Luz e Sombra

Saturday, April 30, 2005

Lua (agora versão completa, espero!!); 500 palavras by Stela

“Tenho uma relação muito especial com a Lua”, disse ela. Na cara, o mesmo sorriso enigmático de sempre, de quem sabe tudo e não sabe nada. Fizemos apostas, silenciosamente, cada uma para si. Mais tarde, já sem a sua presença, comentámos na galhofa o que nos passou pela cabeça.

- Cá para mim, ela veio foi da Lua, daí a relação tão especial…
(risos)
- Ou então é uma super-heroína, que vai buscar forças a um mineral que só há na Lua!
- Como o Super-Homem!
- Não, estúpida, o Super-Homem era o contrário… A kriptonite dava cabo dele.
- Ai, é verdade…
-Ela tem é mais ar de serial killer. Com aquele ar de «eu sou tão boazinha!»… Vai na volta, tem cadáveres escondidos na arca congeladora!
(gargalhadas sonoras)
- Que horror, somos tão mazinhas…
- Pobre rapariga. Ela deve sentir-se sozinha.

De solidão percebo eu bem. Mas dela, quanto mais descobria, menos percebia. E os homens?

- Não gostei da forma como ela olhou para o Tiago.
- Porquê?
- Parecia que o estava a querer comer com os olhos! Será que ela não percebeu que ele é o MEU namorado?
- Se calhar é melhor pores um letreiro, da próxima vez.
- «GAJO COM DONA!» Achas suficientemente explícito? Ela é um pouco lentinha…
(risos)

Eu sabia que ela era virgem. Dizia-me que nem sequer pensava em rapazes, mas eu via o mesmo que a minha amiga. Aquela ânsia no olhar, como uma predadora à espera.

- E aquelas roupas?!
- Onde é que ela vai buscar aquilo…
- Coitada...

Coitadas de nós, que não podemos ver uma alma impermeável ao nosso escrutínio sem a querermos destruir. Impermeável?

- Sara?
- Sim…
- Porque é que me estás a telefonar a esta hora?...
- Era só para dizer adeus.

Adormeci de novo, no fundo da minha mente o “adeus” ecoando cada vez mais ao longe. Acordei suada. Adeus? O telemóvel tocava novamente.

- Joana…
- Diz, Carla…
- A Sara… está morta.
- O quê?!

Saltei da cama, o coração aos pulos a sensação familiar do tempo a correr contra a minha vontade, do sangue a fugir, a fugir…

- Ontem à noite… Cortou os pulsos.
- Então era isso, o adeus… - murmurei.
- Quê?

As lágrimas corriam agora pela minha cara e sentia os primeiros sinais de um vómito iminente.

- Ela telefonou-me ontem, eram umas 3 da manhã… Só que eu estava completamente ferrada, e voltei a adormecer logo depois de desligar, nem me dei bem conta do que ela me disse…

- Às 3 da manhã? Deves estar enganada. Os pais encontraram-na na casa de banho à meia-noite, ela já estava morta…

O telemóvel caiu-me da mão, em câmara lenta. Peguei-lhe de novo, sem forças. Terminei a chamada com a Carla, que continuava a falar do outro lado da linha. Registo de chamadas… Chamadas recebidas. Última chamada: Carlita, 08h25. Penúltima chamada: Sara Casa, 02h57.
“Tenho uma relação muito especial com a Lua”, dizia ela.

Friday, April 29, 2005

Um homem com uma criança ao colo, by impressãodigital; 500 palavras

É com muito orgulho e prazer que publico aqui um texto de uma amiga, colega de turma, conselheira matrimonial e sentimental, compincha das ganzas (bem aqui estou a brincar mas só aqui :) Já não era sem tempo, eu que a ensinei a criar o seu blog, a pôr imagens, a pôr os links... e só agora é me responde ao desafio 500? É esta a tua paga?

Directamente das
LeituraSilenciosas, é com muita admiração e orgulho que aqui o publico:

Ontem fiz uma visita ao hospital. Não foi nada demais, uma tosse que me perseguia há algum tempo foi o motivo, ficou tudo em bem.
Mas o que me impressionou nesta ida ao hospital, não foi tanto a confusão das macas, o corre- corre dos médicos e dos enfermeiros, a antipatia da enfermeira chefe ou a má disposição de uma das médicas, ou ainda os doentes, uns melhores do que outros, mas todos a queixarem-se, o que me impressionou foi um homem com uma criança ao colo.
Eu estava na sala do raio-x à espera de vez, esse homem estava com a criança, dos seus dois anos - calculei que fosse pai e filho – tentando acalmar o seu nervosismo manifestado em choro; o pai embalava-o, contava-lhe pequenas histórias tentando faze-lo rir, dava-lhe abraços, beijos, dava-lhe as chaves do carro para ele brincar, foi-lhe comprar um chocolate, mas nada impedia o miúdo de chorar, de se sentir irritado, com medo... Notei que a criança apertava com muita força o dedo do pai quando se aproximava alguém de bata branca e calava-se num soluço apertado, para logo o libertar quando a personagem branca passava, cheguei a sorrir-me nessas alturas...
Fiquei algum tempo a observa-los (era da maneira que não olhava para o meu cateter), o pai limpava-lhe os olhos e pedia-lhe que se acalmasse...a figura do pai: terna, serena, calma, confiante, cheia de certezas, com um sorriso.
Cheguei a sentir-me também eu embalada, quando o pai lhe cantava, cheguei quase a sentir a força do abraço daquele pai e sorri... nenhum dos dois se apercebeu, a criança porque chorava com a cabeça encostada ao ombro do pai e o pai porque só tinha olhos para o filho e eu olhava-os sem sequer disfarçar.
Estavam à espera do médico, que apareceu ao cabo de hora e meia, trazia uns papeis nas mãos, nessa altura já a criança se calara, cansada acabara por adormecer ao colo do pai...O pai também em silêncio ouviu o médico, olhou um dos papeis e com um grito sufocado correu até à janela apertando o filho contra si; o médico correu até ele, tentou acalma-lo...a figura do médico: serena, calma, confiante, sem certezas e sem sorriso.
Quase que senti a aflição daquele homem, que mesmo estando a sofrer, mesmo estando agitado, tentava não acordar o filho e não consegui evitar que as lagrimas me corressem pela face e escondi-me atrás da falsa dor que sentia e que talvez justificasse o cateter, mas o pai nem para mim olhou... Somente olhou o médico nos olhos, mas com o ar de quem nem o estava a ver, e seguiu calmamente até à cadeira mais próxima e chorou...
Quando saí daquela sala, levei comigo um nó no peito, na garganta, olhei para trás e vi o médico com a mão no ombro do homem e vi um homem num choro de nervos, de medo, de aflição, enquanto em jeito de embalo se mexia na cadeira. A criança, o filho, continuava a dormir.

Adoro-te amiga!***

Carta ao sonho desfeito; Por Kleine Cassiel

Ora viva!

Partilho convosco este texto inquietante e merecedor de reflexão da Kleine Cassiel
Espero que vos toque profundamente como tocou a mim,

continuem a excelente produção literária!

um abraço,

Der Uberlende


Carta ao sonho desfeito

Termino esta fase e começo outra amanhã...porque será que nem sei se é mesmo isto que eu quero? Maus cheiros, carne putrefacta, suja, odores e mais odores, gritos, choros, lamurias, sorrisos tristes, carregados de mil e uma palavras sem as dizer...... Afinal do que estou à espera? Foi para isso que me preparei durante 4 anos, em completa dedicação, não fiz tantas outras coisas, não podia mesmo que quisesse e as conhecesse, mas nem tive hipótese de escolha, essa estava feita quando me pus a pé desde o Rossio até àquela que foi minha diária na Praça de Espanha por longas quase 5mil horas de cadeira e mesa e papeis...a pé fui e vim...quase sem sentir os dedos, as partes várias dos meus pés...mas estava feito, papeis preenchidos e pouco tempo depois a confirmação...tinha entrado...e agora... muitos papeis e acetados copiados nos intervalos, em vez de me ir divertir e brincar com a vida, como os outros faziam....para aprender a ser aquilo que já sabem...

Hoje é o amanhã, 7 e picos e já lá estou frente ao elevador. Muitos dias foram assim: 7 e picos e eu em frente ao elevador que me levava ao 7 andar, aquele serviço de anjos “azarados”, que me preencheram a vida e me deram luz à vida, emocional e profissional....mas , dizes tu, anjo eu que acompanho-vos pelo caminho das nuvens, em direcção ao azul, esse que não sabemos onde é o limite e onde nos guarda a ultima morada do físico – a nossa alma???

Sabes, vais saber que nem sempre é assim....eu soube pela primeira vez quando numa tarde que se prolongava para o dia seguinte, porque nessa altura fazia muitas vezes mais horas, sim , deveria ser para diversão, nem outra razão podia existir..........................
.............................soube que afinal não era nada nisto que eu acreditava e não era nada isto que me servia para continuar a respirar. Tive a certeza absoluta de uma coisa...não iria mais pensar no meu Deus terreno e Celestial, não iria mais dirigir-lhe o pensamento, não iria mais agradecer-lhe a vida. Afinal Ele roubava vidas tão inocentes, tão puras, tão escassas de vivência terrestre...afinal Ele era um monstro! Porque naquele dia , um dia de Outubro de há 14 anos atrás, recebi um desses anjinhos “azarados”, com 18 meses de vida, que em breve teria uma caixa para “dormir”, não a caixa do seu berço, mas uma caixa fria, sem a mãe por perto, e iria dormir, dormir, dormir, até deixar de o ser....e começou comigo, quando a mãe, tão nova e de longe, me disse que não iria acompanhar a filha no internamento, e eu me zanguei com ela, e ao fim de algumas horas ela me trouxe uma flor, da rua, do quiosque ali perto, e não pediu desculpa, mas falou-me de outras coisas simples da vida, que ela queria continuar a ter, e por isso não ficaria ali connosco as duas, eu e a sua filhota......

Começou comigo aquele fim de tarde horrível, quando eu não fui capaz de colocar uma veia para o soro, nem nos pézinhos da “minha menina” e o choro dela me tirava do meu estado racional, e lhe quis dar leite, no biberão, e ela recusava.....recusava tudo, menos o meu colo, mas eu não vi isso na altura, só vi o horror daquela carinha linda, que depois dos primeiros tratamentos não iria mais ser linda..........só vi que não era justo para ela este caminho tão curto, só vi a minha frustração de nada ser-me possível fazer para não haver mais lagrimas...e ao fim de muito tempo, já todos os outros meninos e a minha colega, descansavam um pouco e eu com a Madalena passámos a ser as duas a chorar. Ela ao meu colo...........

Hoje, choro, também choro com eles, os meus doentinhos, mas choro por Ele também, que não os consegue ajudar. Penso que se Ele me deixar, eu darei a minha mão e tudo o que tenho, ou penso ter, para .......aquilo que tu sabes, e que eu deixei de ser capaz de dizer, porque são tantas as coisas que se sentem que não há palavras nem nada, a não ser viver e assistir ao viver e deixar de viver de quem me rodeia..

27 de Abril de 2005,

Kleine Cassiel




Thursday, April 28, 2005

Mortalidade, por Isabel Maia

É com muita alegria que recebo mais um texto para o blog vindo directamente de Isabel Maia. O nosso obrigado!

