardo era o seu único amigo e era Ricardo que ela procurava com os olhos, era com ele que queria estar e deleitar-se por entre o milheiral onde pela primeira vez havia descoberto as delícias carnais, com as suas entranhas dadas totalmente um ao outro numa conquista infindável, irrepetível, incomensurável.
Tornara-se uma adolescente interessante e agora o que a distinguia na escola secundária eram as suas brilhantes notas e o estilo muito coquete. O pai estimulava-a intelectualmente aguçando-lhe a curiosidade, induzindo-a a ler, a descobrir, a problematizar, a escrever, a recitar poesia e a não desistir da catequese e das aulas de natação que tinha desde os cinco anos na piscina municipal da vila mais abaixo. A mãe, apesar das cada vez mais frequentes dores nas costas, continuava a costurar para ela, alimentando a vaidade inconsciente de a menina mais linda da aldeia ser a sua.
Todas as pessoas da terra olhavam quando passava, a sua figura era alvo dos mais diversos comentários em surdina, observações de respeito, inveja, cobiça, indiferença, mas acima de tudo de desejo.
Dentro daquele corpo, onde as formas se adivinhavam generosas, ela sentia-se a ferver, a líbido saía-lhe por todos os poros da pele, era incontornável. Talvez por isso, poucos anos mais tarde, tenha cometido a maior atrocidade da vida, um erro irreversível, com danos de dimensões irreparáveis. Movida pela luxúria e pelo poder da manipulação que as hormonas tinham sobre si, entrega o seu indomável desejo à mercê de um homem mais velho e durante alguns meses rende-se ao imenso desvario daqueles encontros fortuitos, mais por vício do que por desmesurado prazer. Ricardo nota-a diferente, mais esquiva, menos entusiasmada, mas na sua pureza e devoção inabaláveis não questiona, até que, por mero acaso, depara-se inadvertidamente com o casal de amantes clandestinos entregues ao desfrute. O mundo fugiu-lhe dos pés, era cruel demais para ser verdade: a mulher da sua vida com o seu próprio pai!
A sua existência parou. Tudo o que agora vê é humilhação e desgosto estampados na cara dos pais, cabisbaixos, atordoados pela vergonha enquanto partem os três silenciosos de carro atafulhado sob os olhares apedrejadores de toda a aldeia. Assassina! O Ricardo matou-se por tua causa, sua puta! Os gritos ainda ecoam na cabeça, até hoje.
Deitada na cadeira reclinável daquela clínica cara onde faz tratamento de quimioterapia, pergunta-se se está a ser castigada pelo passado negro e mordaz que escolheu. Do mecânico soube que depois de ficar sem o Ricardo e, obviamente, sem a mulher, mudou-se também e refez a vida com outra da qual se divorciou pouco tempo depois. Continuava a conhecer-se-lhe o gosto por miúdas novas, parece que de momento vive com uma cabeleireira de 19 anos.
Os únicos amigos que tem são irracionais. Quatro. A capacidade para se relacionar com alguém fora do âmbito profissional é totalmente nula, nada mais restou senão entregar-se de corpo e alma ao trabalho e mesmo sem traçar grandes objectivos tornou-se numa profissional de sucesso, consagrada e admirada. Tudo o que tem na vida é dinheiro, muito dinheiro que não compra paz nem afasta fantasmas. O cancro descoberto há cerca de dois anos já o sente a consumi-la há catorze.
A enfermeira Paula aproxima-se com o intuito de preparar a cadeira ao lado onde se deitará a “companheira de doença” com a qual troca conversas de há oito meses para cá. Ser curioso aquela jovem enfermeira de olhar só e sorriso raro. Se há dias em que, bem disposta, fala pelos cotovelos e conta as peripécias do irmão de seis anos e da mãe com quem vive, outros há em que insiste na sisudez do rosto e em manter uma distância gélida e obstinada com todos os que a rodeiam.
Mafalda chega, tranquila, de passos firmes, linda, mesmo se um único fio de cabelo, de uma beleza exótica, incomparável, intocável. A doença havia sido descoberta num rastreio semestral imposto a todos os funcionários da grande superfície onde trabalhava. Não fosse o seguro de saúde pago pela mesma e nunca poderia tratar-se naquele lugar. Nas mãos traz um saco com uma pequena caixa de gelado com colher anexada à tampa, é para ti Fernanda, toma, para recordares os dias quentes derretidos no sabor dos gelados da tua infância, contaste-me que tinhas sido muito feliz, disseste-me que foi a melhor altura da tua vida, lembras-te?, Fernanda sorri, agradece o mimo, estende o braço e aperta as mãos de Mafalda.

