Luz e Sombra

Friday, April 14, 2006

Der Uber's End pt. II; por lua de inverno

Sarah indicou-lhe o bar com um gesto seco e rápido e ela voltou-se, espalhando no ar o seu perfume exótico como uma essência sedutora e venenosa. Por detrás do balcão da recepção, Sarah estremeceu como se pressentisse algo. A mulher caminhou a passos seguros para o bar, na direcção de Uber, como se já soubesse exactamente onde ele estava. Com gestos de precisão cirúrgica, atirou os pesados caracóis para trás e sentou-se no banco alto ao lado dele. A sua presença enchia o bar de tal forma que o rapaz que tagarelava do outro lado de Uber se calou, parecendo quebrar a corrente eléctrica que o animava. Procurou dentro da bolsa de veludo um objecto pontiagudo para prender os caracóis mais rebeldes e disse:
“Estavas à minha espera”, ao que ele retorquiu “… desde o início do mundo.”
Ela não conseguiu conter um sorriso, que não entendi se era de escárnio ou de nostalgia, tal era o mistério que lhe velava o rosto. Olhou a velha mala de cabedal e, incisiva, disse-lhe que precisava de estar a sós com ele. Retiraram-se, a passos simétricos, e dirigiram-se ao quarto. Sarah seguiu-os com o olhar, assustada com aquela cumplicidade mortal que os levava a caminhar como espelhos um do outro
“Mafalda…”, começou Uber já dentro do quarto discreto. Ela silenciou-o, tocando com um dedo nos seus lábios, e disse: “Não és digno de pronunciar o meu nome. Aliás, nem sabes se é esse o meu nome, portanto vamos directos ao assunto. Senta-te nessa cadeira, tens muito para ouvir”.
Inesperadamente, Uber calou-se, perdendo toda a energia que antes denotava. Uma
expressão de impotência dorida apoderou-se da sua face e ela, ágil como uma gata, girou para trás dele e prendeu-lhe as mãos atrás das costas com umas algemas
“O que é isto?... O que estás a fazer?”,
perguntou ele, assustado, impotente como uma criancinha nas mãos de um adulto inconsequente. “Nada que nunca tenhas feito antes”, respondeu ela, mordaz, soprando um beijo na ponta dos dedos. Começou a procurar algo na bolsa (como é possível transportar tanta coisa dentro de algo tão pequeno?) e agarrou com muita força num papel dobrado em quatro, muito amachucado e gasto. Abriu-o, deliciada, e leu:
“Todas as mulheres são patéticas, ridículas, execráveis e umas grandes putas”
.
Ele abriu muito os olhos, sem uma palavra. “Foste tu que disseste isto, não
foste...?" Sentou-se em frente dele, esperando uma resposta.
Der Uber entreabriu os lábios num esgar de desprezo e disse: “Se todas as mulheres forem como tu, é verdade.” Ela irritou-se e foi à janela, acenando para baixo. “Espera que já vês mais umas como eu.” E a porta abriu-se, mostrando a
cara triste de Irene, uma mulher com um ar desgastado e usado, que envergava vestes muito pouco adequadas ao local e que estariam mais enquadradas numa pensão barata à beira da estrada. Irene trazia na mão um estranho vaso de cristal que emitia uma ténue luz branca pulsante do seu interior
“Venho por mim e pela Ângela. Lembras-te dela, certamente...
“Quem és tu? E quem é a Ângela? Eu vinha para uma reunião de negócios, mas isto parece-me tudo menos isso… Provavelmente confundiram-me com outra pessoa”, retorquiu Uber, estranhando toda aquela situação. A sua confusão aumentou quando viu surgir Mary, agarrada ao seu porta-chaves com um cordeirinho, exibindo uma bandeja coberta por um pano de veludo negro
“Eu vi-te lá em baixo… quem és tu?”, inquiriu Uber. “Eu era a inocente que tu manchaste de vermelho sangue. Agora sou uma puta, que é o que tu achas de todas nós que aqui estamos”, respondeu Mary com uma voz de criança revoltada. “Devias saber quem somos nós sem termos de to dizer… afinal, foste tu que nos criaste. A todas. E não só a nós. Há mais desgraçados neste mundo que sofreram às tuas mãos inconsequentes. Está na altura de tu pagares.”