Por vezes, ecoam em mim uma série de questões. Questões já colocadas por muitos outros antes de mim e, certamente, a colocar por muitos depois de mim. São as questões que nos arrebatam, que nos acordam de um sono ténue e frágil. Quem sou eu? O que sou eu? Parecem perguntas absurdas. Em última análise é comum pensar-se que, pelo menos, se não se sabe quem somos, sabe-se o que somos. Mas não acredito. A proximidade perigosa com que lidamos a propósito do nosso Eu, dificultaria toda e qualquer tarefa de busca séria…
Às vezes, as noites alargam-se, aqui, no escritório e as perguntas enroscam-se-me nos pés. Que forma de ser, esta, a minha!!..Aborrece-me ser eu própria…às vezes. Aborreço-me de ser eu. Tantas perguntas e depois o desafio/vazio de não lhes encontrar resposta.
Enquanto tudo dorme, toca muito baixinho Kitaro e o pau de incenso com aroma de chá verde, já acabou. A atmosfera é, simultaneamente, densa e suave. Não sei porquê, mas hoje sinto-me terrivelmente mortal. Sinto que o mundo era o mesmo antes de mim e será o mesmo depois de mim. Passo por aqui como uma brisa e, como uma brisa abano, levemente, quem por mim se deixa abanar. Uma brisa que abana, por instantes umas folhinhas que, rapidamente, voltam ao seu lugar. E senão tivesse passado? Terá esse breve, fugaz mover de folhas modificado alguma coisa no mundo. Não, penso. Nada se modificou. Ficou apenas em mim esse aparente banal “chocalhar” de folhas, como um rasto da minha passagem.
É assim. Sinto-me mortal, terrivelmente mortal. Definitivamente mortal.
Ainda há pouco estava lá em baixo, sentada na carpete da cave, com o meu cão. Que delícia! Quanta espontaneidade e inconsequência pode ter um cão?? É o brilho da vida, do momento, do êxtase. Enquanto eu brinco com ele, não faz perguntas tolas…não as faria, nunca. Sabe entregar-se ao sabor do momento. Sabe ser a dádiva. Que liberdade, a sua! Que inveja, a minha! Ele não hesita, não se desvia, não recua, não antecipa. Ele é. Simplesmente, é. Sem saber quem é, o que é, ele pode ser. Em toda a sua autenticidade. Não se sente mortal. Não se confronta. Não se sente cercado numa atmosfera de incenso acabado de queimar. Para ele é só um lugar quente, familiar, confortável e seguro onde pode estar. Ele é sem o saber. Eu não sei se sei quem sou. Sinto-me assim, hoje: terrivelmente mortal.

Gaia, Abril/2005
Isabel Maia

Histórias de um outro eu - do blog "Ainda há Tempo"

Já tou como disse o Der Igel, há textos que se podem encontrar por aí na blogosfera mais próxima que envergonham muitos dos escritores da "literatura a metro" que atascam as prateleiras das livrarias em Portugal, venham eles de fora ou sejam de origem lusa.
Deem um salto até:

http://aindahatempo.blogspot.com/2005/04/histrias-de-um-outro-eu.html

A autora tem 17 (!?!??!?!?) anos e chama-se Silent Girl

Obrigado Perséfone (outra autora a seguir com MUITA atenção) por disponibilizares este link no teu blog!

Estou verdadeiramente encantado por vos conhecer, a todos vós (deveria dizer todas, pois as mulheres estão em larga maioria, mas basta um homem entre 100 mulheres para o "todas" passar a "todos"... tema a reflectir...). Tem sido um enorme prazer (e uma terrívl tentação para deixar o trabalho arrastar-se para segundo plano...) ler-"vos"!


bem hajam,

Der Uberlende

Wednesday, April 27, 2005

E pronto: Apenas para desenjoar das férias de blog... 500 modestas palavras, de D.I.

Lupa (requiem à natureza)

Na linha do horizonte, as estepes cerealíferas repousam na cortina nocturna de silêncio que desce sobre o Alentejo. Um ouriço-cacheiro, à beira da estrada, aventura-se a atravessá-la. A luz repentina de uns faróis de automóvel reflecte-se no seu olhar.
A Terra geme e estremece.
Neste mesmo instante, uma sirene de ambulância irrompe pelo centro nevrálgico do meu peito. Atravessa avenidas congestionadas pelo tráfego. Rasga pelo meio duas filas compactas de automóveis, abafa ruídos de buzinas irascíveis carregadas de doses sub-letais de adrenalina. As agulhas de chuva ácida são trazidas pelo vento e colidem violentamente com os edifícios e as viaturas, corroem as chapas, queimam estátuas, alcatrão e cimento. A sirene invade a sonolência de um autocarro onde se amontoam os olhares vincados de cansaço. Uma boca acorre sôfrega à fissura de uma janela, aspirando não mais que os monóxidos polvilhados por milhares de escapes em pára-arranca.
Como uma flecha em fogo, a ambulância passa e um estranho velho fita o rasto de luz com um olhar enigmático, poético, triste. Mas como biólogo, diziam, eu vivia alheio a este mundo.
Neste momento, uma dor aguda nas cervicais avisa-me que estou desde manhã agarrado à lupa binocular Zeiss. O relógio do telemóvel mostra 20:23h e um assombro no estômago relembra-me o jejum desde o almoço, onde vagamente degluti um salgado e um néctar.
Sinto, porém, que ainda tenho energia para triar esta última amostra. No campo focal, vou manuseando com a pinça vários grupos de artrópodes, na sua maioria uma diversidade impressionante de insectos.
Quem sente, como eu sentia, pavor de insectos, não pode nunca fazer a ínfima ideia do que eles realmente são. Podem acreditar, a entomofobia não é mais que uma cortina a vedar-nos a visão mais sublime da natureza. Olhar os insectos com outros olhos, é isso que eu faço. Dedico-me ao seu estudo, observo-os minuciosamente, identifico e separo inúmeras famílias, de carochas, besouros e escaravelhos, moscas, moscardos e mosquitos, abelhas, vespas, formigas e abelhões, gafanhotos, percevejos, cigarras e pulgões, enfim, uma imensidão de famílias de uma imensidão de ordens.
Os insectos são paixão. Eram…
Não apenas pela sua estética, mas também pela perfeita adaptação à vida que lhes compete viver, como autênticos pilares da natureza. Não pensem que é uma metáfora ou uma hipérbole. Eles desempenham, de facto, um papel imprescindível no mesmo planeta onde nós, Homens, caminhamos arrogantes e desprevenidos, sem olhar para o solo que nos sustenta.
Termino a amostra. Desligo a luz do iluminador e cubro com um pano a lupa. Antes de sair, o meu olhar demora-se na bancada que ocupei durante tantos anos. Hoje, a lupa faz-me lembrar os móveis cobertos com lençóis brancos numa casa vazia. Fecho a porta, abandonando a sala escura atrás de mim.
Normalmente, amanhã voltaria. Mas penso que a intrépida ambulância não chegará a tempo. Porquê salvar quem descobriu nada haver em que acreditar?
A Terra geme e estremece.
Amanhece um ouriço morto na estrada.
Era uma fêmea, grávida. Com a extinção no olhar.

Tuesday, April 26, 2005

Lisboa, 28 Junho de 1552 by aquela bruxa

Mais um texto vindo directamente da rosa-louca

Lisboa, pergunto-me. Subindo a Domingos Sequeira, a rua do velho cinema Paris do filme do Wim Wenders. Pergunto-me. Se saltasse deste eléctrico, no meu sonho, ficaria realmente em Lisboa, e será que poderia apanhar o próximo eléctrico para Amesterdão?Stand By Me, do Ben E. King. Pergunto-me. Naquela tarde em que todos sete encostados a meu lado usavam ténis All Stars, no primeiro ano dos anos noventa, alguém pensou que, dez anos mais tarde, todos usaríamos telemóvel? Vermelhos, azuis escuros, cor-de-rosa, brancos, azuis claros, verdes, cor-de-laranja e os meus sapatos chineses. Cool Thing, Sonic Youth, pergunto-me. Lisboa, Porto, Braga. Naquele Março quente, Páscoa, o Afonso Selvagem(vamos chamar-lhe Afonso Selvagem). Pergunto-me. Sentiria ele connosco a nostalgia que eu sinto agora com as gerações mais novas, e respiraria ele os nossos pensamentos frescos e inconscientes de evolução? De Do Do Do De Da Da Da, The Police. Não me pergunto. Foi só há trinta anos que brincávamos na rua com as pedras brancas da calçada, que eram os nossos telefones lunares. Ainda não funcionavam, mas já os tínhamos. The Doors, Riders On The Storm. Não me pergunto. Não havia a grande rede interna. Só telefones fixos nos corredores e nas salas de estar, e cartas. Não havia esta janela de navegação aonde me sento, e aonde escrevemos a nossa memória colectiva. Saltei do eléctrico. Doce, Doce. Conhecemo-nos mas não nos conhecemos. Pergunto-me. Conhecemo-nos melhor agora ou antes? A todos e a nós próprios? Lisboa. Os Mouros, os Maias, os Lopes, os Silvas, os Oliveiras, ah, os Oliveiras... Pergunto-me. Tudo cada vez mais rápido. Cada vez mais informação. Tudo tão rápido que as nossas memórias, e as memórias das crianças, não têm memória suficiente. Afastamo-nos? Aproximamo-nos? Snap, The Power. Está tudo igual. É matemático. 2+0+0+5=7-5-0-0-2. Good Vibrations, The Beach Boys. 23x9=207.- Mas conheces Jefferson Airplane?- Sim, claro, como não.- E qual a música deles que gostas mais?- Hum... é difícil dizer. Tenho mesmo que escolher uma?- Sim. Uma são todas, de qualquer modo.- Está bem, então hoje escolho – chega o gato – aquela, Today.Hey Jude, The Beatles. As avós. Pergunto-me. Em Lisboa estará sol? Cheirará a flores cor-de-rosa de aromas a mel? Os táxis andarão bem dispostos? Os hippies perto da Brasileira usarão saias roxas? O fantasma de Pessoa estará sentado na esplanada, ao colo da sua própria estátua? Ou ronrona sonolento em cima de uma almofada, no calor da marquise da professora primária? A padaria terá bolas de Berlim esta tarde, quando abrir, às cinco? O eléctrico chegará quantos minutos atrasado? Sim, dá perfeitamente para regressar durante a noite. Não há problema nenhum. Kraftwerk, The Model. Pergunto-me. Lisboa. 36x14? 504. Madredeus, O Pastor.

Tempus Fugit (Parte IV e Final: O Derradeiro Fôlego)

Tempus Fugit (Parte IV: O Derradeiro Fôlego)


Lembro-me...
15:01.
Filha: Papá!
Eu: Vou já querida, estou a caminho!
Ela: Eu disse-te que ela ia ficar contente... (sorriso cúmplice, estendeu a mão e passou-ma levemente sobre o ombro)
Eu: Achas que ... temos alguma hipótese? (evito olhá-la nos olhos)
Ela: Tu é que partiste, nós sempre estivemos aqui... O meu anelar esquerdo ainda tem saudades do aperto frio do ouro que me prometeste ser eterno. Ainda suspiro por ti em algumas noites, mas noutras causas-me náuseas e ódio. Tenho vontade de queimar as fotos dos nossos dias juntos, mas depois olho para a nossa filha e vejo-te nos olhos dela, na cor do cabelo, nos disparates que faz com a comida... (os olhos ameaçam chuva, mas o vento seco varre-lhes toda a esperança)
Eu: Não era suposto ser assim... Perd...
Ela: (sela-me rapidamente os lábios) Shhh. Olha para ela a correr descalça na areia e pensa, pensa muito no que trocaste por isto, demasiadas vezes...

15:21. Que calor insuportável. A minha cabeça vai explodir, não sei se do calor, da fome ou da esperança que ora aumenta, ora se apaga. Última paragem, já estou perto...
Era capaz de jurar que sinto no ar o teu cheiro, meu amor. Fecho os olhos e o vento manda-me beijos vossos, uns perdem-se no ar como frágeis borboletas num dia de vendaval, outros acertam-me em cheio como setas envenenadas que me matam de angústia e vergonha. Pouso a mão no banco do passageiro e encontro a minha carteira. Abro-a e vejo uma foto.

15:28.
Tio: Atenção!... FLASH
Filha: Ena! Já posso ir comer gelado?
Ela: Espera mais um bocadinho oh acelerada! Que horas eram quando acabaste de comer?
Eu: Deixa-a... metade das batatas comi-lhas eu, passou-mas por baixo da mesa às escondidas! (pisco o olho, e a minha mulher devolve-me um sorriso derretido)
Tio: Olha, ficou gira a foto, elas estão tão bem! Mas parece que a tua cara ficou desfocada...!?
Eu: Ah, deixe lá isso, é menos uma foto que se estraga!
Tio: hehehehe...

16:07. Ah, as portagens! Que dor horrível.... o meu estômago vai inchar e explodir! O coração quase que me rebenta as costelas e salta para o tablier, arrastando consigo o meu último pedaço de humanidade. Ainda bem que trouxe aspirinas na carteira...

16:12.
Mãe: Pára!
Pai: (estremunhado) Que foi querida?
Mãe: Não suporto o berreiro desta maldita criança!!!
Pai: Tem calma, são cólicas....
Mãe: (histérica) Agora são as cólicas, antes foram as caibras, enjoos, dores, sempre me transtornou, deu-me cabo das entranhas e desfigurou-me!
Pai: (deita-se para o outro lado e suspira a pensar que deveria fazer algo pelo filho...) ...

