Luz e Sombra

Thursday, February 24, 2005

Pinturas; 500 palavras para um Blog

Pinturas.
Os meus olhos já pesam, mas a noite ainda chama por mim. As velas já mal se sustem, derretidas, desfeitas, despedaçadas, mortas, derramadas sobre a madeira rangente do chão desta mansão suja e abandonada. Na minha cabeça ecoam pianos, violinos, flautas e uma voz rouca e cavernosa, que me condena ao ciclo infernal de acordar e adormecer sempre na mesma alcofa de detritos e restos. São os meus companheiros, a multidão que aplaude o meu requiem, a minha obra prima, o desenlace fatal de milhões de riscos desconexos, manchas oleosas coloridas vomitadas para cima de uma tela que antes era de branco virginal. E eu sou a besta que a vai violar, roubar a sua candura e dela fazer banquete e orgia, para sempre escrava da minha brutal insensatez. As minhas mãos apressam-se a pegar nos pincéis e na paleta imunda e quebrada, onde o negro, o vermelho e o horror são as minhas cores preferenciais. Rasgo tela, pele, carne e dilacero a alma como um cão raivoso dilaceras pernas de uma criança incauta pouco lesta. Nem sei por onde começar contigo...
Odeio-te! Odeio que oiças estas palavras, pois se as ouves é porque eu te as digo, porque eu existo e estou aqui, a pintar mentiras e cadáveres de beleza em honra da tristeza e delírio a que por ti fui remetido. Odeio o som das lágrimas a caírem sobre o meu peito, o bater interminável do teu coração em pânico que me martela a cabeça como se fosse o meu próprio crânio a querer fechar-se para sempre, para acabar para sempre comigo e com as minhas obras de arte. Odeio a textura áspera e agreste da tua pele, molhada e fria de suor e terror, está gelada quando sente o toque das minhas mãos brutas e impacientes, que querem enterrar-te debaixo desta casa de solidão e dor, o desespero... o desespero!!!!!!!!
Não aguento mais, vou avançar para ti e olhar-te nos olhos de criança catatónica, olhar-te nos olhos e ver que a tua alma há muito que já lá não habita, olhar-te nos olhos e ver-me como eu nunca fui, como nunca estive vivo. Quero odiar-me tanto como te odeio a ti, mas não consigo parar de te contemplar e esboçar mais uma pincelada de julgamento, condenação e morte na tela onde o branco já é apenas uma memória longínqua e aborrecida.
Tudo se torna lento, nada há mais para temer ou sentir. Nem para entender. Nem para entender...
Há medida que os últimos minutos escorrem do relógio de parede, nesta sala de paredes de estuque velho e amarelecido, onde a tinta se encaracola como a casca de um freixo em chamas, contemplo a tela, a pintura que eu tão cuidadosamente fiz para ti.
Não resta mais tempo. Tenho a dizer-te uma palavra final. Vou levantar a cabeça, olhar no espelho e ver-te/me uma derradeira vez. Depois subo ao banco e espero a visita do anjo negro. A corda está tensa, e o banco balança. Somos livres.

24 de Fevereiro de 2005
Der Uberlende

Wednesday, February 23, 2005

Estou a ler o dito cujo...

Tuesday, February 22, 2005

Carta de Refugiado - 500 palavras

Mais um contributo de noiseformind para o desafio 500 palavras. Muito obrigado, é com grande prazer que o publico aqui...

Caro Doutor,

Esta é a terceira vez que comunico consigo, e a última foi já há muito tempo, por isso não espero que se lembre. Mas para resumir muito, digamos apenas que sou um mentiroso patológico que enjoou da sua vida aí pelo povoado D’El Rey e para fugir ao suicídio (que aliás, é crime ; ) ) me deslocalizei aqui para o Japão (ninguém me pode acusar de o ter feito para cortar nos custos, dado que a vida aqui é muito mais cara). E aqui encontrei uma comunidade de refugiados ocidentais, alguns vivendo de quase nada mas cravando os que vivem com muito. Estamos quase todos situados em Tóquio (pois, grande cliché, eu sei), quase todos trabalhámos em “Iguich’is” que basicamente são empresas que beneficiam de apresentarem ocidentais na fachada, tais como empresas de marketing, hotéis, restaurantes ocidentais, etc etc etc. Pode-lhe parecer extremamente estranho, mas é um facto: aqui podemos ter um emprego só pelo simples facto de sermos “gaij’in”. Eu não vou mentir, tirando o sexo e a leitura, não tenho sido uma parte muito activa desta comunidade estranja. Tipo… passei tantos anos a fazer negócios ilegais, a enganar meio-mundo para agora fazer o q… trabalhar? Não… nem pensar… lamento imenso não ser íntegro, lamento imenso não ter vontade de contribuir para o bem do mundo, o mundo de certeza que não contribui para o meu. Mas estou a tentar mudar. Tipo… já tenho um emprego em part-time num hotel, organizo os jantares nas salas VIP de um Hotel aqui na Zona Alta de Tóquio, chamado Kyoshubi (que basicamente quer dizer “jardim” mas que é sinónimo de “melro” dado que os melros são as aves que “tratam” dos jardins, daí que melro é sinal de jardineiro com outra entoação) e estranhamente, sendo um dos hotéis mais japoneses do Japão TODAS as salas VIP são decoradas segundo o padrão e o gosto estrangeiro. É um trabalho que dá algum dinheiro, pode-lhe parecer muito (cerca de 8000 euros) mas aqui em Tóquio isso dá para ter um T0, passe social, alguma vida social e pagar uns espectáculos de 2ª categoria. A comunidade estrangeira com que me dou melhor é a que é maioritariamente constituída pelos europeus de Leste, normalmente moscovitas que vieram por via de contactos com empresários japoneses que conheceram em estabelecimentos de diversão nocturna lá na terra deles (vulgo strip-clubs). Gosto deles porque normalmente as histórias deles têm uma inevitabilidade que se aproxima bastante da minha própria. Tipo, mais inevitável do que simplesmente desaparecer do mapa, algures entre o Brasil e a América, deixando a família, 3 namoradas e toda a gente que se conhece para trás não deve existir muito quem não é? Mas pronto, a vida aqui é razoável, dentro do possível, tirando a chuva, eu detesto chuva, odeio chuva e ela aqui não pára de cair. A sério Doutor, se não gosta de chuva não venha a Tóquio, Não pára de cair sobre nós seres humanos… sofrimento

Com um abraço me despeço,

Luís

Saturday, February 19, 2005

Três poemas - 500 palavras

O primeiro email que recebi da Marta era tremendamente depressivo. Em primeiro lugar porque não a conhecia de lado nenhum e depois por causa da súplica de ajuda que me pedia desesperadamente. Passo a transcrever um dos primeiros poemas que me enviou,

Desabafo
Detesto a Terra
Queria ir-me embora e nunca mais voltar
A vida só me dá vontade de vomitar
Vocês sabem que eu tenho razão
Afastem-se de mim
Preciso de espaço para respirar
As coisas nunca estiveram tão mal
Tenho a sensação que estou prestes a sufocar