9 de Junho de 2005

Shakti

Friday, June 10, 2005

Interludium: Quem morre? por Pablo Neruda (enviado por Dasha)

Ora viva,

Enquanto os exâmes, relatórios, projectos e trabalhos apertam e o calor faz desesperar aqueles que tem que ficar em casa a trabalhar em vez de ir para a praia ou para os Santos Populares (logo eu, nascido e criado num bairro popular de Lisboa, tenho tanto para fazer agora...), aqui vai uma sugestão de leitura da Dasha

boas transpirações e melhores inspirações


D.U.



Quem morre?

Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.
Morre lentamente,
quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.

Pablo Neruda

Tuesday, June 07, 2005

O Homicídio da Palavra, por Vera Fonseca

Recebemos mais um texto da nossa querida Vera Fonseca, aqui vai...
Anoitece, e chega aquela hora do dia em que nos deitamos sobre a almofada tentando dormir, e a única coisa que conseguimos é pensar. Reflectir sobre o dia, sobre o que sentimos, sobre o que nos preocupa... Mas naquela noite só uma coisa surgiu, tão absurda na minha mente......
... o porquê de dizer amar.
A palavra amor tem sido tão vulgarmente utilizada sem sentido, para exprimir sentimentos distintos, muitas vezes sem sequer terem no seu íntimo um pouco do verdadeiro amor, quando esta deveria ser uma palavra para expressar um sentimento imortal.
Por isso é que hoje considero inútil “amar” alguém, porque o amor deixou de ter o seu tradicional sentido.
Prefiro simplesmente sentir e transmiti-lo, sem palavras que o possam vulgarizar, apenas sentir incondicionalmente aquela força existencial, que alimenta a alma de uma alegria imensa e de uma tristeza pura.
Amar não é “Amar”
É sentir, é esquecer,
É arriscar dar sem receber,
É ser para além do ser.
O verdadeiro sentimento é único de tão belo, inconfundível, e tem por isso, de abandonar o vocábulo pelo Homem invadido, com sinónimos de outros sentimentos mais fúteis e sem sentido.
Ele é assim algo sem nome, cuja força, por si só, o define, mas que, indefinido, poderá tornar-se um Nada. Culpa nossa, não o quiséssemos misturar com paixão, gosto ou adoração... Fomos nós que o tornámos mais distante, mais inalcançável.
Cabe-nos agora a missão de o fazer ressurgir, sem nome, para que ninguém o possa corromper, possa apenas senti-lo.
por Vera Fonseca

Friday, June 03, 2005

Desafio BI - uma alternativa em 4 actos, por Der Uberlende

Poizé,
desta vez é que estoirei em definitivo o critério D500.
Apresento-vos a minha alternativa em versão D1913 hehehe

Ao que então parece, cabe-me a mim a honra de inaugurar as respostas ao DBI

Aqui vai disto

bom fim de semana a todos,

D.U.

3 Graus de Distância


Acto I – O Detective


“Mas isso deve ser fascinante!?”. Sim, por incrível que pareça, essa é uma das frases mais comuns que eu oiço quando conto a alguém da minha profissão. Sou detective à cerca de 5 anos. Já me passaram pelos olhos muitos casos estranhos, até bizarros. Já conheci muita gente, demasiada até, que parecem a Madre Teresa de Calcutá perante a família e os amigos, e que vivem uma vida paralela digna de qualquer Borgia. Conheci homens de família simples e banais que no outro lado da cortina eram traficantes de droga, prostitutos homossexuais ou escravos de uma Dominatrix que os usava como cinzeiros humanos. Pouco havia para me surpreender. Mas a vida guarda sempre uma surpresa para quando menos esperamos...
Há 12 anos atrás, quando me mudei para esta cidade, deixei para trás uma vida da qual não acreditava voltar a encontrar rasto. Mas, por mais que o neguemos, o mundo é um quintal, e com maior ou menor distância, estamos todos ligados.
O dia era isso mesmo, mais um dia, mais uma picadela no cartão de serviço, menos um dia para a reforma. Até que fui chamado pelo director do serviço para me ser dada uma investigação que iria alterar profundamente o rumo da minha vida. Um miúdo de 17 anos tinha aparentemente cometido suicídio de um modo completamente invulgar. O seu corpo foi encontrado num motel de estrada, em cima da cama. Teria fumado crack e, num aparente acto de homossexualidade bizarra, ter-se-ia masturbado com uma glock semi-automática, semelhante às que usamos na nossa força policial, e disparado dois tiros com ela introduzida no recto.
Quando cheguei ao local já a equipa forense tinha feito a maior parte do trabalho. Foi-me entregue um relatório preliminar onde constavam os dados da vítima, as condições em que foi encontrada e que haveriam indícios da presença de outra pessoa no cenário do crime.

