Pinturas; 500 palavras para um Blog
Os meus olhos já pesam, mas a noite ainda chama por mim. As velas já mal se sustem, derretidas, desfeitas, despedaçadas, mortas, derramadas sobre a madeira rangente do chão desta mansão suja e abandonada. Na minha cabeça ecoam pianos, violinos, flautas e uma voz rouca e cavernosa, que me condena ao ciclo infernal de acordar e adormecer sempre na mesma alcofa de detritos e restos. São os meus companheiros, a multidão que aplaude o meu requiem, a minha obra prima, o desenlace fatal de milhões de riscos desconexos, manchas oleosas coloridas vomitadas para cima de uma tela que antes era de branco virginal. E eu sou a besta que a vai violar, roubar a sua candura e dela fazer banquete e orgia, para sempre escrava da minha brutal insensatez. As minhas mãos apressam-se a pegar nos pincéis e na paleta imunda e quebrada, onde o negro, o vermelho e o horror são as minhas cores preferenciais. Rasgo tela, pele, carne e dilacero a alma como um cão raivoso dilaceras pernas de uma criança incauta pouco lesta. Nem sei por onde começar contigo...
Odeio-te! Odeio que oiças estas palavras, pois se as ouves é porque eu te as digo, porque eu existo e estou aqui, a pintar mentiras e cadáveres de beleza em honra da tristeza e delírio a que por ti fui remetido. Odeio o som das lágrimas a caírem sobre o meu peito, o bater interminável do teu coração em pânico que me martela a cabeça como se fosse o meu próprio crânio a querer fechar-se para sempre, para acabar para sempre comigo e com as minhas obras de arte. Odeio a textura áspera e agreste da tua pele, molhada e fria de suor e terror, está gelada quando sente o toque das minhas mãos brutas e impacientes, que querem enterrar-te debaixo desta casa de solidão e dor, o desespero... o desespero!!!!!!!!
Não aguento mais, vou avançar para ti e olhar-te nos olhos de criança catatónica, olhar-te nos olhos e ver que a tua alma há muito que já lá não habita, olhar-te nos olhos e ver-me como eu nunca fui, como nunca estive vivo. Quero odiar-me tanto como te odeio a ti, mas não consigo parar de te contemplar e esboçar mais uma pincelada de julgamento, condenação e morte na tela onde o branco já é apenas uma memória longínqua e aborrecida.
Tudo se torna lento, nada há mais para temer ou sentir. Nem para entender. Nem para entender...
Há medida que os últimos minutos escorrem do relógio de parede, nesta sala de paredes de estuque velho e amarelecido, onde a tinta se encaracola como a casca de um freixo em chamas, contemplo a tela, a pintura que eu tão cuidadosamente fiz para ti.
Não resta mais tempo. Tenho a dizer-te uma palavra final. Vou levantar a cabeça, olhar no espelho e ver-te/me uma derradeira vez. Depois subo ao banco e espero a visita do anjo negro. A corda está tensa, e o banco balança. Somos livres.
24 de Fevereiro de 2005
Der Uberlende