Fui apanhada de surpresa, não sabia muito bem como reagir!. Com toda a calma e displicência que me foi possível tentei responder imediatamente enviando palavras de força e esperança. Mas com a Marta os clichés não funcionavam. Estava no fim do poço, bem lá no fundo e parecia-me impossível ajudá-la a subir tal era o desespero e tristeza. Como é que uma pessoa se pode deixar cair neste estado? Começamos a trocar emails mas muito espaçadamente. A Marta não acreditava muito na minha existência virtual. Tentei marcar um encontro mas eu morava no Norte e ela no Sul, e foi impossível pelo menos nos primeiros tempos. Depois passámos a falar ao telefone. Geralmente a Marta telefonava-me quando estava completamente desesperada e com ideias suicidas. Eu tentava ouvi-la e compreendê-la sossegadamente, dando-lhe palavras de esperança e principalmente companhia, mostrar-lhe que não estava sozinha, eu estaria ali sempre que precisasse nem que fosse para ouvir o seu silêncio Mas os problemas da Marta mal tinham começado... Primeiro foi a depressão que trouxe a anorexia e depois esta trouxe a auto-mutilação. Um dos poemas que me enviou na fase da anorexia foi,

Anorexia
Logo ao levantar
O corpo começa a fraquejar
De uma noite mal dormida
O estômago já só aguenta a cafeína
Pêlos arrepiados evidenciam o frio sempre presente
Tento abrir a boca petrificada
Mas este corpo quase sem vida já só respira
Os livros e o computador são a minha única companhia
Não tenho mais forças para lutar
Pois já não consigo dominar
Este corpo transformado em cadáver
Perdi os amigos e a felicidade
Agora só me acompanha a dificuldade
Em acreditar que ainda estou viva
Que m**** é esta que me persegue?

Uma das fases mais difíceis por que passou foi quando se começou a cortar com o x-acto nos braços e pulsos. “Foi tão bom E., acabei de tirar o peso todo de cima dos ombros, deitei-me a chorar mas interiormente sorri aliviada”. Passaram-se mais ou menos dois anos até que finalmente me consegui encontrar com ela. Abraçamo-nos efusivamente, até então estivemos geograficamente longe mas emocionalmente muito perto. Conversámos longamente durante dias, conhecemo-nos melhor... Entretanto, um dos últimos poemas que me enviou,


Eu adoro todas as coisas
Amo a minha caneta
Amo os meus amigos
Amo as pessoas
Amo os animais
Amo as flores
Amo os livros
Amo aquilo que os meus olhos vêem
Só assim
Dando-me e amando a humanidade
Me amo a mim
E engrandeço a minha personalidade

Friday, February 18, 2005

4º ano, apenas mais um contributo para o desafio 500. Desculpem qualquer coisa...

4º ano
No centro comercial, estava um casal com um bebé. E ao lado deles um vagabundo que anotava tudo num naco de papel, trazido do WC. Os transeuntes vagueavam em volta, procurando preencher os nadas que tinham por dentro nos nadas das lojas por fora. O casal lanchava no McDonalds e enfartava o bebé com carne de vacas que pastam noutros continentes. Mas o bebé cuspia a carne num berreiro intrépido e exalava da sua garganta um fedor nauseabundo. Eu era o vagabundo que escrevinhava tudo, enquanto bebia o meu batido de baunilha. Tinha vindo do WC público, onde anotava a preceito as mensagens nazis e recados gay escritos nos azulejos, tão sujos quanto as faces daquele bebé que se agitava, com o anseio precoce de dominar o mundo. Eu compreendia-o porque todos nascemos assim, implacáveis, egoístas, cruéis em estado bruto. Por isso tinha desistido de acreditar em mim. Tinha Posto de lado todas as ambições e sofreguidões do ego, toda a voracidade e avidez dos genes. Tinha-me entregue a uma vida de mendigo asceta, embora apenas fosse visto como um parasita arrumador de automóveis. E ali estava eu a escrever o nojo que sentia daquele casal e daquela criatura que protegiam com tanto egocentrismo. Eles vestiam-se com o luxo da classe alta e o bebé tinha adornos de marca. O bebé era em si mesmo um adorno. O sorriso daqueles pais não reflectia os extremosos cuidados parentais, revelava sim um orgulho vencedor, uma vitória pessoal contra todos os que perpassavam nas montras vítreas e irascíveis, que eram os olhos vis daquele casal. E um desejo animal levou-me a escrever sobre esse casal que pensava viver o melhor das suas vidas, exibindo o seu troféu aos miseráveis que passavam. Mas de repente, parei de escrever. Incorreu-se-me a ideia mais perversa que algum dia os meus pensamentos acometeram. Acorri ao que restava do naco de papel para excretá-la, mas tarde demais. Já estava dominado por aquela ideia, restava-me executá-la.
Aproveitei que a mãe se ausentasse. Que o pai se distraísse com um suspeito telefonema. E raptei-a. Reparei que era uma menina.
Os pais terão visto mais tarde que no lugar dela estava um pequeno bilhete:

“Daqui a 4 anos, neste mesmo lugar.
Até lá, hão-de valorizar…”.

É certo que bastariam três anos. O quarto foi um requinte de malvadez, seria o mais difícil de ultrapassar. O ano decisivo para o casal. E durante estes anos dediquei a minha vida à menina a quem chamei Gaia. Deixei de ser vagabundo para poder educá-la com algumas condições, mas longe da vida de opulência e mordomias que a esperava nas mãos daquele casal.
Hoje chegou o dia. Entramos no centro 4 anos depois. Ela vem comigo de mãos dadas e dirigimo-nos ao Macdonalds. Gaia não sabe o que a espera. Eu também não. Sentamo-nos na mesma mesa. Esperamos horas. Mas não vem ninguém. Que terá afinal acontecido àquele casal, neste último ano?
Gaia pergunta-me “Pai, estás a chorar?”.
Mas nada lhe consigo responder.
18 Fevereiro
Der Igel

Thursday, February 17, 2005

Cadernos de Adam Leigh - 500 palavras

Mais um texto de 500 palavras do João Martinho que continua imparável no nosso desafio! Mais uma vez obrigado!