Num gesto decidido, afastou o pano negro da bandeja e Uber pôde ver com toda a clareza uma pequena colecção de instrumentos de tortura, dos quais se destacava uma pequena
foice
, semelhante às usadas no campo, mas capaz de caber numa mão. Mafalda
aproximou-se dela e acariciou a sua mão, enquanto dizia suavemente: “Cada coisa
a seu tempo, tem calma”. Mary pousou a bandeja em cima de uma mesa e sentou-se na cama, abanando os pés. Mafalda abriu mais a porta, deixando entrar uma pequena multidão que fez Mary soltar risinhos de prazer.
“Mas o que é isto?!”, soltou Uber em voz rouca.
“Hoje vais ter o que mereces”, respondeu Mafalda, cintilante. Um conjunto
altamente assimétrico e pavoroso estendeu-se num círculo em torno de Uber. Um a um, mostraram a sua raiva, cuspindo frases de injúria e atirando pés e braços sobre o seu corpo. A realidade da sua fantasia despenhava-se sobre ele, ora amor raivoso, ora ódio. Augusta, a menina da foto no corredor, velha e pálida como que saída da cova, segurava, ameaçadora, um livro negro e, abrindo na última página, leu: “E aquele que matou pela espada, morrerá pela espada… não, não estou a ler a Bíblia. Não soubeste ver com os olhos fechados. Neste livro está, de facto, o destino de todos nós. E tu, meu filho, vais morrer…"
A gargalhada diabólica que soltou para pontuar a sua frase fez com que Uber estremecesse e empalidecesse. Viu então uma mulher de avental sujo, como se tivesse estado até àquele segundo a servir num restaurante, dirigir-se a ele com um copo de uma bebida qualquer. “É Cianeto”, disse ela, “tem quatro sílabas. Como Uberlende!” E também ela começou a rir desenfreadamente. Encostou o copo aos lábios de Uber e este
cerrou-os com a força toda que tinha. Mary precipitou-se para cima deles, retirando o copo das suas mãos rudes. “Também tenho direito a divertir-me, não faças as coisas tão simples para ele.”
Ainda as duas se digladiavam para ver a qual das duas calhava a sorte de torturar o pobre artista, já uma mulher de ar cansado, com um leve cheiro a maresia, se inclinava junto ao ouvido dele e sussurrava: “Lembras-te de mim? O meu nome é Fernanda… perdi a minha vida junto ao mar. Gostavas de te sentir a afogar? Será um prazer dar-te essa experiência fisicamente quando me obrigaste a senti-la com toda a sua crueldade no meu coração.”
Nesse momento, o playboy loiro que estava no átrio pareceu desfigurar-se por um acto de macabra magia; o seu escalpe e os seus olhos desapareceram, deixando em carne viva a maior parte da sua cabeça. A multidão calou-se, Fernanda afastou-se. Uber soltou um
grito e cerrou os olhos com muita força.
Um momento de silêncio invadiu toda a divisão. Uber tinha medo de abrir os olhos, não sabendo o que o ia esperar quando o fizesse. Uma voz masculina, talhada pelo tempo, disse: “Abre os olhos, meu filho. Tenho aqui a tua salvação.” Uber, hipnotizado pela voz serena, abriu os olhos e, diante dele, um homem segurava
um estranho Tigre de cristal, luminoso e imponente. Não conseguiu desviar os olhos daquela esfinge mortal. Ao fitar a estatueta mágica, entrou num transe profundo… e não conseguiu entender o estado em que deixaram o seu corpo todas
aquelas criaturas demasiado reais que o devoraram por dentro e por fora.
Pela janela, entrou um vulto de luz, pálido como uma lua de Inverno. Uber olhou o vulto e perguntou: “Estou morto?”
Ainda não… mas eu estou morta. Tu é que ainda não sabes.
“Eu conheço-te…”
“Shh, não digas nada… estás muito fraco."
“Posso entrar no teu mundo?”
“Ainda não, não estás pronto. Mas eu fico contigo, não estarás sozinho. Devias ter explicado a todos os que aqui estiveram porque fizeste o que fizeste… devias ter explicado o porquê da tua arte.”