16:44. Estou a 2 Km de casa... quase lá! Vou tomar uma aspirina e acalmar-me...
Onde é que foi parar a carteira?!? Baixo a cabeça e procuro-a...
Deve ter caído...

16:59.
Camionista: Ficou todo desfeito!! (horrorizado)...
Paramédico: Mas o carro estava parado no meio do cruzamento e você não conseguiu parar?
Camionista: Não tive tempo... foi tudo tão rápido!...


26 de Abril de 2005,

Der Uberlende

Monday, April 25, 2005

Antes do adeus, by Stela; mais de 500 palavras, mas é por poucochito...

Para o avô L. 25 de Abril sempre!

Começou a escrever as cartas depois de jantar. Tinha sido uma refeição silenciosa. A mãe mal tocara na comida, e Jorge pensou ver algumas lágrimas misturarem-se com a sopa, que ela mexia interminavelmente com a colher, sem nunca a levar à boca. O pai tentara puxar assunto. «Acho que o Benfica ainda pode ganhar o campeonato.» «Sim. Mas o Eusébio já não anda a jogar assim muito bem…» Calaram-se, porque o nome Eusébio lembrava ultramar, palavra proibida nessa noite.
“Querido Pai,” escrevia Jorge mais tarde, “desculpa. Não vou poder estar aqui para ir contigo à Luz ver o nosso Glorioso. Não sei quanto tempo vou estar fora. Perdoa-me por não te ter dito nada, mas como deves imaginar não podia.” Parou, pensando no que o pai ia dizer quando as primeiras perguntas fossem feitas, no Ministério. Sentiu o aguilhão da culpa ao pensar que o pai podia perder o cargo de Director-geral, ou até passar uma noite na prisão, ou… «Mas Jorge, tu queres ser um bom soldado?», a voz de Célia na sua cabeça. «Amor, não é assim. Se eu for chamado, é eu ou eles, entendes? Não tem nada a ver com ideologia!» Eu ou eles… Eu aqui contigo, ou eles…
“Meu amor… Amo-te com toda a minha alma. Partir foi a única solução que encontrei, para que não seja nem eu, nem eles. Mas tenho medo que nós sejamos sacrificados no meio disto tudo… Eu parto, amor, mas uma parte de mim fica contigo, enredada para sempre nos teus cabelos macios, presa ao brilho dos teus olhos, para ter a certeza que continuas a sorrir mesmo sem me teres ao teu lado. Vamos voltar a ver-nos, prometo-te. E teremos os filhos com que sonhámos, e a vida que merecemos ter.” A mão tremia-lhe. Sentia-se cobarde, a fugir, enquanto muitos dos seus amigos e conhecidos já tinham partido, ou iam partir brevemente, alguns no mesmo navio em que ele também era suposto embarcar, a caminho de Lourenço Marques. Sabia o que isso significaria. A morte, ou a mutilação, se não fosse do corpo, pelo menos da alma, em todo o caso o fim de algo. O fim de uma juventude da qual não estava pronto a abdicar.
“Querida mãe, perdoa-me por te abandonar. Toma conta do pai, ele vai precisar muito do teu apoio. Não te posso dizer para onde vou, mas fica certa de que estarei bem e de que tu estarás no meu pensamento, sempre. Quando puder mando notícias. Teu filho, Jorge.”
Tinha tudo planeado, até um certo ponto. Um amigo de confiança tinha combinado com um camionista simpatizante de esquerda levá-lo até França, escondido no meio da carga. Depois, era o desconhecido. Onde iria, como sobreviveria, não fazia ideia, mas contava com a ajuda de outros portugueses exilados que sabia ir encontrar. Partiria cedo, antes do sol nascer. Olhou para o quarto, cheio de recordações. A um canto, a bola de futebol, vazia de tantos pontapés que sofrera na sua meninice. A fotografia da festa de fim de curso, colada na parede, tirada nas escadas do Técnico. Célia radiante, com a sua adorada saia vermelha… Puxou devagarinho a fotografia, e guardou-a dentro do único livro que ia levar, “Guerra e Paz”. Com o peito oprimido de tanta ansiedade, ligou o rádio, e deitou-se de costas na cama, esperando que as vozes do aparelho se sobrepusessem à voz do desespero que acordava dentro de si. A canção de Paulo de Carvalho tocava. «E depois do adeus…»

Sunday, April 24, 2005

Cutting: it’s feel so Good; 500 palavras by booklover

Comecei a escrever este texto inspirada por "Chatfriend" de Der Igel e "Lavender" de Silent Child.

Todos os dias ao acordar penso que estou a viver no inferno. A Dor é cada vez mais real, intolerável, dilacerante, cruel. Faltam-me forças para levantar, queria continuar inebriada na ilusão do sono. Os cacos de vidro jazem na cabeceira, entre o diário e livros. Junto-os num montículo e escondo-os na gaveta das meias, onde a mãe jamais os encontrará. Abro as portadas e vejo que vai estar um dia de calor, visto uma camisa preta onde as gotas de sangue se confundirão com a escuridão do meu espírito. Penso se algum dia conseguirei sair desta lobreguidão, desejo que alguém me olhe e ampare, me dê a mão e caminhe comigo. Tento subir alguns degraus dos meus colegas mas rapidamente derrapo por ali fora… A verdade é que não tenho muita paciência para vos aturar as frivolidades da vossa existência. Se tento entrar no âmago do vosso ser não encontro nada. A diferença entre nós é que vocês conseguem disfarçar o vazio de que são feitos e eu não. A loucura da vossa normalidade consome-me a esperança. Enquanto tomo o pequeno-almoço mordisco as pernas com um garfo escondido por debaixo da mesa. Gostava de ser diferente de mim, amada, desejada, apreciada. Por isso me castigo, mereço sofrer. E é no emudecimento das primeiras lágrimas de sangue que alcanço a paz e sossego da viveza. Oxalá conseguisse encontrar a mesma plenitude e prazer nos outros. Sinto-me uma carta fora do baralho. Quando caio no precipito não existe ninguém para me apanhar. Só a solidão, a mudez e a Dor. Como posso batalhar se há muito me sinto vencida? Quando a chuva toca no meu rosto não me reconhece, quando as portas se fecham, não se abre mais nenhuma. Não ando enganada, as coisas são como são e não há nada a fazer! Não existem bases para o meu castelo, como poderei continuar a construí-lo se a cada nova peça de vitalidade se desmorona? Sou um acidente da vida, um erro da natureza, porque raio afinal vim cá parar? Adormeço com a vontade de não mais acordar, acordo com a certeza que tudo isto é um pesadelo e depressa passará. Porque será que alguns homens chamam à Terra casa? Observo as pessoas na rua, tão fingidas e enfezadas, sempre preocupadas com o próprio umbigo, não conseguirão ver mais nada para além dele? Por isso deixei de ter esperança em vocês, de acreditar que me poderiam ajudar a sair deste precipício. Olho ao espelho e não vejo ninguém, não sei quem sou, de onde vim nem para onde vou. Sinto vergonha do meu corpo quando me vejo nua, as feridas ardem-me ao tomar banho. A vida é apenas a doença que nos conduz à morte. Se a ordem natural da vida leva à morte para quê lutar para viver? Não faz sentido! Nunca tive oportunidade de ser eu, hoje sou aquilo que fizeram de mim e talvez por isso me deteste tanto. “As vezes ficar louco é a única maneira de permanecer são”.

Texto dedicado à J.R.; M.J. e R.V.

Saturday, April 23, 2005

Um NÃO do meu herói, Álvaro de Campos. E até vem a calhar... (um aparte: há por aqui, na blogosfera, muito boa poesia escondida...). Até já.

Não

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...

Álvaro de Campos (a.k.a. FP)

Lavender by Silent Child

Ao tentar retirar a chave da mochila, quase a deixou cair. Sentia-se ansiosa. Abriu a porta, pousou a mochila, despiu o blazer e trocou os sapatos por uns chinelos confortáveis. Assim ficava melhor... Após uma ida rápida à casa de banho, bebeu um refrescante copo de água na cozinha e foi esticar-se um pouco no sofá da sala. Estava de volta ao seu refúgio, na solitude que não mais conseguia suportar mas a qual, na verdade, também não queria quebrar. Era como se não tivesse direito a estar de outra forma. Sempre se sentira estranha perante os outros e nos últimos tempos tornara-se ainda mais difícil encarar tanta mentira, maldade, mesquinhez, perversidade e estupidez à sua volta. Não se achava melhor que os outros mas não entendia como é que tanta gente só via para uma pseudo-imagem, para parecer qualquer coisa mesmo não havendo nada de interessante lá dentro. Já não sabia mais o que fazer. O trabalho tornara-se uma seca que tinha o condão de lhe permitir sobreviver. Sobreviver... era isso que ia fazendo. Mas era isso que queria perpetuar? Pergunta com resposta dúbia. Ao recostar-se mais no sofá macio, parecia diluir-se na sombra em que se tornara a sua existência. Olhou para a mesinha em frente. Lá estava uma revista semi-aberta e uma pilha de 5 livros, todos começados mas nenhum terminado. Desde muito nova que devorava livros e música, diga-se. Ao lembrar-se disso ligou o cd que ouvira de manhã: “I hurt myself today, to see if I still fell, I focus on the pain, the only thing that’s real...” Trent Reznor lancinava docemente a sua mente sensível expondo-lhe uma realidade que a atormentava de forma quase brutal e irascível. Ao lado dos livros viu a caixa de valiums e o copo de whisky de malte que detestava e não conseguira deglutir. Arregaçou uma manga e ao olhar as cicatrizes que se cruzavam salientes, apeteceu-lhe ter só mais uma, sangrar um bocadinho talvez a aliviasse um pouco. Aquela pressão insinuava acentuar-se e não lhe dar tréguas. Tentou pensar em algo agradável mas só lhe ocorreram coisas tristes, aborrecidas, coisas que não gostava ou que não devia de ter feito. Sentia-se irremediavelmente perdida, qual náufraga desesperada no turbilhão centrífugo da sua incomensurável desilusão. Face às pessoas, à família, aos supostos amigos, à vida. Não era assim que queria sentir-se mas era assim que não conseguia deixar de se sentir. Pegou na tesoura afiada que tinha por perto e a tentação foi demasiado grande e intensa... quis gritar mas nenhum som saiu, quis chorar mas os seus olhos estavam secos, quis voar alto mas em lugar de asas parecia ter pesadas âncoras que a fundeavam na espessa cortina negra que a aprisionava. Num ínfimo relance, percebeu que era isso que mais desejava, libertar-se, nem que tivesse que morrer... só que sabia que a morte não era o fim e achava que nada resolvia. Já não sabia o que fazer. Ardia de saudades da mãe. Se ela ao menos estivesse ali, saberia o que dizer-lhe. Quase sem se dar conta adormeceu. E logo lhe passaram mil e uma cenas pela cabeça. Rapidamente entrou num sono profundo, tal era o cansaço que trazia consigo. A certa altura ouviu claramente: “Voltaremos a reunir-nos. Mas, ainda não é o tempo certo. Estarei contigo mesmo quando não me vires. Eu sei que queres viver.” Acordou assustada de rompante! Afinal ainda tinha lágrimas... que corriam abundantes pela sua face suave e bonita. Os olhos brilhavam, o coração batia rapidamente e saltou ainda mais quando escutou a campainha. Levantou-se e quando abriu a porta viu apenas uma revista no chão, voltada para baixo. Pegou nela, voltou-a e uma frase chamou-lhe a atenção: “O Desafio da Vida”. Avidamente abriu a revista onde calhou e um título despertou-lhe vivido interesse: “A importância de decidir!” Reagiu com ímpeto. Nesse instante decidiu Viver!

by SilentChild

...para não dizerem que sou demasiado dramático...

... eis o blog mais divertido (e provocador) que já encontrei na blogosfera!!

DesBlogueador de Conversa

http://desblogueadordeconversa.blogspot.com/

um exemplo:

Isto é oficialmente estúpido

Que ideia é esta de colocar os coletes, que agora são obrigatórios pelo novo Código da Estrada, nos bancos dos automóveis? Alguém me sabe explicar?


Vejam e divirtam-se!!

... mas cuidado!

não tenham nenhuma overdose...

podem morrer a rir!