Brenton, Maio de 1943


Esqueci-me do dia e da noite. Esqueci-me de dormir – outra vez.
Saí há duas semanas do hospital, segundo as minhas contas. Disseram-me que lá estive quatro meses. Quatro meses a sarar as feridas de ideais vencidos. Não me lembro bem, mas julgo que estava numa manifestação contra o regime.
Lembro-me vagamente do rosto de Joseph, o nosso camarada; o nosso líder; a nossa voz. Recordo-me perfeitamente, apesar disso, da forma como foi silenciado pelas armas do inimigo – cobardemente mais fortes que as nossas, humildes ideais. Nessa manhã de Inverno, a voz dos que a não têm, calou-se – mas o seu sangue derreteu toda a neve em seu redor. De pouco mais me lembro, apenas da forma como fomos barbaramente agredidos – agressões essas que me levaram ao hospital.
Costumava ser operário, operário têxtil; trabalhava dezasseis horas diárias. Uma vez – incitado por um camarada – cheguei mesmo a liderar uma greve de trabalhadores. Não deu em nada. Por minha causa, os meus camaradas começaram a ser controlados mais de perto pelos vigilantes, que nos agrediam sempre que esboçávamos algum sinal de cansaço. Eu, não sei porquê, fui promovido. Sentindo-se traídos, os camaradas, deixaram de me falar; eu, deixei de me acreditar. Ainda assim, o comité central do partido sempre me respeitou e Joseph chegou mesmo a elogiar o meu trabalho em prol do proletariado, apontando-me como um modelo a seguir. O Joseph, o camarada Joseph, que morreu para dar uma vida melhor aos seus.
Desde que voltei do hospital que não tenho emprego – assim o exigiu o governo, que me dá uma pensão mensal. Ouvi falar disto nas reuniões do partido. Ao que parece, isolam todos os possíveis revolucionários, julgando que assim, lhes roubam os ideais.
Vou-me deitar. Amanhã mesmo, procurarei em todos os olhares, o brilho da indignação. Honrarei, então, o camarada Joseph, acendendo o rastilho da Revolução.


Brenton, Outubro de 1943


Nunca mais tive coragem de escrever e esta será a última vez que o faço.
Ao longo de todo o Verão viajei por todo o país, organizando um exército de pensadores crentes na liberdade individual. Ao longo de todos estes meses, fiz milhares de pessoas acreditarem no que dizia; organizamos metodicamente uma revolução. E por esses dias acreditei que o povo unido, jamais seria vencido.
Numa linda manhã de Outono – enquanto as folhas mortas das árvores caíam aos nossos pés – eu, e todos os camaradas, cantávamos alegremente a fraternidade, caminhando em direcção ao Palácio Presidencial. Esperávamos surpreender o nosso inimigo, mas foi ele quem nos surpreendeu, tornando aquele dia, no dia mais sangrento da história da liberdade. Eu sobrevivi, para minha infelicidade. Infelicidade, porque às minhas mãos morreram milhares de utópicos, milhares de sonhadores.
O sangue de Joseph não era o mesmo que o meu; o seu sangue era semente, o meu, tempestade.
Cometi um genocídio ideológico, depois de involuntariamente me ter suicidado. Matei sem saber que não era mais que uma marioneta fascista. Morro agora com raiva, porque não sei já, quais são meus ideais.

João Martinho - Voando à Deriva

Anita dos Cabelos Dourados - 500 palavras

Mais um texto de João Martinho do blog Voando à Deriva para a iniciativa das 500 palavras.
"Desta vez, um conto pseudo-infantil-experimental." Mais uma vez obrigado João, é com muito prazer que publico o conto.



Anita era uma boneca de lã. Vivia no mundo dos sonhos, e lá era feliz. Um dia Anita foi parar às mãos de Mimi. Todos os bonecos tinham este destino um dia – só não sabiam era quando.
Mimi tinha três anos e outras bonecas de eleição. Não seria fácil para Anita ganhar a confiança de Mimi, para se tornar a sua melhor boneca. Anita tinha uns olhos azuis muito grandes – bordados à mão, fios de cabelo dourados, as faces rosadas e um lindo vestido verde com flores e um bolso grande no meio.
É incrivelmente difícil viver no mundo dos meninos de três anos. No infantário, quem tem barbie é Rainha quem tem carrinhos da polícia é Rei. Mimi – com base na sua larga experiência de vida – sabia que Anita não iria ser bem aceite nas reuniões semanais da corte do infantário. Sabia que iam acusar Anita de ser apenas uma plebeia – não era digna de privar com a nobreza, a não ser que fosse para os servir.
Sim, podem achar uma tolice, mas isso é porque não têm três anos. Quando tinham três anos preocupavam-se muito com a escolha da boneca certa, arrepiavam-se só de pensar que a Maria Francisca podia levar uma boneca igual à vossa. Não acreditam porque não se lembram. Mas provavelmente não se lembram de nada, ou de muito pouco, dos vossos três anos.
As reuniões eram todas as quintas, depois da sesta. Fantasiavam chás exóticos com banais pacotes de leite achocolatado, e os bolos eram tratados como biscoitos. – Não, não estou a exagerar. Os meninos aos três anos são os melhores observadores do meio envolvente. É pena esquecerem-se disso ao festejarem o quarto aniversário.
Na primeira quarta-feira, depois de ter Anita, Mimi teve de tomar uma escolha difícil. Apesar de Anita ser a boneca preferida de Mimi, apesar de só a ter há três dias, Mimi não podia levar Anita para as reuniões.
Lacrimejando, e afagando os cabelos de Anita, Mimi disse-lhe que teria de escolher outra boneca – que não a podia levar para a reunião – ou as amigas iam gozá-la, ou pior: ignorá-la. Por um momento, Mimi diria que viu Anita a deixar cair uma lágrima. Ao acordar, Mimi reparou que Anita não se encontrava ao sei lado, onde tinha adormecido. Alarmada, começou a procurar a sua boneca por toda a casa, e encontrou-a no chão da casa de banho – mal pintada de baton da mãe de Mimi. Perante este cenário, Mimi pegou na sua boneca, limpou-lhe a cara e decidiu levá-la para a reunião. Apercebeu-se que estava a ser egoísta. Mimi e Anita eram amigas, e se as outras meninas não quisessem aceitar isso, ela não se importava. Anita surpreendeu toda a gente com a sua cultura. Citou autores como Soapbuble ou Algodão Doce, deixando todos boquiabertos. Mostrou a toda a gente que ser de plástico não é um posto. Provou que a amizade e a imaginação são bem mais úteis, com três anos ou com muitos mais.
Jõao Martinho - Voando à Deriva