Acto II – As Vítimas (não somos todos?...)

O nome dele era Artur Dias e vivia com a mãe e a irmã numa pequena casa arrendada num bairro de classe média-baixa. A mãe, Adélia, era divorciada de um mecânico de automóveis conhecido por ter um gostinho particular pelas “facadinhas” no seu percurso matrimonial. Adélia tornara-se uma mulher distante e perturbadoramente fantasista, que insistia em viver num mundo de ilusão paranóica de que o ex-marido não a tinha abandonado, mas sim morrido, e que por vezes voltava à noite para fazer amor com ela na cama que compraram juntos. Tinha-lhe sido diagnosticada depressão grave e estava em casa com baixa psiquiátrica há mais de 5 anos. A meia-irmã Paula, filha de outra relação que a mãe tivera mais cedo, era enfermeira no serviço de oncologia do hospital central. Também ela uma personagem curiosa. Muito atraente, embora não fosse exactamente bonita. Tinha um corpo magro e aparentemente débil, cabelo muito escuro e ondulado, olhos afundados nas órbitas escurecidas por anos de olheiras e angústias. Tinha um sorriso magnifico, discreto e encantador, enternecedor, capaz de fazer qualquer homem fixar-se na sua face que de repente se iluminava com uma doçura fulminante. Era sol de pouca dura, e a sua fragilidade irrompia com frequência à flor da pele, desfazendo o sorriso em milhões de estilhaços amargos. Paula raramente era vista com mais alguém fora do serviço. A excepção era a Mafalda, uma amiga um pouco mais velha que ela, que fazia 23 anos no dia em que a interroguei. Conheciam-se dos tempos de liceu, onde Mafalda era a estrela ‘teen’ que coleccionava namorados como se fossem trofeus, e Paula a “craniozinha” que lhe dava explicações em troca de um possível arranjinho com alguém que estivesse disponível para a amar.
Mafalda tinha uma irmã quase da mesma idade, a Irene, que era agora ajudante de salão de cabeleireira. Tinha trabalhado com a irmã como caixa no hipermercado, mas não aguentava a rotina de embalar as compras em silêncio. Era uma mulher muito activa, na boca de alguns a palavra era ‘vadia’ ou ‘leviana’. No entanto havia já quase 2 anos que vivia com o ex-padrasto da Paula, o Dias da oficina. Conheceram-se num bar de engate, onde mais podia um homem de 53 anos feitos arranjar uma miúda de 25 disposta a aturá-lo?