Der Uberlende


Tempus Fugit (Parte III: Fadas e Flausinas); 500+500+500+500 palavras para um blog

Tempus Fugit (Parte III: Fadas e Flausinas)
8:11.
Ela: Relaxa...
Eu: Não consigo, estou demasiado assustado!
Ela: O meu pai não chega antes das 5, mal passa das 3... chega-te a mim, anda (lambe os lábios e levanta o top amarelo suave)
Eu: (olhando à minha volta cheio de medo) Olha, ele pode chegar mais cedo!... Uma vez estava a ver um filme porno na TV da sala quando o meu pai apareceu a meio da tarde. Havias de ver o pânico! Lá o convenci que estava a estudar para os exames, mas ia morrendo do coração...!
Ela: (rindo-se desafiadora) Preferes ir ver o teu filme porno ou fazer um aqui comigo?

8:21. A aurora já tinha sido há um bom bocado, mas juro que só naquele momento é que me apercebi da imensidão de luz bela, dourada e viva que transbordava do horizonte. O Audi estava com sede, outra vez. Malditos carros de executivo levam-nos o couro e o cabelo para manter as aparências e status. Para o Diabo com ele, em breve ia po-lo para trás das costas, junto com o resto do peso que me enterrava!

9:22.
Eu: Querida, sentes-te bem?
Ela: Sim, apenas enjoada... outra vez! (vomita em seco)

9:49.
Eu: Tem a certeza de que é minha filha?
Enfermeira: Claro que sim (sorridente).
Eu: Mas é tão bonita!... tão perfeita, tão, tão... sei lá, parece-me impossível que eu seja pai dela. Parece uma fada, linda e misteriosa, retirada de um bosque encantado! (choro contido, sorriso estampado no rosto a tremer)

10:27.
Eu: Outra vez?
Ela: Sinceramente, não sei o que te diga... Estás à espera do quê, que eu resolva tudo por artes mágicas?!?
Eu: Não, não foi isso que eu quis dizer... espera...
Ela: Espero pelo quê? Que sejas tu a resolver os nossos problemas? Que consigas estar presente quando precisamos de ti? Que digas à tua filha que a amas e que a ajudas nos trabalhos de casa, que a proteges no caminho para a escola, que... (virando a cara, secamente) Esquece. Volta lá para o teu trabalho, os teus relatórios e deixa-nos, havemos de sobreviver (sussurrando) ... sem ti...

10:39. Maldito sol! Detesto viajar para Este de manhã. Tenho os olhos inchados e sonolentos, a última coisa que me apetece é levar com a porra do Sol nos olhos enquanto conduzo!..

12:01. Estico o braço direito e num rodar de pulso semi automático ligo o autorádio. Ah, o noticiário... Escutar o que se passa no mundo, ter contacto com a realidade, saber do trânsito matinal na cidade quando ainda estou a mais de 600 Km de distância. O FM do rádio começa a ficar roufenho e a sumir, e num minuto perco sintonia com a estação que estava a escutar. Num minuto sou lembrado de que estou só!

14:25.
Eu: Podia passar-me a chamada para o Departamento de Contabilidade?
Telefonista: Lamento Dr., mas a sua ex-mulher já saiu...
Eu: Já?... Mas são 15:30?!...será que..
Telefonista: Pois, não sei...

14:38. O tempo voa...


(...continua, para a 4 e última parte!)

23 de Abril de 2005,

Der Uberlende

Thursday, April 21, 2005

500 palavras by Conkilha

Recebi mais um texto para o D500 da Conkilha.
O problema é que o texto não tem de facto 500 palavras mas 613. De qualquer maneira achei por bem publicá-lo,

Fiquei por ali à espera do sol. Que ele se fosse embora primeiro e depois ia eu sem despedidas ou choros. Lamechices são para quem nunca ousa chegar ao fim do livro e perceber que a dor não é má e que o choro, certamente, não alivia a dor. O sol olhava-me, de frente, azul. E eu piscava os olhos como faço às gatas mas ele talvez estivesse demasiado longe para entrever o sinal, a tentativa em comunicar que ao sol sou feliz.
Havia um rapaz sentado ao meu lado que lia um livro. Tentei ver o titúlo mas só apanhei o autor. Fernando Caveiro. Nome estranho pensei. Caveiro não é coveiro, nem caveira. Tão pouco cave ou carteiro. É nome de quem quer ser e não é. O rapaz lia tranquilo, de respiração moderada mas fumador.
O sol ali estava. Aquecia-me a cerveja que é o mal de beber cerveja ao sol. Bebe-se rápido e mesmo assim ela morre-nos nas mãos. É um desconsolo.
O Teixeira, nadador-salvador daquela praia desde que me lembro, gritava – quer sombra tem de pagar minha senhora. Nós não andamos aqui só para olhar para o mar. Temos que ganhar o nosso. Você sabe que a vida não tá fácil para ninguém. Vamos lá ver isso.
É preciso ter lata. Logo o teixeira. Nunca o vi salvar ninguém e venho aqui desde criança. O que ele gostava (e gosta) era de sacar dos binóculos que tinha roubado nos seus tempos de marinha e de ver as meninas em top-less. De comer peixe, ou se ele gostava do peixe, e das cervejinhas à tarde no pontão. Sempre achei que o Teixeira sabia viver mas agora que já sou gente e trabalho tenho a certeza. No verão na praia, junto à areia molhada de calças arregaçadas à pescador, e no Inverno no mar ao peixe que a vida não tá fácil para ninguém, não é verdade?
O sol pendia de cansaço. Ser sol também não deve ser fácil não. O dia todo a girar para nos dar calor e luz e ser justo com todos numa certa forma de ser natural e neutral.
Saquei do meu caderno e escrevi:

Tenho os amigos no peito a sufocarem-me o coração. Querer dar espaço a todos e ficar com a casa cheia. Aprendi a contar as pedras da calçada em miúda por passar muito tempo a olhar para o chão. A professora de Ballet dizia-me – como é que é possível saires da aula e logo pores essa postura de quem carrega o fardo do burro? O que se aprende na aula não é para esquecer lá fora percebes? A postura é muito importante. Queres ser bailarina vais ter de sê-lo a tempo inteiro que caso contrário não chegas lá.
E não cheguei. Fiquei com a ideia de que era um lugar lindíssimo ao qual tinha recusado por estupidez. Mas às crianças não se atribuí estupidez. Nem tão pouco ignorância. Só mesmo falta de experiência e díscíplina tá claro.
De qualquer das formas as pedras da calçada ensinaram-me muito. Uma dessa coisas foi a guardar os amigos no peito junto ao coração. Que se não o fizermos os perdemos para sempre e que só cá dentro podemos amar as pessoas verdadeiramente. Parece treta mas foi o que ela me disseram na altura. Que os amigos são como as pedras da calçada. É para ter muitos e que todos tenham um motivo diferente como peças de um puzzle que é real e serve ao mundo para que todos juntos sejamos passeios e nos vejamos a andar.
O sol acabou por ir. Ser justo noutras paragens e deixar-nos, a mim e ao rapaz do livro, dormir.

ok, Sodomia 2, os outros 500 - só para terminar... e até breve :)

Sodomia, parte II

Uma ave pousa no parapeito da janela com o olhar felídeo de Felícia. Os dentes de Tadeu, incisos como adagas, sucumbem nas nádegas de Tiago. Felícia voa e fica o fel no olhar da ave, no anel de Tiago, nu na pele no sofá. A luxúria escorre pelo bolor húmido das ranhuras, pelo sémen das paredes que derretem. Felícia sua pelo tórax de Tadeu. Um mel azedo pulsa nas veias de Tiago, expulsa o medo de menino. Emulsiona-se na noite que ascende em pleno dia, transcende e desnuda por inteiro o desatino. Tadeu avança, cobre o corpo do parceiro. Tiago é quente de submisso e cerra os olhos, enterra os dedos, colabora, quer.
Tadeu penetra-o.
Na janela, a ave altiva desvanece-se. Sibila o sexo e flúi saliva nos amantes. Tiago sente o mundo dentro, doce e espesso. Tiago sente o mundo todo do avesso. As carnes querem, as carnes ferem, as carnes fedem, as carnes fendem, as carnes podem, as carnes pedem, as carnes comem, as carnes…

- SAI DAÍ !!!

Grita-lhe o homem, possesso com uma voz grossa de besta e arranca Tadeu, violentamente, de dentro do seu corpo.
- Que se passa? – Tadeu assusta-se e afasta-se para um canto, com o preservativo frouxo manchado de sangue.
Mas não tem tempo de se defender. Tiago investe com uma força sobre-humana, já nada o poderia deter. Tadeu é projectado contra a mesa de vidro. Da sodomia vai-se o prazer, fica a agonia. Tadeu estendido sobre os vidros, com a pele em sangue, procura na roupa uma compressa.
Tiago arrasta-se até à porta e sai à pressa.
A luz do dia conforta os seus passos bruscos e trôpegos, como uma réstia de esperança, de que tudo não tenha passado de um devaneio, um veraneio virtual, um sonho. Voltar para o emprego e nada se passou, eis o seu plano. Não mais pensar nem sentir o esfíncter. Acelerar o passo de volta ao centro comercial, onde deixou o automóvel. Entrar no carro, somente. Voltar para o emprego, para a sua vida.
Tiago tem 36, é casado com Felícia. E todos os dias, a mesma gravata que aperta, o mesmo arrumador que esbraceja, a mesma rotina que boceja, a mesma sevícia, a sodomia.
E hoje o tumulto dos acontecimentos atraiçoou os bolsos incautos de Tiago. Nem uma moeda. Apenas a nota de 50 euros que levantou no Multibanco. Tiago não hesita, lívido de horror, entrega-a ao arrumador. Mas este afasta-se, com um esgar desconfiado como se visse um polícia à paisana.
- Foda-se, tas maluco? – E afasta-se como um cão de rua, com o rabo entre as pernas.
Tiago fita a sua nota, completamente perdido.

A campainha tocou.
Era Tiago.
- Desculpa-me… – suplica-lhe, de olhos no chão.
Mas o olhar de Tadeu não mostrou ressentimento.
- Não tem problema, eu fico bem, Tiago.
E enquanto desce as escadas, Tiago ouve uma última vez a voz de Tadeu – obrigado.
Há tantos anos que não acontecia. Tiago e Felícia fizeram, hoje, amor.

Wednesday, April 20, 2005

Tempus Fugit (Parte II: A Dança dos Fantasmas); 500+500+500+500 palavras para um blog

Tempus Fugit (Parte II: A dança dos Fantasmas)
2:58h.
Mãe: Está frio, não saias à rua assim!
Eu: assim como?
Mãe: ...O cabelo todo molhado! Sempre o mesmo, depois eu é que me ralo para te tratar! Sempre me deste preocupações, parece que não sabes fazer mais nada na vida. Só estive sossegada contigo na barriga, desde que saíste começou o fadário. Quase homem feito já no 9º ano e ainda não sabe tratar de si mesmo... Não posso estar sempre preocupada contigo, vê se percebes! Ainda me matas desgraçado... (choraminga sem lágrimas)
Eu: (em surdina) ...se me permitisses talvez soubesse! Deves ter visto o fundo ao frasco de Valium hoje...

3:41h. (chorando compulsivamente) Eu não te odeio mãe, nunca te odiei...

O Audi A6 relaxa o passo e encosta. A berma desfocada da auto-estrada recolhe-o na hora antes do dealbar, no aconchego frígido da madrugada anónima que devora os incautos e alimenta os animais furtivos que se esgueiram entre os nossos medos e pensamentos. Os mortos irrompem dos seus leitos mortais por baixo do cobertor de asfalto.
4:07h. Deixei-me dormir! A clepsidra de lágrimas que me marca ritmo insiste em zombar de mim, em fazer da minha vontade inacção e da minha acção asneira. Suspiro, esfrego os olhos em inquieto desespero e dou à chave. 356Km depois estou mais longe do que antes de partir...

6:19h.
Pai: O miúdo, onde anda ele?
Mãe: Sei lá!? Não me chega já em casa durante toda a semana e agora até aqui na quinta dos teus irmãos tenho que ser eu a andar atrás dele?!?
Pai: Tem calma, em Outubro já vai para a escola, sempre é menos essa a preocupar-te...
Tia: Vai para uma pública ou privada?
Pai: públ...
Mãe: (interrompe irada) Privada! Vai para o liceu onde andou o meu pai. Foi lá que ele se fez homem e criou a estrutura moral e intelectual para abrir a empresa onde trabalhas, ou estás esquecido?!?....