Tuesday, February 15, 2005

Túnel; 500 palavras para um blog

Túnel
Longas tardes de verão, intermináveis... O zumbido das abelhas, atarefadíssimas na colecta do pólen das flores silvestres que aqui e ali desabrochavam, as andorinhas que nos fazem voos razantes quando jogamos à bola debaixo dos ninhos pendurados no telheiro da minha escola. Como é bom pregiçar, sentar no alcatrão quente e contemplar os transeuntes com olhos semicerrados, especialmente quando passa a Sarah e suas amigas, enquanto deleitadamente me escoam as melodias mágicas dos meus headphones pelos meus ouvidos sequiosos adentro. No entanto há algo que constantemente perturba este límbico equilíbrio: a visão daquele túnel. Detesto ter lá passar, evito-o sempre que posso. Chego a dar a volta a dois quarteirões só para não ter que passar por debaixo daquela arcada longa, sinuosa e escura, coberta de musgo e fungos viscosos, onde o eco dos meus passos me parece perseguir com intentos pouco amigáveis. Dizem que mataram lá um vagabundo. Era o velho Jack, um marinheiro que tinha dado 7 voltas ao mundo, dizia ele para quem aguentasse o bafo da etilizada criatura, cujo fedor fazia o nosso balneário lá do futebol parecer quase agradável. Dizem que foi ao entardecer. Alguém esperou que Jack passasse pela curva do túnel para o esfaquear 3 vezes na barriga. Dizem ainda que lhe arrancaram os olhos e desenharam pentagramas satânicos com o sangue dele na parede podre e húmida do maldito túnel! Eu não suporto passar lá... Uma vez, ia já preparado para dar a volta aos dois quarteirões quando me pareceu escutar as vozes da Sarah e das amigas. Lá me enchi de coragem, feito cavaleiro da távola redonda, peito cheio e nariz empinado, prontinho para passar no túnel armado em valente. Estava a dois passos de o fazer, quando senti um calafrio na espinha! Avancei, lento e tacteante, o coração a querer saltar-me da boca, mãos trémulas, gélidas e suadas, boca seca como um osso. Olho atentamente, tentando ver para além da malfadada curva onde o Jack conhecera o triste fim. Um pingo de água suja e fria cai do tecto directamente na minha testa... quando do nada, salta da curva um gato preto a miar estridentemente na minha direcção, a correr a toda a velocidade. Meu deus, se a Profª. Beth me estivesse a cronometrar mandava-me directamente para a equipa olímpica, tal a velocidade com que me pirei dali p’ra fora! Quando parei quase vomitava de ansiedade, ... e de vergonha! Se alguém me tem visto fazer aquela figura...
Um dia estávamos todos a jogar futebol, quando num daqueles lances idiotas em que chutei a bola com demasiada força, esta foi parar ao túnel, para além da curva. Claro, todos me mandaram ir buscar a bola, óbvio. Ninguém gostava do túnel, mas com 12 anos essas coisas não se admitem. Lá fui. Assim que entro sei que não estou sozinho. Dispara o coração. Seca a boca. Suam as mãos. Ao entrar na curva, sinto uma mão puxar-me e agarrar-me! Era a Sarah, a dar-me o meu primeiro beijo de amor.

15 de Fevereiro de 2005,
Der Uberlende

Platão, Homero, Ésquilo, Confúncio, Virgílio...

"Somos subeducados, atrasados e analfabetos; e neste particular confesso que não faço grande distinção entre a ignorância do meu concidadão que não sabe absolutamente ler nada, e a ignorância do que apenas aprendeu a ler o que se destina a crianças e inteligências medíocres. Deveríamos estar à altura dos grandes da Antiguidade, mas em parte por saber primacialmente quão grandes eles foram. Somos uma raça de homens-passarinhos; nos nossos voos intelectuais mal nos alçamos um pouco acima das colunas do jornal."
Walden ou A Vida nos Bosques – Henry David Thoreau


Leio e releio este parágrafo vezes sem conta! Faz-me perceber quanto tempo já perdi em leituras inúteis e supérfluas. Frequentemente procurámos leituras fáceis que pouco nos ajudam a evoluir e enriquecer intelectualmente. É preciso continuar a trabalhar para elevar a nossa leitura, pensamento e conversa.

Nunca me lembro de ler a um ritmo tão vagaroso como leio agora.

Matutina

Sou claramente matutina. Trabalho melhor de manhã. Gosto de me levantar bem cedo. Tenho estado de férias e todos os dias me levanto às 8:00. Deito-me por volta da 00:00. À noite não consigo fazer grande coisa, nem estudar, nem sequer vir para a internet. Desde que me lembro de existir que me levanto cedo e privilegio a manhã. Gostava de ser nocturna, de apreciar o silêncio e quietude da noite mas não consigo! Noite para mim é sono, é dormir. Jamais verão um post ou comentário meu publicado a partir da 00:00 pois deixo de estar operacional. Durante o ano as únicas vezes em que me deito tarde e levanto tarde são em circunstâncias especiais como passagem de ano, férias com amigos, enterro da gata... E mais um pormenor interessante, se durmo mais do que 8 horas fico o resto do dia com uma dor de cabeça infernal, insuportável! A vida é dura...

ps- apeteceu me escrever estes dois post´s, mas o desafio 500 continua... não quero quebrar este ritmo poderoso que estamos a atingir caros companheiros!, já estou a preparar o meu próximo texto 500

Monday, February 14, 2005

Terceiro poste a contar da rampa - 500 palavras para um blog

Todos os dias o mesmo trajecto. Às 7h27 apanhava o comboio, chegava ao cais do Sodré às 7h45, e ao emprego às 8h00. Esperava pelo comboio sempre no mesmo sítio, o terceiro poste a contar da rampa, de pé, segurando a sua mala de cabedal à frente do corpo. Era uma mala velhinha, já com os seus vinte anos, que o pai lhe tinha dado quando ele terminou a faculdade. Como tinham passado rápido, sempre no mesmo sítio, terceiro poste a contar da rampa. No emprego era visto como um homem pacato. Almoçava sozinho, sempre no mesmo restaurante. No comboio, lia ou dormitava. Já se tinha habituado tanto à paisagem que via do comboio, que não reparava mais no reflexo do sol a nascer no mar, na solidão estóica do Bugio… Ao princípio sim, ficava pasmado a olhar, vendo cada dia amanhecer diferente do outro, mas agora dava-lhe mais prazer encostar a cabeça à janela e sentir o embalo do comboio, regular e previsível.
Um dia esperava na estação, terceiro poste a contar da rampa, quando ouviu um riso de criança que lhe chamou a atenção por não saber de onde vinha. Olhou em volta, constatando que era a única pessoa na plataforma, com excepção de um bêbado que dormia num dos bancos, com uma garrafa de vinho aninhada entre os braços. Era impossível ter sido ele a dar aquela gargalhada tão cristalina. Outra vez, soou o riso. Intrigado, o homem aproximou-se da beira da linha, porque lhe parecia que o som vinha dali debaixo. De facto, ali estava. Um rapazinho dos seus 4 anos, de cabelo castanho encaracolado e narizinho arrebitado e sardento. Ria-se e tapava a boca com a mão. «O que fazes aí, menino? Olha que isso é perigoso!!» O miúdo, obviamente deleitado com a atenção, pegou numa pedrinha e fez pontaria ao mendigo. A pedrinha acertou-lhe bem no meio da testa, mas ele apenas agitou a mão à frente da cara como para afastar um visitante indesejado e continuou a ressonar. «Que malvado que me saíste… Anda, sai daí. Chega-te aqui que eu puxo-te para cima, vá.», disse o homem. A criança gargalhou outra vez, apanhada em falta, e começou a correr pelos carris afora, olhando para o homem numa provocação clara. Então tropeçou e caiu, deixando um fio de sangue a escorrer do joelho. Virou para o homem uns olhos grandes e lacrimosos, parecia ir desatar num pranto. O homem largou a pasta e desceu para a linha, correndo para o menino. Mas este levantou-se outra vez e novamente começou a correr pela linha, rindo alto. O homem acelerou e finalmente, alcançou-o, e puxando-o por um bracinho, disse «Já te apanhei, malandro!», esbaforido pelo esforço da corrida. Mas na cara do menino, já não havia olhos grandes, nem sorriso, nem lágrimas. O maquinista tentou travar, mas não foi a tempo de evitar o embate. Demoraram três horas a recolher os pedaços espalhados pela linha, mas só encontraram duas pernas, dois braços, uma cabeça. Nenhuma criança.