“Não tive tempo… foi tudo tão rápido!...”

“Então descansa, o mal já está feito. Mesmo que não o consigas ver, todos os que te tentaram matar estão mortos; destruíram-se mutuamente. Nenhum queria ter uma parte menor na tua morte. Deixa que tratem de ti… o teu tempo chegará.”
Anos depois de uma triste vida catatónica, amarrado a uma cama de hospital sem noção do tempo ou do espaço, nem sequer de si mesmo, Uber definhava. Todos os jornais da área da cultura tinham já esquecido o acontecimento do jovem escritor que, entregue à loucura, se tinha tentado suicidar num quarto de hotel. Os novos intervenientes na cena literária riam-se descaradamente do delírio insano de Uber e faziam disso a sua anedota preferida. Apenas alguns guardavam com respeito a memória do escritor que nunca tinha publicado o seu livro.
Uma enfermeira de olhar terno debruçava-se, atenciosa, sobre ele quando as suas pulsações começaram a diminuir de frequência… O vulto luminoso cor de lua deitou a face sobre os lençóis do hospital, acariciando as mãos dele, e num
momento de luz intensa ouviu-se no quarto um leve suspiro:
“Chegou a hora.”
A velha pasta de couro tombou e abriu-se sozinha. De dentro, saiu um enorme maço de folhas… era o livro que Uber nunca chegara a publicar…