6:50h.
Eu: Pai?
Pai: Sim filho, que foi?
Eu: ...nada, estou surpreso por te ver em casa tão cedo...
Pai: (os olhos ficam vermelhos, escorre suor da testa, a boca trava um sorriso nervoso) Nada meu amigo, não se passa nada, fica sossegado. Amanhã tens um exame, não é?
Eu: Sim, de Marketing. Gosto bastante daquilo, a professora é excelente! Ah, olha que tens um recado do avô no voice mail. Queres ouvi-lo?
Pai! Não (vira-se bruscamente e derruba uma jarra)! Foda-se! ... ai desculpa, desculpa-me filho, estou um bocado cansado, só isso...
Arrastou-se para fora da sala, apoiando-se nos móveis envernizados e limpos ad nauseum.

7:35. 701Km depois sou parado pela Brigada de Trânsito. Operação de rotina. Quando o GNR me pede os documentos desato num pranto desmedido. Como pode a vida ser tão irónica comigo?.. Porque fui eu obrigado a parar à entrada da ponte escolhida pelo meu pai para se enviar a ele, à minha mãe e ao carro do meu avô para dentro do rio e desaparecer da minha vida para sempre?


(...continua)

20 de Abril de 2005,

Der Uberlende

Anoitecer by Rosa Maria Oliveira

Mais um texto que recebi da Rosa Maria Oliveira. O nosso obrigado, aqui vai,

O dia estava a findar. Como em quase todos àquela hora, estendia no sofá as suas velhas pernas, que já lhe serviam há 76 anos. Placidamente, como quem cumpre um sagrado dever, assistia à telenovela, atenta ao telefone, não fossem os filhos telefonar. Como uma adolescente esconde dos pais, que assiste com os amigos a filmes impróprios para a sua idade, também ela escondia dos filhos aquela sua fraqueza. Doía-lhe, não por viver sozinha, mas por ouvi-los murmurar: - “A mãe está a ficar “taralhouca” por ver tantas telenovelas”. Aquelas horas eram como um paliativo que lhe aliviavam o corpo da canseira de mais um dia, e ao mesmo tempo, lhe aliviavam o coração das mágoas de uma vida. Mas eles não entendiam... Aquelas personagens, que representavam o mal e o bem, a riqueza e a pobreza, o amor e o ódio, alegrias e tristezas, encontros e desencontros, também faziam parte do seu viver e deambulavam pela casa vazia. Diziam-lhe que era alienante estar tantas horas defronte da televisão. Não compreendia bem o que significava isso, era tão difícil de entender o que eles queriam dizer, como aqueles filmes em línguas estrangeiras, em que tinha que se esforçar bastante para juntar as letras das legendas que passavam a correr, acabando por perder o tino à história.
Tinha 4 anos quando a mãe ainda muito jovem morrera de uma infecção pós-parto; o pai rapidamente arranjou substituta. Foi entregue aos cuidados de uma tia que a mandou à escola, mas, preferia ficar na rua a jogar “à carica” com os rapazes. Nunca passou da 2ª classe; nas letras era um desastre, mas na aritmética era razoável, até conseguia fazer contas de cabeça melhor que os filhos apesar destes terem estudado. Todos os males da sua vida tinham acontecido, porque não tivera a presença e os cuidados da mãe. Se semicerrasse os olhos, ainda conseguia recordar-lhe o rosto: a pele muito branca, cabelos loiros ligeiramente ondulados e um lindo sorriso que iluminava uma casa. Mas, o que lhe provocava uma profunda dor, era não lembrar como eram os seus beijos e os seus afagos. Pelo menos, o seu nome tinha sido escolhido por ela, era russo, igual ao da heroína de um romance, que falava da Revolução de Outubro, e que estava a ler na altura do seu nascimento. Se tivesse tido mãe, certamente que a teria apoiado em todos os momentos complicados que a vida lhe trouxera, e, talvez, nem tivesse sido obrigada a casar com um homem que não amava. Tinha acabado o namoro com um rapaz de quem muito gostava, os pais dele eram medianamente abastados e não consentiram que aquela rapariga, “uma Zé ninguém”, fizesse parte da família. Mais uma vez o destino atingira-a cruelmente.
Entretanto, conhecera o marido, rapaz apessoado e bem falante; levou-a a jantar a uma cervejaria, para o acompanhar e ser simpática bebeu demais. Do que se seguiu, só vagamente, muito vagamente, se recorda. Nos meses seguintes começou a ter “faltas”, confidenciou-o a uma amiga, e esta disse-lhe: - “Estás grávida”. Grávida? Como? Aos 18 anos desconhecia que podia ficar grávida numa primeira vez, com algo que acontecera num momento do qual mal se lembrava, e ainda menos que a irregularidade dos “períodos” significasse ter uma criança dentro dela. Nunca a tia a avisou que tal coisa podia acontecer! O namorado fugidio queria livrar-se de responsabilidades, mas, naquele tempo, Lisboa, era uma cidade provinciana, e o bairro, onde vivia, uma aldeia. O tio ameaçou-o: “Ou casava ou matava-o”. O casamento concretizou-se. Ainda hoje se lembra do primeiro namorado que amou com a alma, conserva-o na memória como alguém que sempre permaneceu ao seu lado, muito terno e sempre próximo.
Não que estivesse arrependida de ter tido a filha mais velha. Dizia com orgulho: - “Foi a minha flor de laranjeira” – tal como não estava arrependida dos três que se seguiram; a todos amava de igual modo com as suas diferentes peculiaridades, mas aquela era diferente. Chorou continuamente nos primeiros três meses de vida, como se soubesse que não tinha sido desejada, mas imposta. Talvez por isso aquela falta de confiança que tinha em si própria, como se estivesse sempre “a mais” onde quer que estivesse, ou naquilo que fizesse. Como se não tivesse as qualidades suficientes para ser aceite e gostassem dela. Era tão diferente dos irmãos... na maior parte das vezes andava alheia ao que a rodeava, sempre com ar sonhador e uns olhos longínquos, como se fitasse no horizonte algo que não conseguia decifrar. Talvez a culpa fosse sua, nem sequer se lembrava como a tinha concebido, talvez por isso, aquela incapacidade que a filha tinha em viver com os pés na terra, embora, quando estava atenta ao mundo, estivesse mesmo. Também a filha enviuvara cedo, a partir daí, como se libertasse de uma amarra, aquela vertente misteriosa acentuou-se. Falava em assuntos estranhos, como: - “Éramos todos deuses imortais esquecidos da nossa origem divina; mergulhados voluntariamente na roda dos renascimentos, não para cumprirmos um castigo individual, mas, numa ordem de justiça universal pré-estabelecida, de oportunidades iguais para todos, embora por caminhos diferentes, da qual não temos consciência até ao dia que realizarmos na Terra aquilo que somos no Céu; após o sucesso dessa peregrinação, repletos de saber e amor, retornaremos a esse Lugar de bem-aventurança onde tudo e todos: É Infinita e Pura Unidade”.
Aquelas palavras ressoavam dentro de si como algo que lhe era familiar; mas não queria saber disso, nem sequer era religiosa. Crescera numa família proletária com ideais pró-comunistas, o tio preso pela “Legião”, estivera detido alguns meses acusado de ser agitador na fábrica onde trabalhava. Esse tempo tinha sido de muita penúria. Recordava, que na sua adolescência, tinha um rancor visceral aos padres e aos “legionários” os quais considerava responsáveis pelas suas desditas e provações . Os padres, porque conheciam de perto Deus, e Deus levara-lhe a mãe; os “legionários”, porque prenderam o tio, e estivera na iminência de ir morar na rua, não fora a generosidade dos vizinhos que se cotizaram para pagar a renda de casa.

Era feliz naqueles finais de tarde, uma a uma, vinham as recordações; afastava as más e detinha-se nas boas. A mente ficava suspensa como um barco à vela no alto mar sem que a mais leve brisa o agitasse, tendo como companhia o Sol alaranjado que lentamente descia no horizonte pronto a desaparecer. Ó se pudesse viajar naquela bola cor de fogo e acordar no outro lado do mundo!...
A telenovela estava prestes a começar, fechou os olhos, viu o rosto do homem que amara há 60 anos atrás; Essa imagem esfumou-se, sucedendo-lhe a da mãe, linda como um anjo, correu para os seus braços como uma criança, ouviu-se uma canção de embalar, sorriu e adormeceu....


Abril 2005-04-18


by Rosa Maria Oliveira

Tuesday, April 19, 2005

É Agosto; 500 palavras para um blog by dream

Ora viva,

Eis que surge mais uma aventureira que embarca no Desafio 500 - Dream

Já agora, gostava de deixar uma pequena nota/comentário em relação ao D500:

1. Não é um concurso, nem um jogo, e muito menos uma forma obrigatória para publicar neste blog. Trata-se de isso mesmo, um desafio, de uma maneira de criar um modelo em que todos se sintam livres de entrar.
2. O objectivo central do D500 é homogeneidade na diferença! Como? Ao formatar os textos em (parcelas de) 500 palavras não há o estigma de "eu escrevo mais que tu" ou "eu sei ser sintético e com 14 palavras descrevo o mundo inteiro". A verdade é que por vezes as pessoas ficam algo intimidadas com alguns textos e pensam (MUITO ERRADAMENTE) que não "estarão à altura" e coibem-se de participar. 500 palavras são, grosso modo, uma página A4 de texto, ou seja é um esforço perfeitamente acessível de criação de prosa, ou poesia ou o que quer que se consiga fazer com a palavra escrita, em que não há espaço para grandes verborreias nem para auto-análises demasiado prejorativas ou excessivamente negativistas, que contribuem demasiado para o acentuar de estados depressivos ou bloqueios emocionais (concordas comigo P.?).
3. Liberdade. Tem que haver prazer, dor, extase, conflicto, abertura, engano, o que mais for adequado ao momentum da escrita. Agora NUNCA pode haver é falta de liberdade! O D500 JAMAIS representará castração de ideias ou palavras. Ou se alinha... ou não! Não é um escalão de beleza, um padrão de criatividade nem uma bitola de pseudointelectualismo (que é algo que aprendi a desprezar).
4. Na minha modesta opinião, o D500 está a resultar! Quantos de vós aceitariam escrever para este blog no espírito do "Anda daí e contribui para o meu blog, escreve umas coisas giras que eu publico e depois comentamos todos". Possivelmente continuariam no vosso espaço pessoal de blogosfera e nem se interessariam em participar no blog de perfeitos estranhos, quanto muito participariam com comentários como é usual. No entanto, ao ser criado um estímulo perfeitamente entendível por todos gerou-se uma atmosfera de participação que ainda não tive a oportunidade de descobrir em muitos blogs, isto sem qualquer pingo de pretenciosismo.
5. Estariam aqui no Luz e Sombra a ler esta mensagem se não se sentissem desafiados pelo D500? :)

obrigado pelo vosso contributo. Dos que escrevem, dos que comentam e dos que leem atentamente.

atentamente,

Der Uberlende


Agora ao que realmente IMPORTA!


É Agosto.

Mais uma vez Manel regressa à terra que o viu nascer. Como estes dias são felizes para Manel. Aqui Manel reencontra a família que deixou na aldeia para ir em busca de uma vida melhor em Lisboa. Aqui Manel reencontra os seus pais, nunca sabendo se no próximo ano terá a mesma alegria, reencontra as irmãs, que o ajudaram a criar, reencontra os sobrinhos, por quem tem um amor imensurável. Mas há alguém que Manel não reecontra, alguém de quem Manel se separou abruptamente e não conseguiu voltar a encontrar.

Manel não reencontra os seus amigos de meninice. Passaram demasiados anos desde que cada um seguiu o seu destino, e Manel não sabe qual foi o destino dos seus amigos…

É mais um fresco fim de tarde beirão, Manel passeia com os filhos pelas ruelas da sua aldeia. Como este passeio lhe traz à memória todas as travessuras e aventuras de rapaz. Como lhe faz lembrar dos seus amigos. Então Manel começa a pensar alto, enquanto os seus filhos o ouvem embevecidos:

- Neste caminho havia uma grande macieira. Sempre que saíamos da escola vínhamos por aqui para apanhar maçãs. Ficava um a guardar o caminho enquanto os outros as apanhavam. Sempre era mais qualquer coisa que comíamos, porque em casa o pouco que havia era sempre pouco a dividir por muitos…

- Aqui era a casa de uns emigrantes, que tinham uma filha muito bonita. Uma vez juntamo-nos todos cá em baixo e fomos cantar-lhe à janela à noite. Ela ficou deliciada, mas cada vez que me lembro do pai dela a correr atrás de nós pelo largo… - disse esboçando um sorriso.