A felicidade não tem 500 palavras

Foi com enorme prazer e alegria que recebi esta contribuição de João Martinho para o desafio 500 palavras. Convido todos os bloggers que passarem por cá a visitarem o seu blog Voando à Deriva. Imperdível. Obrigado João!



"Mark era toxicómano. Perdia-se por entre copos meio-cheios de whisky e pontas de charros esquecidas no sofá. Há muito que a sua vida deixara de ter sentido. Não conhecera o pai e a mãe não lhe merecia tal consideração. Crescera num bairro pobre dos subúrbios, no meio de histórias tão estranhas e deprimentes como a sua. Como quase todos os seus companheiros, Mark começou a fumar muito cedo; não se lembra sequer da idade que tinha na altura. Pouco depois experimentava o álcool e marijuana; começou a cheirar cola e gasolina. Abandonou a escola depois de aprender a ler e escrever. Dizia ele que o resto podia aprender sozinho; e assim o fez. Arranjou um emprego precário num alfarrabista da cidade. A partir do pó recordou Camus, Wilde ou Tolstoi; a partir do pó começou a escrever os seus devaneios. A partir do pó dos livros aprendeu; a partir do pó que comprava no metro, tornou-se escritor.
Escrevia na rua, sobre a rua, para a rua. Sabia que era genial, mas do alto da sua insanidade, rasgava todos os pedaços de literatura que produzia. Escrevia para si, porque mais ninguém queria ler. Escrevia para si, porque era extraordinariamente brilhante para ser compreendido.
Um dia conheceu Jane, estudante de filologia clássica. Jane era a primeira pessoa que entrara no alfarrabista, desde que Mark começara a trabalhar lá – já haviam passado dois anos. Mr. Gibson não parecia importar-se muito com o prejuízo que a sua loja – localizada na cave de umas velhas e abandonadas galerias – lhe dava. Era herdeiro da fortuna de um grande mecenas, ao qual prometera disponibilizar à comunidade, a sua vasta biblioteca.
Jane estudava na Faculdade de Ciências Humanas, que ficava a dois quarteirões da loja de Mr. Gibson. Todos os dias, no caminho para a faculdade, Jane passava pelas galerias, sempre sem notar que se tratava de um espaço comercial. Por mero acaso, uma dia – quando passava por lá – ficou intrigada com o vulto de Mark, que viu carregando uma obra, que julgava inédita, de Sofócles. Decidiu segui-lo.
Mark era anti-social. Não tinha amigos e nunca tinha tido uma namorada. Ao ver Jane, entrar na loja, Mark corou, fechou apressadamente o livro que lia e gaguejou um “Bom dia”. Jane inquiriu Mark sobre autores clássicos. Ele, atabalhoadamente, entregou-lhe quatro diferentes livros e disse-lhe: “Leve, leve! Já os li e são dos livros da minha vida”. Impressionada e intimidada, Jane agradeceu timidamente e saiu.
Jane viria mais tarde a viver com Mark durante quase quatro anos. Mark encontrara um novo rumo e escrevia agora para mais outra pessoa. O seu mundo crescera, e com isso, crescera também, a sua imaginação literária. Escrevia agora a um ritmo alucinante. Graças a Jane, os seus manuscritos começaram a circular no meio intelectual de Nekorb City. Quando começava a ser aclamado por algumas vozes, Mark morreu. As misturas explosivas de estupefacientes, anti-depressivos e álcool haviam surtido – finalmente – o efeito desejado.
Jane suicidar-se-ia dias depois. Uma dose de cicuta ser-lhe-ia fatal. O amor também.
João Martinho - Voando à Deriva"

Sunday, February 13, 2005

Norganth & Malrog, mais uma contribuição de 500 palavras

Norganth & Malrog
Estão frente a frente. Caídos no solo onde assenta finalmente a poeira, reveladora de um cenário trágico. Milhares de corpos mutilados tingem de vermelho as gramíneas repisadas e atraem os escaravelhos necrófagos. Um conluio de grifos sobrevoa as estepes em redor da carne fresca.
Norganth & Malrog
Olham-se num vagaroso silêncio, derrotados pelo cansaço que os unifica. Na espada de Norganth escorre a fatalidade do inimigo. O olhar de Malrog esvai-se lentamente, enquanto as golfadas de sangue se evadem da jugular e sugam-no para um abismo desconhecido. Mas dos seus lábios exangues fremem-se umas palavras enrodilhadas na expectoração sanguínea. Norganth inclina-se com esforço sobre o peito de Malrog, tentando escutar as últimas palavras do homem a quem desferiu o último golpe.
Malrog diz “Vai-te. Tu venceste, não percas mais tempo com os mortos”. Norganth aquiesce, baixando a sua cabeça complacente, respeitando a morte do ódio que alimentou durante toda a sua vida. Malrog esboça ainda a intenção de proferir uma última frase.
- Norganth… honra a minha morte… casa-te com a minha mulher… adopta os meus filhos…
Norganth sorri-lhe, mas atrás do seu semblante sereno não contém a comoção. Do olhar mortiço de Malrog parece esboçar-se quase um sorriso, na expectativa da resposta. Norganth inspira fundo, buscando a coragem nos grifos que voam bem alto. Um oceano em turbulência debruça-se do seu olhar, como se no peito de Norganth ascendesse um mar em violenta ebulição. Por fim murmura, ao ouvido de Malrog.
- Impossível… pois também tenho um pedido a fazer-te… Esse sítio para onde vais, hás-de encontrar uma mulher que me procura… diz-lhe que apenas vivo deste lado os dias que me restam e anseio reunir-me com ela… diz-lhe que hoje… que hoje, mais uma vez, falhei.
E esta última palavra foi já proferida com uma voz rouca de emoção. Norganth abandona-se sobre o chão manchado de sangue, num choro convulsivo e insano. Mas as suas palavras já não terão sido ouvidas por Malrog. O olhar baço do inimigo, fixo no infinito, finalmente abandonara-o.
Decidido, Norganth ergue-se devagar no desolador campo de batalha. Está completamente só. Esta vitória épica foi, afinal, mais uma vitória da sua solidão. Mais uma vez entregue aos seus passos vagabundos e incertos, condenado a um mundo de fantasia. O bando de grifos famintos desceu finalmente sobre os cadáveres. Mas na linha do horizonte, A silhueta de uma outra rapina paira solitariamente sobre as estepes. Norganth olha-a profundamente e uma nova força volta a tomar-lhe conta dos braços. Agarra na espada com a sua mão vigorosa e caminha na direcção do horizonte, na direcção da rapina.