Acto III – Amar/Arma

À medida que procedia com a investigação e desenhava os perfis das pessoas próximas do Artur, ia desvelando alguns facto perturbadores. Fossem boatos ou não, talvez me ajudassem a desenhar o perfil do Artur e compreender como pudera ele ter chegado a um fim tão macabro. O que constava era que, no verão desse ano que agora entrava no final de Novembro, Artur conhecera o filho mais velho do Dias, o Victor, de 33 anos. Este tal Victor vivia na Alemanha, onde supostamente trabalharia em mecânica de automóveis, tal como o pai. No entanto, o que se diz é que ele vivia de negócios muito negros ligados ao mundo da pedofilia e tráfico de drogas. Um ‘belo rapazinho’, segundo consegui perceber pelo seu já longo cadastro. Ao que tudo indica, Victor e Artur tiveram algum tipo de relação, muito escondida, que não se tratou de simples amizade casual entre meio-irmãos.
Segundo me consegui aperceber das conversas com Paula, Artur tinha uma amiga, uma senhora mais velha, que era uma espécie de segunda mãe (ou mãe de substituição, como dizia a Paula). Tratava-se de uma arquitecta que vivia num casarão junto à praia. Paula conhecia-a bem, pois via nela um modelo do que se haveria de tornar: rica, excêntrica... e completamente só. Segundo ela, a Sr.ª Arquitecta (era assim que ela a tratava) rodeava-se de objectos de arte requintados, provenientes de todo o mundo e arredores, prestando uma devoção quase doentia aos seus animais de estimação, desde os cães que lhe guardavam a casa, à Iguana que tantos calafrios causavam a Paula. Esta contava que, sempre que Artur andava mais frágil ou desequilibrado ia a correr para casa da Sr.ª Arquitecta e vinha de lá sempre mais calmo e seguro. Mas desde Junho que a tal arquitecta partira numa viagem à volta do mundo, dizia-se que ela sofria de um enorme desgosto que nunca a ultrapassara, mas que ninguém sabia bem o que afinal se tinha passado, pois só à 7 anos é que ela vivia naquela comunidade.
Não foi difícil ligar Victor com Artur. Passados menos de 3 dias de investigação, recebo notícias do laboratório criminal de que foram encontrados vestígios de pele e de sémen no corpo de Artur, e que o DNA destes correspondia ao de Victor. Sem dúvida, este estivera no Motel com Artur no dia da sua morte.
Mais duas semanas de investigação, entrevistas, interrogatórios e referências cruzadas permitiram-me chegar à triste conclusão: Artur de facto suicidara-se. Os seus 17 anos não tinham a maturidade suficiente para admitir perante todos a sua homossexualidade. E para piorar a sua angústia e dor, o seu primeiro e único amante fora o seu meio irmão. Depois de terem passado parte da noite juntos a fumar crack e envolvidos em actividades sexuais, Victor deixou Artur só no quarto de Motel. Mas esqueceu-se da arma que sempre trazia no bolso do blusão, rotina de ‘dealer’. Ou talvez não se tivesse esquecido, mas teria sido Artur que a surrupiara num instinto pré-programado. O resto é demasiado doentio e triste para contar. Artur não conseguiu lidar a sua própria sexualidade e, num acto de desespero ou de delírio tóxico induzido pelo crack, introduzi-o a pistola do irmão-amante no ânus e, num simbólico acto final de encenação sexual, disparou dois tiros consecutivos.
Esta era a história sórdida que tinha para contar. Mas a minha própria história ainda teria um capítulo cruel para me acrescentar.

Acto IV – (A)mar sem fim

Há 15 anos atrás tive uma relação amorosa extremamente intensa durante um ano com uma professora de Geometria Descritiva do liceu onde tinha aulas. Eu tinha 18 anos e estava a preparar-me para a admissão na faculdade. Vivemos toda a plenitude do amor proibido, do secreto romantismo erótico, da emoção e da luxúria. Mas eu sabia que mais tarde ou mais cedo tudo iria ser descoberto, e que ambos seriamos crucificados pelos nossos actos, perdendo para sempre a honra e ficando eternamente marcados a fogo. Temia mais por ela do que por mim. Então decidi optar pela única saída possível, a única alternativa que me parecia resultar na altura. Foi no final do verão, em Setembro, nas semanas em que o vento de nortada agita as águas para causar marés vivas. Fomos até à “nossa” praia, num dia que foi o dia mais feliz da minha vida. Acordámos juntos, e juntos passámos todo o dia. Perdi a conta às vezes que fizemos amor, que nos deixámos ficar nos braços um do outro, que prometemos amor eterno... e impossível...! No fim da tarde, após o por do Sol disse-lhe que ia nadar. Ela olhou para mim e viu o vazio que me enchia o olhar. “Estás a mentir!”, disse-me. “Queres abandonar-me!”. Eu virei a cara e num acto encenado de desespero respondi-lhe que a ia deixar, a ela e ao mundo. Ela gelou e não se conseguiu mexer, nem dizer uma única palavra. O pânico e o horror tolheram-lhe todos os sentidos, a alma dela submergiu num inferno negro para não voltar a ser vista. Beijei-a uma última vez e entrei oceano bravio a dentro. Ela não gritou, não ergueu um braço, nem sequer teve força para chorar. Viu-me desaparecer diante dela, que estacou impotente enquanto contemplava em câmara lenta o meu desaparecimento, enquanto o mar me engolia...
O plano foi perfeito, o desaparecimento progressivo da luz do Sol impediu que ela me visse a nadar por trás da ondulação tremenda que se abatia sobre a costa. E assim morri para ela e o seu mundo, e fui ‘ressuscitar’ noutra costa, com outra vida e outro nome. Fiz o curso de Investigação Criminal e mudei-me para uma nova cidade.
No dia em que terminou a investigação da morte do Artur decidi voltar para casa de avião. Eram 16h45m e encaminhava-me para a zona de embarque, faltava ainda 1 hora e meia para o meu voo. Ouvia-se no sistema de som “O voo BA 722 proveniente de Reykjavik acaba de aterrar”. “Islândia”, pensei eu em voz alta. Era um dos meus destinos de sonho quando era adolescente. Contava a toda a gente que ainda um dia havia de lá ir.
No lobby daquele imenso aeroporto, por entre uma amálgama de gente de várias nacionalidades, por entre viajantes de todos os cantos do mundo, contra todas as probabilidades... cruzei-me com ela, acabada de chegar de Reykjavik, aquela que eu deixei no areal soprado pelo vento de nortada, aquela que me tinha dado como morto. O reconhecimento mútuo foi imediato. O sobressalto fez-me sorrir nervosamente, tentando obter algo de volta. Mas o que recebi em troca foi uma expressão gélida de desgosto e infinita dor. Durante os 5 segundos que ela me olhou fixamente senti 14 anos de dor, tristeza e imensa culpa a serem descarregados nos meus olhos. Depois virou-me a cara e abandonou-me, tal como eu o fizera naquele fim de tarde, e entrou pelo mar de gente adentro, e nunca mais a voltei a ver.
Hoje pergunto-me se terei feito o que devia. Questiono-me sobre que direito tinha eu de tomar a decisão que tomei. Mas ficou claro para mim de que amei e fui incondicionalmente amado.
Nunca te esquecerei, minha querida Fernanda!