- Ali era o aviário do pai do Arlindo. - Será que ainda lá haverá alguma coisa? - De vez em quando íamos lá roubar galinhas para fazer churrascadas à noite. Sentíamo-nos uns heróis…

- Naquele beco vivia…

E assim continuou a recordar ao longo do seu passeio.

Mas a juventude de Manel e a dos seus amigos acabou com a chamada para a tropa. Naquele tempo ninguém sabia ao que ia. Era quase inevitável ir para o Ultramar, ir para a guerra… Uma guerra que nenhum deles percebia… Uma guerra que estava lá tão longe à espera deles…

Manel voltou de Angola em 1975. Mas não voltou para a sua aldeia. Ficou em Lisboa a tentar a sua vida. Durante muitos anos não teve dinheiro para regressar à sua aldeia. Quando lá voltou já não encontrou os seus amigos…

De todas as vezes que voltava à sua aldeia Manel perguntava-se: Que lhes teria acontecido? Teriam também eles ido para o Ultramar? Teriam eles conseguido dar o salto? Estariam eles noutra cidade qualquer? Estariam casados? Teriam filhos? Mas naquele fim de tarde de Agosto surgiu na cabeça de Manel uma pergunta que o gelou: Teriam eles sobrevivido à guerra?

De muitos Manel nunca saberá, mas terá sempre as suas recordações de meninice para se reencontrar com os seus amigos nas ruas da sua aldeia…


19 de Abril de 2005,

Dream

Monday, April 18, 2005

500 palavras bem adoradas by aquelabruxa

Segundo email que recebi com mais um contributo para o Desafio das 500 palavras. Vem directamente da rosa-louca que nos visita frequentemente. Obrigado!

"Olá, gostei do vosso desafio, assim como do blog, e adoro escrever, hoje em dia mais do que de ler"

Uma vez e não cinco ou sete, apenas daquela vez, devia eu ter uns quinze anos, sonhei com conspirações, mais de vinte-e-duas, amarelas, verdes, encarnadas, todas muito bem fechadas, em envelopes dourados. Eram conspirações luzidías, algumas, outras opacas, e ao fim de quarenta-e-três dias ainda eu pensava nisso. Aquelas conspirações eram frutos proíbidos não sei porquê, amores que as marés não se permitem comentar, espigas por criar, tantos apetrechos do entardecer. Setenta-e-duas vezes tentei esclarecê-las, e quase que pensei que eram manteiga sem tesouros nem cristos nem nada. Papagaios aos bandos invadiram o meu sonho, e o Serginho deu-me um beijinho. Não me lembro de muito mais. Abri os olhos e o relógio marcava 1:15 duma manhã roxa e sem lua, e eu nua, sem saber que idade tinha. Podia ter, tanto quanto sabia, centro-e-trinta-e-cinco. Já dormia novamente quando vieram as borboletas, mais de cento-e-quarenta-e-três... quatro... cinco, esvoaçavando entre muros de cimento que não intervinham, e cavalos corriam por cima da água brilhante e explosiva, com fachos de luz eléctrica a trovejar por ali. Um amigo meu colava os sapatos, pretendia qualquer coisa, e a avó dele dizia-me, no quintal, que ele era surreal. Ri-me muito, dei gargalhadas, e hoje em dia sei que já o fiz duzentas-e-seis vezes. Como não tinha dinheiro nem roupa, andava sempre nua, mas tocava às campainhas com uma amiga e pedia camisolas interiores. Aquela minha amiga tão parecida comigo, de longos cabelos negros, com quem inventei duzentas-e-quarenta-e-uma brincadeiras diferentes, reboliças, pois a outra minha amiga era ainda, talvez, mais parecida comigo. Havia duzentas-e-cinquenta-e-sete molas da roupa enguiçadas, coitadas, não sei porque sofrem tanto assim. A minha própria avó achava que eu devia andar nua, mas a roupa insistia, em frente ao espelho, em colar-se ao meu corpo. Queria libertar-me, e sabia que mais tarde ou mais cedo iria chover. No relógio, como sempre, já pulavam 3:10 horas vermelhas, e eu tarde para as aulas. Todos os dias. Mas os meus cabelos cresciam, cresciam, e vesti-me de Verão e de Inverno, simultaneamente, feliz por ser quem era, amarela, culpada, e amiga das formigas. Não havia baratas, não existiam, apenas a alcatifa do meu quarto se encontrava no meio. Lá parti. Tinha tanto que fazer! Já tão tarde e ainda nem sequer tinha ido à praia. Convidei um amigo a vir comigo, pois dava tempo. Desta vez as ondas não invadiriam tudo, altas e compostas, estalando câmaras lentas, como nas outras quatrocentas-e-quatorze invenções que sobrevivi, ora voando, ora deixando amigos na areia. Encontrei o gato nas escadas, feliz, e a minha avó mais nova tinha saído. O meu avô sempre foi inventor, e da cama puxava-se uma cortina para vermos Elis Regina, de cabelos curtos cantando, encantando, mas o meu avô não percebeu. Eu era miúda, a minha prima também, na colcha entusiasmadas com pouco, desenhos animados de sol, cabelos cortados, vestidos encarnados. Quatro horas e oitenta e sete desejos - acordei assim. Dormir para quê? Fiquei ali, a pestanejar sorrisos até às quinhentas.

A Cova

Estive o fim de semana sem computador e daí a demora em publicar os dois textos que recebi! Aqui vai o primeiro da Earworm (e que seja o primeiro de muitos... :)) Obrigado!

O Velho comprou-a num leilão de servos. Coisa pouca... Dez reis de mel coado e uma permuta de velhas bagatelas a perder o ouro, achadas nos baús do casebre velho onde morava.
Quando ela foi lá para casa arranjou-lhe um espaço no cercado, onde antes se empinavam os cavalos apenas com a menção a tempestades. Aquilo agora era um ermo vazio, de traves caídas e ervas daninhas que disputavam alturas. O único sítio para ela, pensou o Velho. Nem quartos de fundos nem celeiros em ruínas para aquele animal de andrajos que se dava com lagartos e insectos e os tratava com a cumplicidade dos gémeos siameses. Pôs-lhe dentro uma barraca feita de pedaços de jangadas e um telhado de canas secas. Era preciso domá-la primeiro, como se faz às bestas de carga, porque a rapariga era muda e insondável como uma idiota de aldeia, mas de uma bestialidade felina e inteligente, percebeu ele.
Balthazar, o anjo caído, era visita habitual do Velho e veio nessa primeira noite da rapariga. Ela, a uivar terrores nas traseiras do casebre, a convocar companheiros quadrúpedes para lhe aliviarem a dor com lambidelas de ferida.
– Fizeste-a bonita, Ezequeel! Para que queres aquela anormalidade, se nem alma tem para corromper?
O Velho cofiava a barba com as unhas enormes e sujas, sem olhar para a danação de asas.
– Não pensa, não fala, não exige. Quero-a para as limpezas e para os campos.
Balthazar arregalou um sorriso.
– Claro que sim, velho abutre! E para seviciar, quando a carne te pesar...
– O Diabo pode seviciá-la! As carnes já não me fervem, bandalho. Se a comer será no tacho, quando não me servir mais para o trabalho.
O anjo negro riu e deu-lhe as costas, abriu a grande janela rachada e num abater de asas fez-se convidado.
– Chama-me, então, para a almoçarada.
Quando as monções lhe levaram a barraca de náufraga, o velho arranjou-lhe um canto no silo dos cereais, prendeu-a com correntes e grilhões perto de um monte de milho com a altura dela. Pôs-lhe freio nos dentes e reabilitou a vergasta dos alazões para lhe vergar os ímpetos caninos de hiena acossada. Ensinou-a temer-lhe a mão e a comer do mesmo prato dos cães. Habituada ao cheiro do próprio sangue e a cerzir cicatrizes na pele cinzenta, A Coisa, como o Velho lhe passou a chamar, nunca chorava. Quando ela deixou de morder e passou a mostrar-se semi-dócil, meses depois, quando já estava mais esquálida que os perdigueiros, começou a levá-la para os campos e a ensinar-lhe os gestos certos para as mondas e regas, para colher e matar pestes. A Coisa aprendia depressa para quem não tinha alma, pensava o Velho. Um dia, quando voltou do mercado, encontrou a casa varrida e as coisas nos lugares coerentes que nunca tiveram, sem que nada tivesse sido pedido à rapariga.
Balthazar felicitava-o.
– Fazes falta lá em baixo, abutre sem penas. Tenho-te o posto guardado. Não encontro outro com a tua competência para dobrar almas danadas.
Isso não era novidade, pensou o Velho. Olhava pela janela enquanto a noite caía. Agora, que rapariga se mostrava mais mansa, deixava-a lá fora, ao entardecer, presa à corrente enorme, livre para cirandar 10 metros em todas as direcções, a olhar para a lua com a fixação feliz de quem se descobre lobo. Não dizia uma palavra e no entanto ria, observou o Velho com estranheza. Ria, como uma criança, dos estranhos fógos-fátuos no céu e das luzinhas bizarras que agora a rodeavam. “Talvez a solte um dia, só para ver onde vai e se regressa”, pensou o homem.
Dez noites depois fê-lo. Acendia-se no azul escuro o inevitável luar prenhe de esconjuros.A rapariga meteu-se no milheiral, deixou as canas arrepanharem-lhe os andrajos, cortarem-lhe a carne como a finura do papel, sem se importar. Seguia devagar, com o Velho sempre atrás dela. Quinhentos metros mais à frente, quando o campo acabou para começar a várzea deserta, ela parou e despenhou os joelhos no chão. De longe, ele pode ver as pequenas luzes aparecerem, subitamente, de todo o lado.
– Que raio!...
Viu-a cavar um buraco no chão, cada vez mais fundo, pontilhada de pequenas estrelas.
– Que raio....
Aproximou-se e agarrou-lhe os braços por trás. As luzes dispersaram em volta, como uma revoada de pássaros. Ela gritou, assustada. Sorriu ao reconhecê-lo.
– Ris de quê, cadela?
Espreitou para dentro do buraco. Uma garganta na argila, preta, e lá dentro um trapo dos dela que envolvia qualquer coisa. Desembrulhou com sofreguidão para encontrar um tesouro de hiena: penas brancas de arcanjo ferido, fadas cristalizadas em açúcar, duas pedras de âmbar com brilho próprio a vir de dentro, um infanticídio de ossos pequeninos à mistura com búzios da praia. Então, o Velho sentiu a garganta de argila no solo a escancarar-se, a puxá-lo para dentro com a força de um vórtice. Olhou a rapariga, que abriu a boca para ele pela primeira vez: a língua a desprender-se-lhe da caverna preta do peito, bífida e sibilante, um espasmo de riso na cara.
– Anda. – disse ela – Vou ensinar-te a caçar.

by Earworm

Tempus Fugit; 500+500+500+500 palavras para um blog (Revisto)

Peço-vos desculpa por estar a publicar novamente este texto, mas tive que fazer as devidas correções que estavam em falta.

Booklover, faz-me um favor, apaga-me a versão anterior sff... Obrigado!

Mais uma vez, as minhas sinceras desculpas,

Der Uberlende


Tempus Fugit (Parte I: Ignição)

Meia-noite. 1750 km, é quanto me falta para chegar a casa. Em 16-14 horas estou lá. Tenho no máximo 24 horas para chegar e começar a recompor a minha vida... Como pude deixar as coisas chegarem a este ponto?!? Fui, melhor, sou demasiado estúpido e preguiçoso, permiti que a teia de enganos e mentiras crescesse e controlasse os meus movimentos e actos...
Tenho tudo: as chaves estão no bolso esquerdo das calças, atestei o depósito, verifiquei pneus, radiador, óleo, raiva, ansiedade e culpa, tudo confere. As malas estão cheias com tudo o que tinha, bem amarradas com cintas de couro e arrependimento. Pego nelas e deito-as no lixo, não preciso de nada do que tinha lá dentro, apenas quero de volta o que tive cá dentro, dentro de mim, nas salas vazias atascadas de passos perdidos que sucumbem no meu coração.
Ignição. Ligo o autorádio para o desligar num impulso desmedido de irritação e descontrolo. Não quero nenhuma distracção. Quero chegar e recomeçar tudo, se ao menos eu soubesse agora o que soube antes...
O roncar suave do motor faz vibrar todo o carro numa massagem embaladora e refrescante, preparando-me para o banquete de conta-quilómetros que se avizinha, avisando todos os átomos que compõem o metal e a carne do passageiro-veículo de que a viagem vai começar, e tempo e espaço vão ser deglutidos pela punição da borracha vulcanizada sobre as feridas abertas do alcatrão desgastado pelos elementos.
O tempo começa a contar.