“JOÃO! JOÃO VEM APAGAR AS VELAS!”

São as vozes que surgem em uníssono da sala, perturbando o estado hipnótico de João, trazendo-o à superfície. “Norganth” é agora apenas um nickname escrito num ecrã branco, frio, vazio. E ele grita “Já vou!”. Desconecta-se da Internet e ergue-se na cadeira. Afinal, ainda ninguém morreu na sua vida. Ele próprio vai fazer 30 anos e ainda não matou ninguém.

13 de Fevereiro de 2005,
Der Igel

Friday, February 11, 2005

Cordeiro; 500 palavras para um blog

Cordeiro
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã era branca como neve. E para onde quer que ela fosse, o cordeirinho ia com ela. Além do cordeirinho, ela tinha um pai e uma mãe. O pai era uma espécie de fantasma grisalho, que chegava a casa sempre a horas de a Mary estar a dormir na sua caminha de ferro forjado. A mãe, uma criatura assustadiça e despropositadamente agressiva, que fugia da Mary como se ela tivesse a peste negra, pois não fosse a maldita criança estragar-lhe o penteado, sujar-lhe o vestido haute-couture, ou pior, faze-la parecer uma domestica ou serviçal perante as suas amigas, ao tratar de uma fedelha maltrapilha e a cheirar a “campo”. O papá era mais complacente, deixava a Mary aproximar-se dele. Mas Mary não gostava de se aproximar muito, o cheiro a vinho misturado com tabaco e perfume de mulheres que ela não conhecia assustavam-na e deixavam-na inquieta. Mas mesmo quando se aproximava, reparava que os olhos do papá vogavam longe dali, p’ra outro lugar, onde a Mary era apenas uma intrusa numa terra estranha de alienação e deriva. “Papá?”, chamava Mary, entre lábios estreitados pelo medo e desconfiança. Invariavelmente recebia um rouco gemido seguido de um suspiro “minha querida filha,...” e um voltear de cabeça em tom fúnebre. O papá também tinha ele um papá lá em casa, o avô de Mary. Como o avô gostava de Mary, adorava-a. Aliás, ele tratava a pequena infanta de cabelo escuro de fartos caracóis e olhos enormes e azuis como o mar invernoso com um afecto algo estranho e inusitado para uma criança daquela idade. Na verdade, ele tratava Mary como uma mulher, no sentido em que nenhuma criança devia jamais conhecer. As intermináveis horas passadas na cave ao colo do avô, a ser acariciada por aquelas mãos rugosas e ásperas, a sentir os lábios suados e a língua verminosa a percorrer-lhe o corpo alabastrino de anjo barroco abandonado numa vala imunda e atascada e lixo e cadáveres de crianças que nunca o chegaram a ser, o ruído do cinto a roçar no chão, tudo isso fazia parte do enorme e carinhoso amor do avozinho de Mary.
E o cordeirinho estava sempre por perto, abúlico e tão indiferente ao sofrimento da sua preceptora quanto um animal verdadeiramente torpe e estúpido como os cordeiros podem ser.
Mary cresceu, e o cordeirinho continuou perto dela. Para onde quer que fosse, o cordeirinho seguia. E uma noite depois de encharcada mais uma almofada em lágrimas e gemidos silenciosos de horror e dor, Mary desceu à vergonhosa cave. Olhou-a uma última vez antes de decidir. E decidiu. Pegou na antiga foice do avozinho, cheia de ferrugem e restos mortais de ervas daninhas decepadas e avançou. E o cordeirinho avançou com ela. E nessa noite visitou o papá adormecido e dormente, a mamã frígida e ausente e o avozinho, que dormia profundamente com um sorriso de satisfação nos lábios finos e suados.
Mary tinha um cordeirinho, cuja lã estava manchada de vermelho vivo.

11 de Fevereiro de 2005,
Der Uberlende

Vadiar

"- Sabes tenho a impressão de que quero fazer da minha vida alguma coisa mais do que vender títulos.
- Está certo, então. Entra para um escritório de advocacia ou vai estudar Medicina.
- Não; não é também isso que eu quero.
- Que queres, então?
- Vadiar – replicou ele calmamente."

"O Fio da Navalha" – W. Somerset Maugham


E porque não? Para Larry vadiar significava procurar um sentido para a sua vida. Passava dez horas diárias na biblioteca a ler, depois foi trabalhar para uma mina de carvão, em seguida viajou para a Índia... Subsistia com um rendimento mínimo.

Também eu tenho vontade de pôr uma mochila às costas e partir em descoberta do mundo. Procurar a aprendizagem em contemporâneos mais cultos, descobrir sons, cheiros, livros...
Só me falta é o rendimento :)

Dúvida

Porque é que, hoje em dia, só existem professores de filosofia e não filósofos?

Henry David Thoreau

Segundo Thoreau um homem é rico em proporção ao número de coisas de que pode prescindir, e quanto mais se possui bens materiais mais pobre se é!

Tenho que continuar a treinar o meu despreendimento em relação a bens materiais e supérfulos.

Quero morrer nas tuas mãos; 500 palavras para um blog, by Der Igel

Quero morrer nas tuas mãos
Hoje, antes que partas. Quero ser hoje nas tuas mãos toda esta saudade do que já fomos sem termos ainda sido. Ser o cheiro dos lugares que nunca antes visitámos juntos, qual castigo de sermos tarde um para o outro, qual criança prematura votada ao abandono, qual cão sem dono, a nossa relação. Por tão bonita, por tão me dar e tu te dares. Assim. Simplesmente assim. Saudade, esta, de me alugares a tua cama, o teu pijama, onde eu sorva o mosto do silêncio que ficou quando te foste. Restou o rosto, onde cá vivem Julieta e Romeu, Adónis e Afrodite, tu e eu, e quantos mais como nós. Tragédia esta, de sermos tão frágeis, tão humanos. Miséria esta, ferroada nas nossas veias com a dor de um crucifixo, seres sufixo de tudo o que sou e que não possuo. Flutuo assim, nos anéis da espiral que me leva longe, até longe de seres possível. É indizível esta sensação de te perder em ter-te. E nada disto deveria ser, nada disto deveria dizer-te. Perdoa-me este lado daquilo que não te digo. Vê como um castigo que imponho aos sonhos onde te ponho a navegar, num mar turbulento que nos separa mas que te traz de encontro ao nosso destino, seja ele qual for. Vou querer-te bem, sempre, meu amor, porque te estimo para além do entrelaçar destes dedos que são os nossos. Para além dos sóis que se deponham e dos ossos que se encurvem, para além daquela nuvem que sombreia este último olhar com que nos olhamos. Amar-te é ler-te em livros que já foram teus, sublinhar as palavras que sublinhaste, marcar as páginas que marcaste. Amar-te é beber a água pelo teu copo, como se bebesse o teu corpo. Amar-te é ficar no lugar onde partiste e assegurar-te que estarei aqui todos os dias, a homenagear este sol com que me deixaste, a abençoar todos os beijos que me deste, a cuidar do bem que me fizeste. Juro-te, serei infiel a todos os desejos do meu corpo e deixarei ir-te, para que te soltes. E acolher-te mesmo que não voltes. Mas amar-te é também sair de casa e voltar à vida, com o sorriso que floresce nas pequenas coisas. É olhar-me num relance e ver um belo Homem, desejando aos namorados que se queiram e que se amem. E como Homem viverei quantos caminhos houver para percorrer, deixando a criança ir e correr a partilhar contigo uma vida, a querer envelhecer contigo, a querer ser eu e tu num sonho juntos. E sermos tudo, e sermos tanto em tão pouco e cabermos em tudo. Deixa-me cobrir-te com este manto enquanto esperamos pela tua partida. Deixa-me deitar-me no teu colo, deleitar-me no teu rosto.
Não. Hoje não quero morrer nas tuas mãos, antes que partas. Quero antes ser nas tuas mãos toda esta verdade do que já somos sem termos sido ainda tudo o que vamos ser.
Tu partes. Eu fico. Vamos viver.