lua de inverno

Tuesday, April 04, 2006

Der Uberlende's End - parte II, by Stela

A recepcionista encaminhou-a para o bar. A distancia, ela reconheceu o seu alvo, apesar de nunca o ter visto antes. Nem era por nenhuma caracteristica que lhe conhecesse ou um sinal que tivessem combinado. Reconheceu-o porque ele era a unica pessoa em todo aquele hotel que era a sua alma gemea. Por momentos fraquejou, e sentiu algo semelhante a ansiedade, mas rapidamente recuperou o seu porte altivo, e voltou a caminhar com passos decididos e sensuais, cruzando as pernas no seu andar. A medida que ela atravessava a sala, sentia olhos gulosos a segui-la, e a cabeca dele girou, guiada por um qualquer instinto.
Ela sentou-se no banco ao lado dele e dirigiu-se ao barman. "Por favor, de-me um", mas foi interrompida pela voz do homem sentado ao lado dela. "Black Russian". O barman olhou para ela, depois para ele, e confuso, voltou a olhar para ela. Parecia-lhe estar a ver a mesma pessoa em duplicado, mas de sexos opostos. Para minimizar a sua confusao, decidiu olhar apenas para a mulher. Mas a morena tinha finalmente encarado Der Uberlende, com um sorriso felino nos labios. "Prazer, Der Uber", disse ela. "Eh todo meu, Mafalda", disse ele. Sem desviar o olhar dos olhos escuros e insondaveis de Der Uberlende, ela confirmou o seu pedido ao barman. "Um Black Russian, por favor, num copo curto com pouco gelo".
O barman apressou-se a satisfazer-lhe o pedido e rapidamente recuou para o lado oposto do bar, certo de que distancia era a melhor coisa a tomar naquele instante. Havia algo de arrepiante a envolver aquele casal.
"Fizeste boa viagem?", perguntou Der Uber, agora num tom casual. "Sim, nada de mais... Eh uma viagem longa e aborrecida", respondeu ela, tomando um sorvo da sua bebida. Perto do casal, o
rapaz magro continuava a dissertar sobre pianistas pseudo pop-jazz, sem qualquer interesse aparente na chegada da exotica morena mas a electricidade estatica que se elevava de si nao parecia perturbar mais Der Uberlende, que focava agora toda a sua atencao em Mafalda.
"Porque eh que me chamaste ate aqui?", perguntou Mafalda, intrigada. "Eh tempo...", respondeu ele, e o seu cansaco evidenciava-se com estas palavras.
"Hmmm...", murmurou ela, inclinando para o lado a cabeca e olhando-o atraves de palpebras semicerradas. "Estas um pouco chocho... Mas para mim ainda parece que tens muito para dar. Ja para nao falar de receber." Ele pegou repentinamente na mao dela, sobressaltando-a. "Sentes?", perguntou ele. "Frio...", sussurrou Mafalda. "Sim. Eh tempo, como te disse. Vamos?"
Encaminharam-se para o elevador, e subiram ate ao setimo piso, onde se encontrava o quarto de Der Uberlende. O corredor estava vazio quando sairam do elevador e eles caminharam ate ao quarto, cuja porta se encontrava entreaberta. De repente, a porta abriu-se e uma
empregada de limpeza baixa e rolica apareceu, arrastando atras de si um carrinho com produtos de limpeza e toalhas. Quando viu o casal, estacou, embaracada. "Ah, peco desculpa... Ninguem me disse que o quarto ia ter hospedes esta noite", tartamudeou a mulher. "Na realidade, estamos so de passagem...", respondeu Der Uberlende. Como o barman anteriormente, a mulher ficou confusa na presenca do casal, e pensou para si que provavelmente estariam apenas a gozar com ela, como outros hospedes faziam. Achou por bem ignorar e seguir o seu caminho, arrastando o carrinho atras de si. "Boa noite, senhores", disse ela, sem esperar resposta. Der Uberlende parou na ombreira da porta e sorriu. "Muito obrigada, Mercedes", disse. A empregada virou-se, surpreendida por ter obtido uma resposta e por aquele homem estranho saber o seu nome. A porta, contudo, ja se fechara silenciosamente, escondendo da sua vista o misterioso casal.
"Deixa-me ver a Lua...", disse Der Uber, dirigindo-se a janela. Abriu as cortinas e uma vista excepcionalmente deslumbrante de Lisboa apareceu, banhada pelo luar. "Aqui era o meu sitio preferido para pensar, tanto de dia como de noite", disse ele, melancolicamente. "Daqui veem-se todos os pecados, todas as imoralidades, e as pequenas justicas que ocasionalmente se fazem. Se olhares com atencao, ves tudo... Olha..."
Mafalda aproximou-se da janela. Viu um
homem idoso na rua por baixo deles, a cambalear e a falar sozinho. Parecia confuso, e dividia-se entre um riso tolo e lagrimas tristes a rolarem-lhe pela cara. "Que achas?", perguntou Der Uberlende. "Acho que podes dar o teu trabalho por terminado. Agora sigo eu sozinha...", respondeu Mafalda, ainda olhando para o homem.
Ele fechou a cortina. La fora, ao mesmo tempo, o velhote tropecava na calcada e caia, batendo com a cabeca num degrau. O sangue comecou a escorrer lentamente nas pedras da calcada.
Os caracois escondiam o rosto de Mafalda. Com a mao, Der Uberlende fe-la virar o rosto para si. "Isso eh tudo tristeza?, perguntou ele. "Isso eh tudo arrependimento?", perguntou ela. Percorreu com os dedos magros e delicados a gravata vermelha, da mesma cor da sua bolsa, da mesma cor do sangue que escorria da cabeca do homem. Der Uberlende sorriu, um sorriso maquiavelico e inocente ao mesmo tempo. Mafalda puxou-o para si e abracou-o. Ficaram envolvidos naquele abraco por segundos que pareceram horas, e depois beijaram-se com urgencia. O abraco tornou-se mais e mais forte.
Mais tarde, Mafalda saiu do quarto sozinha. Desceu ate ao bar e foi-se sentar no mesmo banco onde estivera anteriormente. O rapaz magro continuava ali, mas agora calado. O silencio nao melhorava a estatica. 'Um Black russian", pediu Mafalda ao barman. "Vodka com licor de cafe, certo? Copo curto ou alto?", perguntou o barman. "Curto, com pouco gelo, por favor".
Mafalda focou a sua atencao no rapaz. Sentia-se perturbada pela sua presenca. Interpelou-o. "Como se chama?", perguntou com voz meiga. "Xavier", respondeu ele, mal erguendo os olhos da sua bebida. "Xavier, vamos fazer um brinde... Aos dessintonizados! Que um dia finalmente desistam...", disse Mafalda, num tom candido.
Na manha seguinte, o corpo de um homem de trinta e picos foi encontrado num quarto do setimo andar. Pelo estado avancado de decomposicao, e por nao haver indicios do corpo ter sido trazido de outro lado, a policia determinou que estaria ali ha ja uma semana. Em resultado disto, Mercedes foi despedida, por lhe ter escapado o pormenor obvio de haver um cadaver a apodrecer num dos quartos que ela deveria limpar diariamente. Sentindo-se injusticada, Mercedes resolveu voltar a servir o seu veneno de eleicao, juntando cianeto a uma garrafa de vinho do porto guardada para a celebracao do aniversario do Hotel Cristal, agendada para dai a uma semana.
Quanto a identidade do homem... apesar de todos o ja terem visto, ninguem o soube reconhecer.


 

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