3 de Junho de 2005,

Der Überlende

Wednesday, June 01, 2005

Faxina, por Earworm

Mais um texto para o nosso (vosso) blog pela Earworm

Repetindo o procedimento (como é mesmo?...): vou cortar aos pedaços, regar com gasolina, queimar no quintal. Não! Cortar aos pedaços, regar com ácido, limpar tudo com soda caústica no fim. Deixe-me só limpar o sangue, que já falo consigo, mãe, o sangue estorva-me a vista. Não mãe, ele não vem almoçar hoje. Ponha só dois pratos. Vou fazer um churrasco de memórias. Hoje a tarde é nossa e eu... que posso dizer?, acordei cheia de genica! Decidi despejar as minhas gavetas do lixo acumulado de anos e atear fogo aos despojos. Vou esquecer tudo, tudo, tudo. Um matrimónio feliz, mãe. Ele nunca me chamou porca, puta, gorda. Nunca me disse que eu era incompetente, nunca se queixou de mau sexo, nunca não me chamou atrasada mental. Quem era esse? Não, não conheço. Deve estar enganada. Ele nunca me disse que me ía deixar porque eu não tinha mudado nada em dez anos, porque não emagreci, não destapei as costas em vestidos de noite, não enfiei as pernas em meias de seda, não fiz o up-grade à personalidade. Nunca disse que me ía rebentar a cara à porrada, que me traía porque eu era tão lamentável em tudo. Tem a certeza, mãe? Está a fazer confusão. Não eram as mãos dele a gesticular marcialidades de Führer.
Deixe-me só limpar o sangue, mãe, que já falo consigo. Que trapalhada, esta casa, hein mãezinha?! Perdoe a desordem. O sangue atrapalha, não é? Patina-se nele, não tenho feito mais nada senão patinar nestes dez anos, um lodaçal enorme, a minha cabeça nestes dez anos, já só consigo ver a vermelho, mãe. E doi me a cabeça, sabe? Doi-me a cabeça um bocadinho, como me doi a alma um bocadinho, por fases, mãe. Às vezes doi-me o lado esquerdo da alma, por causa do ventrículo direito atafulhado, das artérias carregadas de molho e fritos (já lhe falei dos perigos do colesterol, de como essas porcas gordas e incompetentes que aindam por aí não mudam para os maridos, não se esforçam como eu me esforcei para mudar, mãe?). Ele só está preocupado que eu me fine. Só está preocupado porque não consegue viver sózinho, é frágil, precisa de mim, mãe. Não aguenta sem os meus cuidados, sem a minha preocupação com agasalhos e fadiga, precisa de mim para tratar das coisas: enerva-se em repartições de Finanças, enerva-se a falar com o vizinhos. Já eu, aguento-me bem sózinha, a senhora sabe que sim. Trato de tudo, faço a comida, espero pelas teias de aranha das horas sentada no sofá da sala, desfaço-me bem em tempo, mãe, sou levezinha. A vida é levezinha. Eu safo-me, espero o que tiver de esperar por ele, até vir a hora de me levantar com um buraco do lado esquerdo do peito, até vir a hora de ir para o trabalho e ele ainda não ter chegado porque trabalha muito, muito. Eu entalo bem as lágrimas debaixo da cama dos olhos, no metro, em frente a estranhos. Seguro-me bem, mãe. É só olhar em frente, para o vazio, e pensar em coisas bonitas, no jantar de hoje, nas contas de telefone e luz por pagar. Eu sobrevivo bem áqueles repentes de mau humor porque ele precisa de mim, eu sei que precisa.
Só que agora estou confusa. Tem de me dar uns minutos. Às vezes estala-me um bocadinho o cérebro, tenho uma dor aqui deste lado, onde se abriu o buraco, à esquerda. Não terá uma carteirinha de Nimed consigo, por acaso? Cuidado para não patinar. Eu já volto. Ora bem... como era, então? Vou cortar aos pedaços, regar com ácido, limpar tudo com soda cáustica no fim. A casa vai ficar num brinquinho, mãe. Vai ver.