10 de Fevereiro de 2005,
Der Igel

Tuesday, February 08, 2005

Escravidão; 500 palavras para um blog

M. andava muito angustiada nos últimos tempos. Telefonava-me várias vezes durante a noite para me contar o que se estava a passar. Tudo começou quando mudou para um apartamento novo. Depois de pesquisar, M. comprou o apartamento num bloco afamado pois nele viviam pessoas de meios elevados como médicos, advogados, professores...
Desta vez não teria problemas com os vizinhos e a segurança seria melhor. Depois de se mudar para lá ficou a saber que por cima morava um empresário e a respectiva mulher, não tinham filhos. Foi logo na primeira noite que o inferno começou. Estava deitada quando ouviu um objecto a partir em cima. Seguiram-se gritos, o arrastamento de um corpo pelo chão, palavras obscenas e murros. M. ficou pálida, petrificada. Pela noite dentro ainda ouviu pequenos gemidos e um choro despedaçante. Sem perceber ainda muito bem o que se tinha passado, M. preparou-se para sair de manhã e foi tomar o pequeno-almoço ao café. Foi quando se cruzou com P., o vizinho de cima, homem corpulento, impecavelmente vestido de fato e gravata. Cumprimentou M. com a maior das gentilezas. M. ficou confusa, suspeitava que ele era um desses escrúpulos que bate nas mulheres. O pesadelo continuou, todas as noites M. ouvia gritos e choros. Como não sabia o que fazer, deixou de dormir, apavorada de medo. Telefonava-me várias vezes, eu tentava acalmá-la e chegou a vir dormir para a minha casa. Sempre que se cruzava com P., no elevador ou no café, ele era muito cordial e gentil, cumprimentando-a e dizendo-lhe que caso precisasse de alguma coisa era só dizer. Como é que este indivíduo era capaz de bater na mulher? Tão simpático, bonito, profissionalmente bem sucedido. Chegou a noite em que M. não aguentou mais, tinha que interferir, não podia continuar a ser espectadora passiva da violência contra uma mulher. No meio da gritaria subiu as escadas e tocou na campainha, P. abriu a porta e perguntou a M. o que queria? M. respondeu que não conseguia dormir por causa do barulho. Foi então que a face sempre gentil de P. se contorceu, assumindo uma forma grave com os olhos a chispar de raiva. Disse-lhe para se meter na sua vida, o barulho que ouvia era da televisão e fechou-lhe a porta na cara. M. sentiu-se fraca, desceu e telefonou-me em pânico. Passaram-se mais dias, a violência continuou. M. telefonou à polícia. Como era a meio do dia, P. estava no trabalho, M. fez de propósito para ver se assim a pobre mulher de P. desabafava com a polícia e pedia ajuda. Após alguns minutos a polícia ter descido, a mulher de P. bateu à porta de M. A senhora estava vestida de preto e com óculos de sol. M. sentiu compaixão mas a mulher de P. deu-lhe uma valente bofetada e disse:

- Que tem você a ver com a nossa vida? Cabra! Se o meu marido me bate é porque eu mereço e ponto final! Ele não tem culpa de nada!

M. mudou de apartamento.

Isto não interessa nada,

Mas confesso que o meu pecado mortal é a preguiça!

Só para dizer,

Que desde que conheci Larry, personagem principal de O Fio da Navalha, a minha vida nunca mais foi a mesma...

Sunday, February 06, 2005

Pedes; 500 palavras para um blog

Pedes-me que te seja fiel, mas não consigo. Não é que eu não goste de ti, não é que eu não te ame. Mas também amo as outras mulheres. Todas são dignas de amor, cada uma bela à sua maneira. Se tivesse que escolher, não saberia como. Vejo as mulheres como um bouquet de rosas. Umas delicadas, ainda fechadas em botão para o mundo, apenas deixando adivinhar a forma completa da beleza. Outras esplendorosamente abertas, opulentas, ostentado toda a sua fragrância quente. Tantas rosas, tantas mulheres. Tu és uma dessas rosas, por isso vês como te quero? Não dramatizes, estou a dizer que te quero. Até gostava de fazer de ti a minha única flor. Pôr-te numa redoma, afastar-te de todo o mal que te possa magoar. Não deixar que nada estrague a minha bela rosa, de espinhos tão atentos. Mas tu não me deixas, sempre a pedir essa exclusividade. Não vês que estragas tudo? Porque não aceitas de uma vez o que te posso dar? Assim, obrigas-me a entrar e sair da tua vida constantemente, como um vento de longe. Se tenho saudades, se tenho vontade, se preciso de saber que há quem arraste os dias sem significado na minha ausência e só acorde para a vida quando estou lá, quem se queira dar toda e só a mim. Não posso deixar que te libertes porque te amo, nem que te prendas porque não te amo o suficiente. Obrigas-me a ser um fantasma que te assola se estás distraída com a morte e não atenta à vida.
No fundo, a culpa é toda tua. Talvez se fosses mais confiante, eu te pudesse escolher para seres a minha única rosa. Não sei, não se escolhem os sentimentos, a verdade é que também podia não te escolher à mesma. Se calhar, aquilo de que gosto em ti é mesmo essa insegurança, esse tactear com que te aproximas da vida. Ficas tão mais indefesa, tão mais pequenina, quase cabes na palma da minha mão. Assustas-me quando olhas para outros homens, e te ris das piadas de outros. Não faças isso. Parece-me que vais fugir, que vou deixar de te ter à minha espera, que vou deixar de ser o homem da tua vida. Fazes-me sentir medonho e só.
Por isso fica, minha rosa. Fica aqui enquanto eu viajo pelo mundo e conheço outras rosas, fica aqui enquanto eu aqueço outros corpos. Não te sintas mal… Não tenhas vergonha dos teus sentimentos, nem digas que é miserável a tua obsessão, que é impossível o nosso amor. Quem sabe… Todos os teus sentimentos valem a pena, mesmo que eu nunca esteja ao teu lado para receber os teus abraços, nem ouvir as tuas palavras, as tuas alegrias e tristezas. Não caem em saco roto, minha linda. Ficam registados no meu coração, para deles fazer uma manta de carinhos com que me cubro em noites frias. Entretanto, mesmo longe, estarei sempre contigo. Não vês onde? Bem dentro de ti, neste buraco que escavou a solidão.