0:01h. Início: Hoje não tenho gravata, nem fato, nem etiquetazinha com o meu nome, nem o cabrão do smiley a prostituir o meu sorriso de vendedor de sucesso. Hoje não sou um deles, não irei com a “malta” do departamento para o Quénia, passear bêbado nos escaqueirados jipes dos Masai nem foder as putas sidosas de Nairobi por $5. Não mergulharei nu num asséptico Spa escandinavo para enterrar as horas mortas de mais um enfadonho congresso pago pelos “clientes mais valiosos”, leia-se bando de abutres que vivem à custa da minha eficácia em vender merda e miséria em pacotes dourados. Não abdicarei da minha mulher e filha para acabar o relatório mensal do cliente X, ou melhor, não abdicarei de vocês minhas queridas para me engalfinhar com outra putéfia lá do escritório numa cama áspera e imunda de mais um motel de beira da estrada, a snifar coca e emborcar whisky e viagra para fingir que tenho outra vez 20 ou 30 anos.

0:37h após ter ligado a ignição. Consegui finalmente ter a coragem de forçar a perna esquerda a descer sobre o pedal de embraiagem e engatar a ‘primeira’. A mão suada desliza sobre o travão de mão e puxa-o lentamente, sentindo todos os cliques do mecanismo que controla o cabo. Levanto o pé esquerdo e baixo o direito sobre o acelerador a medo, mas com um repelão infantilmente descontrolado. O carro é projectado num solavanco brusco e desajeitado. Estou em movimento, em direcção à minha (derradeira) vida.

Haverá tempo ainda?

(...continua)

18 de Abril de 2005,

Der Uberlende

Sunday, April 17, 2005

A boa filha; 500 palavras para um blog

Para a Marta. Desculpa qualquer coisinha...

Peguei no casaco e nas chaves de casa e saí porta fora sem pensar. Desci a rua com passadas largas, nem abrandando quando um gato se atravessou no meu caminho e me olhou com ar desconfiado. Não sabia para onde ia, mas isso não fazia diferença. Só sabia que tinha de ir. Senão… Senão, não poderia conter mais a minha vontade de gritar, de romper com tudo, com a razão, com o amor filial, mandava tudo à merda e pregava-lhe um murro na cara. Pregava, juro. É que é sempre, são horas incontáveis de berros, de choro, de chantagem emocional insuportável. Não sei o que ela quer de mim. Não sei que mais posso fazer. Só sei que já não consigo ouvir as exigências dela sem ter vontade de a matar.
Nem sempre foi assim. Em tempos, ela foi a minha melhor amiga. E eu confiava nela. Vivia para ver um sorriso na sua cara. Eu confiava… Será que ela não vê como me trai todos os dias com a sua desaprovação, como me apunhala com o seu descontentamento? A única coisa que eu queria era vê-la feliz, era a única coisa que me parecia essencial na vida, e ela tirou-me isso sem pensar duas vezes. Que pena eu não ser como a outra filha que teve, e em vez de me matar a estudar não me ter matado com drogas e outros vícios. Assim teria duas filhas mortas, mas talvez isso a fizesse mais feliz.
Agora corria pela avenida que ia dar à praia. Eram ainda uns 5 km, mas eu não me importava. Uma chuva grossa caía, parecendo-me apropriada ao meu estado de espírito. Obrigada, pensei eu, enquanto as lágrimas se misturavam com as gotas de chuva na minha face, tão parecida com a da minha irmã. Sempre me rebelei contra essa comparação, todos os dias da sua curta vida. Uma raiva voltou-me a subir pelo peito, espantando-me, porque pensei que até a raiva deveria ser finita.
Não percebo. As ondas do mar fitavam-me naquele silêncio ensurdecedor que o mar tem, uma a uma vindo testemunhar quem andava desconsoladamente pela praia. Sempre fui uma boa filha. Revi mentalmente os meus pecados e não encontrei nenhum que merecesse tal tortura. Ponderei o suicídio. Será que ela ia chorar por mim? Certamente iria maldizer a sua sina, ter duas filhas tão ingratas, que menosprezavam todos os sacrifícios que por elas tinha feito. Eu ia fazer-lhe falta, disso tinha a certeza. Quem mais ela poderia utilizar como bode expiatório de toda a sua infelicidade? Quem mais a amaria o suficiente para a aturar todos os dias? Não, ela ia chorar, sim, lágrimas amargas, não por mim, mas por ela.
A chuva parara. O sol já se punha, num céu finalmente livre de nuvens, enchendo o horizonte de cores suaves, laranja, cor-de-rosa. Ia ser uma noite estrelada. Inspirei fundo, decidida. O estômago roncou, anunciando a aproximação da hora de jantar. Virei costas ao mar e iniciei a minha longa caminhada para casa.

Já agora, mais 500 palavras de urbanismo incauto: Sodomia, parte I. Desta vez também pequei: vai em duas partes... e não está isento de polémica

Sodomia, parte I

O rosto de Tiago, esmagado no sofá, flutua entre o prazer e a agonia no risco do entardecer, ensandecido pelo sexo que preencheu o dia inteiro as suas veias. Tadeu engata parceiros pela Internet. Combinaram o encontro no centro comercial. Tiago resolveu desistir, enquanto caminhava lentamente de encontro ao devaneio virtual, de encontro a Tadeu. Tiago decidiu não ir mas as suas pernas desobedeceram.
Tiago tem 36. É casado com Felícia.
Tiago e Felícia já não fazem amor.
Tiago tem um emprego certo, uma rotina.
Todos os dias, a mesma sevícia. Leva de casa dinheiro trocado, para dar ao drogado que esbraceja e arruma o carro no parque cheio de lugares livres. Tiago não gosta do arrumador, mas tem medo.
Todos os dias, a mesma sevícia. Aperta o nó da gravata, comprime a traqueia até à asfixia. Não gosta da gravata, mas habituou-se à ideia da submissão, da sodomia.
Habituou-se aos ensejos da rotina, aos bocejos de Felícia. Todos os dias, depois das sete, Tiago entra na Internet anónimo e despe a gravata, o fato de homem.
Tiago não é gay, “but in that day” o pénis virtual de Tadeu penetrou o seu lado escondido. Tadeu vislumbrou aquele imago de adulto engravatado e comprometido. Era Tiago.
- Vamos para minha casa?
Tadeu vivia num prédio da Alameda, 2º andar. As paredes do patamar já tinham sido brancas e pareciam tão ocas quanto as escadas de madeira, carcomidas e gretadas, impregnadas de bolores negros, de onde brotavam viscosamente vozes de vizinhos. A chave ferrugenta roda na porta. Tiago e Tadeu não se conhecem. E estão finalmente sós.
- Põe-te à vontade! Estás muito calado…
- Sou de poucas palavras – disfarça Tiago, com a boca seca, cambaleante no meio da sala, onde vê a mesa de vidro que Tadeu usou para almoçar, a avaliar pelo guardanapo usado e os restos sebosos de alimento.
Num canto está uma secretária onde cabe o computador e se adivinha Tadeu na internet, a teclar com os dedos húmidos de excitação num teclado embebido de cheiros e semeado de alguns pêlos púbicos. A curiosa prospecção de Tiago é seguida pelos olhos de Tadeu, a quem agrada o jeito desconfiado e tímido da sua presa.
Tiago olha para o sofá, onde imagina os selváticos actos revelados no tecido descorado e roto. Sente-lhe a textura áspera, quando Tadeu o ataca por detrás e morde-lhe o pescoço com a lascívia das mãos cravadas nas suas nádegas.
- Então, Tiago, em que ficamos? - Sussurra-lhe - é mesmo esse o teu nome? Tiago?
Tiago sente-lhe o pénis erecto e grosso. Um vórtice de sémen, sede e horror suga-o para o interior das calças do amante. Sente-lhe a carne viva e húmida do pénis. Sente-lhe o desejo no tremor do corpo. Pensa em Felícia. Despe-lhe as calças, de onde salta o pénis hirto e vigoroso. Pensa em Felícia. Felácio. Felícia, felácio, Felícia…
Tiago desliza no sofá, em decúbito ventral, provocando o seu parceiro. Invade-o o desejo, agonia, a sodomia.

Saturday, April 16, 2005

Desafio 500: Hora de Balanço

Faz hoje 4 meses que aceitei o desafio de escrever “algo” para o blog da minha amiga Booklover. Na altura que tudo começou, a ideia era simplesmente “picar” a Booklover a romper com os seus medos e “bloqueios de escritora”. Para tal, ocorreu-me a ideia de usar este exercício bastante simples: criar um texto de escrita criativa em que houvesse apenas uma regra. E essa regra teria que ser algo qu jamais condicionasse a temática ou o estilo do texto, teria que ser uma regra simples e de fácil aceitação. Assim surgiu o “Desafio 500”
Acho que é altura de voltar a desafiar todos os ilustríssimos visitantes do nosso/vosso pequeno blog para se juntarem a nós, e trazerem a vossa criatividade (que é muita, pois saiba que vou frequentemente espreitar os vossos blogs ;) para “este lado”. Contamos convosco!
Além dos 4 suspeitos do costume, já tivemos mais 3 desafiadores, que nos brindaram com experiências e sonhos fantásticos, inquietantes e intensos. Espero que eles voltem a “atacar” a qualquer altura, pois em muito nos enriqueceram as suas palavras.
Em ambiente semi-nostálgico, transcrevo-vos o texto original onde foi lançado o “Desafio 500” e a lista dos 35 textos até agora publicados

uma agradecida vénia,

16 de Abril de 2005,
Der Uberlende



500 palavras, desafio para um blog
Cara Booklover,
É com enorme honra que aceito o teu convite para participar livremente neste teu blog. Espero que a minha participação venha a ser digna da confiança que em mim depositas. Mas como podias esperar, jamais poderia aceitar o teu desafio sem propor outro em troca!
Então aqui vai: Desafio todos os bloggers, visitantes e aliens que aterrarem nesta mensagem a escrever um texto de inspiração absolutamente livre(!!!) MAS com 500 palavras, não mais, nem menos!
Tenho a certeza de que vão surgir contribuições interessantíssimas, inspiradas nas mais impressionantes ou simples experiências de vida. Só vos peço é que não travem em tabus, não embarquem em clichés dos vossos autores favoritos ou insistam em vícios de esforço por "deitar algo cá para fora que valha mesmo a pena!!". Sejam genuínos, autênticos, dispam-se de preconceitos, recusem o estilo ou forma que pensam que deveriam ter e escrevam como vos der mais prazer, mais raiva, mais inquietude... mais paz!
As nossas cabeças estão cheias de vozes que insistem em nos ocupar a atenção. Sintonizem a vossa. Tem 500 palavras para oferecer à vossa alma?

Booklover
http://adoro-ler.blogspot.com/2005/01/pedro-desafio-500-palavras.html
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Der Uberlende
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Der Igel
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Stela
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Sam (http://voandoaderiva.blogspot.com/ )
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SilentChild
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Friday, April 15, 2005

A Carriça

Há muitos anos atrás, Joaquim tinha uma égua de quem gostava muito, a Carriça. Entre os dois havia uma grande amizade, o velho tratava-a com meiguice e carinho, conversava com ela como se fosse uma pessoa, afagava-a a todos os instantes. Mais do que um animal a Carriça era como se fosse um membro da família, trabalhava nos campos, transportava cargas, pessoas e fazia companhia a Joaquim. Certo dia, estavam os dois a brincar quando a égua imprevistamente lhe acertou com um casco no queixo. Com a boca a sangrar, cheio de dores insuportáveis e a espumar raiva pelo corpo, o velho foi a correr buscar o engaço do estrume. Tresloucado de maldade cravou-o com todas as forças que a idade ainda lhe concedia no dorso da Carriça. Passados alguns dias a égua Morreu.

Joaquim era meu bisavô, nunca cheguei a conhecê-lo em vida, morreu antes de eu nascer. Esta terrível herança caiu-me nas costas à dois dias atrás. Um pensamento estúpido contudo não me deixa de acompanhar: transportarei nos genes algo do bisavô Joaquim? tremo só de pensar nisso!

Tempos difíceis? Ignorância? ou pura Maldade?