por Earworm

Pressão... a versão completa!

Eis os resultados:

Votos %
Booklover 4 8,3%
Dasha 2 4,2%
Der Uberlende 5 10,4%
Earworm 4 8,3%
Ines em NY 4 8,3%
Lua_de_Inverno 7 14,6%
Perséphone 5 10,4%
Redbackspider 2 4,2%
Secret 1 2,1%
Shakti 4 8,3%
Silent Child 2 4,2%
Stela 4 8,3%
SweetSerenity 3 6,3%
Understandable 1 2,1%
48


Parabens a TODOS!!

(não digam a ninguém, mas amanhã (dia 2) já vai sair um NOVO desafio! hehehe...)

Der Uberlende

Agora a versão completa, já com o texto da vencedora desta 1ª edição do Desafio Parte II :
Lua_de_Inverno




Pressão... (Parte I)

O som da fechadura a desarmar desperta-me para a realidade. Finalmente cheguei a casa. O piloto automático que todos os dias me reencaminha do trabalho apaga-se, dando lugar ao modo “senta-bebe-esquece”, o meu estado favorito.

De acordo com o BI tenho 51 anos, mas a dor de cabeça que me estala os ossos do crânio insiste em informar que me devo andar a arrastar à séculos pelo peso que sinto sobre mim.
Lembro-me vagamente do que era estar vivo. Lembro-me vagamente do que foi ser feliz e empreendedor. Lembro-me, muito vagamente de me olhar ao espelho e gostar do que via...

Na cozinha, uma tigela vazia no chão lembra-me da companhia da Elisa. Durante 11 anos da minha incipiente vida fui abençoado com a gata mais carinhosa do mundo. Não era aquele tipo de bichano que vive enrolado nos pés do companheiro humano (só fala na palavra ‘dono’ quem nunca teve um gato...) ou que se desfizesse em mimos por tudo e por nada. A Elisa ‘lia-me’ com uma transparência e detalhe que jamais alguma mulher logrou alcançar. Ela sabia confortar-me sem exigir quase nada em troca, sem insistir que eu tinha de mudar, de crescer , de maturar, de ser mais empenhado, menos agressivo, mais homem, menos criança, mais isto, menos aquilo... E era com todo o prazer que eu lhe retribuia o gesto, afagando-a gentilmente no espaço entre as orelhas e o cachaço, deixando-a aninhar-se junto a mim, enquanto viamos televisão pela madrugada.

Frequentemente, a Elisa dava o seu passeio pela rua, saltando da janela da cozinha para o quintal, e daí para o mundo. Ia explorar, descobrir, socializar, andar por ai. Tinha a sua agenda, os seus encontros, a sua vida. Ia e voltava para mim, para o seu companheiro humano. Ia e voltava sempre. Há três meses atrás deixou de voltar. A roda de um carro desenfreado dum daqueles putos asquerosos do tunning, com o seu bonézinho patético e as argolas à pirata nas duas orelhas que separavam o espaço morto e atascado de diarreia onde deveria haver um cérebro e uma alma fez com que a Elisa não voltasse para mim.
Agora, quem me iria acompanhar de madrugada? Sobrava a televisão.