O Fio da Navalha

Descobri este fantástico livro num alfarrabista por 2,5 euros.
Na primeira página vem escrita esta mensagem:

Continua sendo sempre tu e nunca a tua máscara e verás que a vida te sorrirá. Com um abraço cheio de felicidades da Zé, Julho 1969”

ps- estou de regresso à blogosfera, os exames já acabaram!

Friday, February 04, 2005

Podes entrar; 500 palavras para um blog

Podes entrar.
Deito-me de costas, com as mão atrás da cabeça, e vejo as estrelas a aproximarem-se lentamente, arrastando o seu brilho intemporal numa cauda de luz branca fria e imortal. As flores que deixas-te na jarra soltam um último suspiro antes de murcharem de vez. As pétalas caem uma a uma, secas e abandonadas, tristes e negligenciadas, rasgadas pela abrasão áspera do contacto com os estilhaços do meu coração. O som sibilante das folhas a encarquilharem lembram-me dos teus beijos, azuis cobalto, que me arrastavam ansiosamente para os teus lençóis pantanosos, de onde eu nunca queria sair, onde eu me afundava no teu corpo inquieto, inquietante de tanto ardor e tortura. E tu sorrias quando eu te contava estórias desconexas sobre o amor, e de como este nos obrigava a equilibrar sobre a lâmina afiada de uma navalha já usada em silenciosos suicídios.
E agora, tu questionas-me porque te peço para sair. E pedes-me para ficar, só mais desta vez, só mais uma vez, só mais uma noite de miséria e prometes-me que mudas tudo, deitas fora a tua língua de mel e cianeto, as tuas garras felinas de gato desconfiado e traiçoeiro, que queimas as milhentas páginas de argúcia e lógica disforme que me obrigaram a deitar-me no teu leito tanta vez, quando me pedias para eu morrer para ti, sacrificar-me a ti, mulher-altar onde por ti derramaria para sempre a minha vontade própria e para sempre me prometia a ti, para que de mim fizesses dor e vontade, amor e verdade, ódio e complacência, histeria e demência, solidão e vertigem final rumo ao nada, só nós dois, sem ninguém a controlar a velocidade a que descíamos vertiginosamente nessa espiral negra que nos afundava a cada contorção dos nossos corpos inquietos e moribundos de pesar, de martírio e piedade, de palavras que não acabam, de ouvidos que não ouvem, de olhos que não vêem, de agonia que não finda. Até ao dia em que acaba.
E no dia em que acaba, descubro que afinal estou vivo. No dia prometido ao meu derradeiro sacrifício, descubro que afinal eu sou. Sou mais do que os restos humanos com que te banqueteavas na tua gula por atenção e dependência, sou maior do que o fantoche que fazias dançar ao som da tua esquizóide valsa lenta e interminável, sou mais forte do que as tuas palavras reptilíneas e de auto-engano que escorriam da tua boca, sou mais brilhante do que a lâmpada fosca e suja que iluminava o nosso quarto, e sou capaz de me manter de pé quando tu ainda me chamas e imploras que rasteje de volta para o teu ninho de desespero terminal.
Hoje, sinto-me como o profeta a quem foi anunciado a ressurreição do espírito, doce anjo Gabriel, que me beijaste a face e me mostras o mundo como eu já não o sabia ver, que pegaste em mim e me ofereces flores novas e belas, de tanta cor que quase fiquei cego.
Posso entrar no teu mundo?

4 de Fevereiro de 2005,
Der Uberlende

Tuesday, February 01, 2005

Espelho; 500 palavras para um blog by Der Igel

Espelho

É mais um dia em que me arrependo de ter acordado com vida. Penso nisto todos os dias que acordo e fico às voltas na cama, envolto no costumeiro tédio que brota das estalagmites da almofada. A fada fria, jaz no pranto seco sonâmbulo dos cantos dos olhos com que não vejo mais que a morte. Mas todos os dias também penso que “é hoje que me levanto”, “hoje levanto-me com a determinação de ser alguém”. Mas logo esmoreço, imobilizado pelo colete-de-forças de todas as manhãs. Todas as manhãs transformo a frustração em luxúria. Acaricio-me com ódio e fúria, pensando em todas as mulheres que não existem por trás dos anúncios dos jornais, dos cartazes nas paredes que insultam e apoucam os venais caminhos que não tracei para mim próprio. Acario-me sem estima, torpe e frio, sabendo que sou a prostituta em cima de mim próprio. Fujo dos pensamentos presos no meu corpo, para longe das recordações inertes nos pensamentos, da morte prematura que me chama do interior dos pulsos. Mas a luxúria é efémera. O tédio é maior e prevalece. Perpetua-se nas veias, tece cefaleias, sintomas dos metabolitos secundários dos meus próprios julgamentos.
Mas hoje, quem sabe, é um novo dia. “É hoje que me levanto” e deixarei de ser a personagem patética que inventei para me defender do mundo. A personagem mal construída sobre uma infância mal resolvida. Deixarei aquela sombra de mim próprio que tanto alimentei sobre esse eu que nunca alcancei nem nunca estive perto de alcançar. Deixarei de ser o quem teria sido e nunca fui, esmagado entre a criança que nunca floresceu e o velho eremita que definha e atrofia na caverna onde nunca o encontrei.
E é então que me levanto. “Que vai acontecer?”. Ouso por fim, olhar-me ao espelho, procurando em mim quem me procure, olhando o olhar daquele alguém que lá me olha e vejo uns olhos que desconheço. Eles parecem conhecer-me, pois olham-me fixamente. Serenos, tristes. Alguém mais sábio e tolerante que vive dentro de mim e no entanto não conheço, é um estranho. E aqueles olhos, daquele estranho, parecem querer ajudar-me mas não sei dizer-lhes qual é o meu problema, embora eles já o saibam. E no entanto não entendo o que me querem dizer. São os olhos do estranho que nos meus olhos vive dentro, um estranho que me olha, sem ódio, sem opressão, sem julgamento. Perscruta-me como que me afaga o rosto desfocado, delicado e indulgente para com a minha fraca figura.
É um estranho que viveu comigo todos estes anos e eu sempre o silenciei, oprimi, sempre o ofendi, repudiei, reconstruindo-me por cima dele, matando-o de asfixia, de inanição. E no entanto ele ainda vive e olha-me por dentro do meu olhar, disposto a perdoar-me por tudo, tão disposto a ser tudo o que me resta. Eu que julguei que o tinha morto. Eu é que estou morto, ele veio para me ressuscitar. Sustentando-me, do fundo do olhar onde que me olho. Hoje, vou-me levantar.
2 de Fevereiro de 2005
Der Igel


 

referer referrer referers referrers http_referer