Wednesday, April 13, 2005

Andar por aí; 500 palavras para um blog por Stela

Lisboa abria-se à sua frente, experiente e marcada, em ruas e avenidas, bicas, elevadores, muralhas e jardins. Do alto do Castelo aos confins do Lumiar, nada ficava por explorar. Andar era o único objectivo, ver, a única ocupação. Deixar que os olhos registassem cada janela enfeitada com vasos floridos, cada candeeiro de rua, cada azulejo azul e branco. Todos os dias jogavam esse jogo depois da escola.
- Bora ir dar uma volta? – dizia ela.
- Bora. Vamos onde? – respondia ele.
- Sei lá. Andar por aí…
E lá iam, primeiro “só até ali àquele jardim com uns fetos espectaculares!”, depois “já que estamos aqui”, a cidade corria ligeira debaixo dos seus pés e eles, meninos, contentes, deixavam que ela lhes mostrasse os seus segredos, as suas belezas reservadas para os olhos de quem as procura. Os turistas às vezes tomavam-nos por seus iguais, de tanto olharem, sem fazerem nada do que habitualmente faziam os outros cidadãos, sem parar para tomar uma bica, sem comprar o jornal, sem correr para o eléctrico, sem outro objectivo que não fosse mesmo andar por ali.
Os dois olhavam para os seus concidadãos com pena por irem tão de cara no chão, sem levantarem a cabeça para ver os jacarandás em flor no Campo Grande, ou a luz a tocar amorosamente o casario de Alfama.
- Estás a vê-los? – perguntava ele.
- Parecem vacas. – anuía ela, abanando a cabeça com comiseração.
De facto havia algo bovino na forma resignada como a multidão se movia do autocarro para o metro, do metro para o comboio. Ocasionalmente apetecia-lhes chocar as pessoas e punham-se a imitar ruídos de animais, fazendo desfilar pelos túneis do Metropolitano de Lisboa uma grande parte da fauna de uma selva tropical ou de uma savana africana. Mas a manada a nada reagia, ouvidos moucos até às gargalhadas dos dois.
Às vezes tinham aventuras estranhas. Uma vez foram perseguidos por um cão, depois de repetidas tentativas do rapaz de se aproximar do bicho, com a firme convicção de que todos os animais gostavam dele.
- Este não me parece que goste de ti. – ofegava ela enquanto dava corda aos sapatos pela Rua das Janelas Verdes.
Outra vez ficaram presos por duas horas numa casa abandonada onde ela quis entrar porque tinha visto um gatinho ferido a entrar para o jardim da casa por um buraco na vedação. Ao entrarem, a porta da frente fechara-se devido a uma corrente de ar, e como resultado passaram as duas horas seguintes na penumbra, a tentar descobrir outra saída, porque a porta estava resoluta no seu fechar.
Outras vezes não tinham aventura nenhuma, o tempo passava simplesmente sem deixar nenhuma história para contar. Mas acabassem as suas caminhadas em cabeças partidas ou apenas em horas infindáveis a olhar para o Tejo, regressavam a casa cansados, moídos, cheios de imagens nem sempre felizes e nunca perfeitas, mas reais. E com o sentido do dever cumprido para com a vida.
- Pelo menos tentámos…
- Amanhã voltamos, deixa lá!

Monday, April 11, 2005

O Livro Negro (Parte 2); 500 palavras para um blog by Der Uberlende

O Livro Negro (Parte 2)
Cheguei a casa. Consegui passar desapercebido por entre as mulheres que recolhiam as crianças da rua e que preparavam o mato para as camas dos animais. Quando passei pela porta da tasca havia uma amena cavaqueira e um cada vez menos discreto festim regado a vinho verde e broa, tudo em “honra da boa senhora” que descera à cova horas antes. A borracheira era tal que mesmo que eu apregoasse que o livro negro estava agora nas minhas mãos ninguém iria sequer ver.
Sento-me à beira da lareira, onde crepitava um toro de carvalho em suaves labaredas. Olhei para a capa de couro negro que encadernava o abominável volume e tentei discernir o título. A suadeira procedente das mãos tensas e artríticas da velha tinha carcomido as letras, tornando indecifrável o que antes era legível, no que eu admitia ser letra gótica trabalhada a dourado. Passando a capa, deparo-me com uma dedicatória escrita com pena e tinta azul metileno, que recortava as seguintes palavras por cima do papel de cânhamo amarelecido pelos anos de cativeiro:

“Para a minha filha Augusta,
Que desde o berço sejas temente a Ele
Que a tua vida seja dedicada a servi-Lo e a impôr a Sua obra,
Damião,
6 de Junho de 1906”


Que temor seria esse? Porque haveria um pai de condenar uma filha a uma vida servil dedicada à imposição do medo e do julgamento? Quando comecei a desfolhar o livro deparei-me com passagens sublinhadas:

“a rebelião é como o pecado de feitiçaria...”
“matai todo o varão entre as crianças; e matai toda a mulher que conheceu algum homem, deitando-se com ele. Porém, todas as crianças fêmeas, que não conheceram algum homem deitando-se com ele, deixai-as viver para vós.”
“E quanto àqueles meus inimigos que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e matai-os diante de mim”
“Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: prostituição, impureza, lascívia”
“Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos senhores, não somente aos bons e humanos, mas também aos maus”
“...o sol escurecerá e a lua não dará a sua luz... E ele enviará os seus anjos, e ajuntará os seus escolhidos, desde os quatro ventos, da extremidade da terra até a extremidade do céu... Na verdade vos digo que não passará esta geração sem que estas coisas aconteçam”
“A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade”
“ O fogo que acendeste na minha ira arderá para sempre”
“Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas espada”


Seguiam-se inúmeros versículos e passagens sobre incesto, infanticídio, brutalidade sobre as mulheres e homens “desviados”. Os meus olhos liam detalhes de torturas e massacres em massa tanto de pecadores como de inocentes, de senhores que abusam e violam em nome do Senhor, de morte e horror interminável.
Este era o livro negro que a velha impunha sobre nós. A Sagrada Bíblia.

10 de Abril de 2005,

Der Uberlende

Momentum; 500 palavras para um blog by Silent Child

Hoje é um dia feliz para mim. Apresento-vos um texto para o Desafio 500 da autoria de Silent Child, meu irmão e eterno amigo. Em nome de nós os 3, obrigado pelas tuas palavras (e actos).

Der Uberlende


Momentum

Hoje passámos o dia juntos. Ao ir buscar-te pareceste-me algo preocupada, o que não era habitual… seria por a professora estar doente?, ou por o papá e a mamã estarem fora nesse dia? Deste uma corrida e lá foste sentar-te naquela cadeirinha do carro que achas tão gira. Há muito que prometera levar-te ao parque das nações, para veres um aquário a sério… nada dos que temos em casa. A meio do caminho vimos uma grande confusão na rua. Havia um carro todo amolgado, vidros estilhaçados e um corpo inerte no chão tingido de sangue… impossível de ignorar. Olhaste-me muito séria, com os olhos vidrados e tristes. “Morreu?” “Não sei”, foi a minha resposta. Mas eu não podia ficar por ali… “O meu pai e a minha mãe também vão morrer?” O teu pai e a tua mãe estão bem. Mas quem sabe o dia em que morre? Eu não iria iludir-te. Precisava de aprender a falar a uma menina de sete anos sensível e inteligente como tu. Temias a separação. Conversámos bastante. Fizemos uma pausa num café para tomarmos um sumo. Percebi que te preocupas com coisas que tantos adultos, por medo, egoísmo, estupidez ou ignorância, vão deixando de questionar. Não entendes porque morrem tantas crianças, porque há maldade, porque deixaste de ver aquele teu amigo na escola que já estava todo carequinha, porque chorou a tua colega de carteira quando foi o dia da mãe. E ainda havia quem te dissesse que tudo era vontade de deus. Quem seria esse? Eu ouvi-te muito atentamente. E tentei ajudar-te a quereres descobrir a (difícil) verdade ao teu alcance, sem te impingir nada. Eu sei que és uma criança, mas não a pobrezinha que tantos (miseráveis de espírito) vêem numa criança. Falámos da vida e da morte. Partilhámos exemplos, imagens, alegorias, histórias. Eu tentei. Tentei estimular-te a pensares sem preconceitos, medos, culpas ou dogmas aprisionantes. Sem o chorrilho de disparates com que te envenenam na escola, o jugo dos mistérios ou o muro de silêncio que encontras demasiadas vezes. Foi difícil. Ficaste preocupada quando se me escapou uma lágrima furtiva, levaste um dedito à minha cara, mas mostraste-me o teu lindo sorriso quando me entusiasmei tanto que até entornei um pouco de sumo no guardanapo, já muito rabiscado. Nós tentámos. Consegui(mos)? Chegámos ao parque cheios de energia. Agora caminhávamos em silêncio, de mão dada. Mas os nossos pensamentos iam comunicando. Só me pediste um gelado. Até ao oceanário, saboreaste-o satisfeita. Ao chegarmos lá a tua face parecia mais leve e aliviada. Ofereceste-me um sorriso aberto. Paraste. Puxaste-me a camisola e eu anuí a pegar-te. “Eu terei sempre comigo aqueles de quem gosto. Como os meus pais. Nunca estou só. E quero viver sem recear morrer. Afinal a vida é eterna não é tio?” Não esquecerei aqueles bracitos à volta do meu pescoço, a tua face junto à minha e o calor que partilhámos juntos Sofia! Terei sonhado? Ou viajámos no tempo? Hoje passámos o dia juntos… podes contar sempre comigo.

10 de Abril de 2005,

SilentChild

Thursday, April 07, 2005

O Livro Negro (Parte 1); 500 palavras para um blog (desta vez fiz batota e são 500+500... ;)

O Livro Negro (Parte 1)
Não deixou saudades a ninguém da aldeia quando finalmente abdicou desta vida terrena. Mesquinha, megera ou abutre, eram as designações mais meigas e brandas que prontamente saltavam da ponta da língua dos peões e pastores que ao entardecer queimavam conversa na incandescente ponta das periscas que estrelavam o alpendre da taberna antes de se extinguirem debaixo de uma pisadela casual ou vigorosa excreção gutural. Entre as mulheres, que com ela partilhavam a bancada de granito no tanque público onde esfregavam os lençóis de alvo linho com as gretadas e nauseantes barras de sabão azul e branco, também não se escutavam resignados lamentos (“é a vida”, “estamos entregues a Deus”, “ai eu também ando tão mal, qualquer dia vou eu”). Só as carpideiras restavam para uivar às lápides que mais um corpo fora a enterrar, outra alma foi rogar estada na celeste mansão do altíssimo, ou expiar os pecados num espumoso banho de enxofre. “Que se dane o raio da velha!”, pensava eu. Que os vermes a limpem até ao osso e que a terra não a vomite, tal era a intragável criatura. Não tinha deixado descendência. Não restava um marido, amante ou confidente para sentir a falta to seu corpo infecundo, cadavérico e canejo. Não tinha primas direitas, embora nas aldeias todas sejam primas umas das outras. Tinha um gato que a suportava ocasionalmente e um casal de melros que fazia ninho no caramanchão formado pela meia dúzia de pés de vinha morangueira que inflectiam por entre os cepos que seguravam o escaqueirado telheiro de lusalite.
Não havia vivalma que a suportasse, sempre a vociferar contra os hábitos e libertinagens de rotina de homens mulheres e crianças que tinham o malfadado azar de se atravessar à frente dela. “Ireis sofrer e apodrecer no Inferno, que Deus vos castigue a todos como mereceis!”. Esgatanhava o ar com os seus guinchos penetrantes enquanto esgrimia o seu indispensável tenebroso livro negro. Era bruta, cruel e impiedosa com os animais, excepto com o gato que ocasionalmente a suportava e com o casal de melros que fazia o ninho no topo das vides. Passava dia e noite a sussurrar rezas e esconjuros, acompanhando o ritmo da sua infeliz solidão com o tremor infindável dos seus membros e da cabeça dependurada dum pescoço fino e nodoso. Estava sempre agarrada ao seu inseparável livro negro, que a todos espetava na cara dizendo que ali estava traçado o destino de todos eles, e do dela entre eles. Não tinha deixado nada a ninguém. Nem o casebre outrora farto tinha destino ou dono.
Não resisti, e ao cair do crepúsculo, quando o cerúleo da abobada celeste me encobria os passos entrei naquela casa. Pouco ou nada lá restava, excepto duas cadeiras de ferro e formica laranja podres e bambas, dois paus de azinho por arder na lareira, uma mesa encardida e desequilibrada e o livro negro em cima dela. Antes que alguém desse pela sua falta, peguei nele e levei-o comigo para casa.

(...continua)

7 de Abril de 2005,

Der Uberlende


 

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