Desde que ela morreu que não durmo, apenas pairo no limbo etílico da minha inconsequente ausência. Arrasto as pálpebras vagarosamente, uma de encontro a outra, mas pelo meio sempre sobra um rasgão de íris e retina que insiste em sobrar para me fustigar com os ásperos fotões do mundo que ruge e brama pela minha alma.

E o que me oferece a televisão? Morte, espectáculo, negligência, sexo fácil e intimidade falsa, porcos e cabras a viver numa quinta, mas que quase parecem pessoas, notícias falseadas, aclamadas, comentadas, esmiuçadas, detalhadas, deturpadas...
Não aguento mais. Pego na caçadeira, calmamente. Carrego os canos...

No andar de baixo instala-se a confusão. Após um sonoro estrondo a bebé da vizinha começou a berrar em pânico e a velhota do 2ª esquerdo corre a ligar para a polícia.


Pressão... (Parte II)


Maldito destino… ah, maldito, maldito destino! Tinhas 40 anos. Idade suficiente para ter uma família e uma vida arranjada. E escolheste-me entre inúmeros gatinhos deixados intencionalmente num caixote perto de tua casa. Senti o calor do teu olhar e senti que esse calor era só meu, de mais ninguém. Terás percebido então que eu era mais do que uma simples gata? Terás percebido então que havia mais em mim do que pêlo e olhos sedutores? Porque dirigiste a tua mão a mim e não a algum dos outros?
Vejo-te agora, talvez com o mesmo calor no olhar. Talvez porque estás tão abandonado como eu estava quando me tiraste do caixote. O bebé da vizinha continua a berrar e o carro da polícia já enche a rua de clarões azuis, frenéticos como o sangue que jorra impaciente da tua cabeça. O copo meio-cheio (ou meio-vazio?) de uma qualquer bebida permanece ao teu lado. Bem como a caçadeira. Nunca imaginei ver-te assim. Sem uma ponta de dignidade, vencido pela minha ausência e pela tua morte antes do suicídio. Sim, porque já tinhas morrido. E não suportaste estar morto e vivo ao mesmo tempo, muito menos sem mim.
Terás percebido como eu te amava? Como desejava poder arrancar o pêlo e sair de lá, mulher castigada pelo destino, e abraçar-te até à eternidade? Terás percebido que a minha vida fora da tua (nossa?) casa não era mais do que um escape? Como odiava estar contigo – amar-te e estar aprisionada dentro do corpo de um animal. Por isso fugia. Por isso corria desenfreadamente. Por isso me precipitei naquele dia para baixo de um carro e nunca mais pude voltar para junto de ti. Agora vejo-te aqui de cima, deste limbo, e espero-te numa forma que poderás agora compreender. E (quem sabe?) amar.
Não tinhas que ter feito isto, sabes? Eu continuaria a acompanhar-te nas madrugadas de insónia, continuaria a acarinhar-te como merecias e a aceitar-te na tua perfeita imperfeição. Só tu não te aceitavas. Agora tenho de me concentrar na tua imagem destroçada e puxar a tua alma para mim (virás para o meu lado?), tenho de te dar força para não morreres completamente.
Maldito destino… ah, maldito, maldito destino… fora eu mulher e teríamos sido felizes até aos 100 anos. Sem exigir mais, sem pedir mais, porque sempre chegámos e nunca sobrámos um para o outro, e assim seria até ao fim das nossas vidas.
Tens 51 anos… Pareces ter o dobro. E sentias-te velho desde a minha morte. Quem me dera ter mudado isso. Quem me dera ter aberto as tuas pálpebras teimosas para a beleza do mundo, para a insignificância da minha ausência física. Quem me dera que tivesses encontrado uma mulher que te conseguisse dar o comprimento certo de trela (nem demasiado curta, nem demasiado longa) para que te sentisses completo. Eu seria feliz por te ver feliz. Mas tu nunca encontraste, porque só eu te estava destinada…
Devias ter sabido… eu era tua… serei sempre tua… Ah!, maldito, maldito destino!

DU & L_D_I


 

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